terça-feira, novembro 22, 2016

Não recua nem cede
não aceita o interdito

ela fala daquilo
que não pode ser dito




Pensar em ti enlouquece-me. Talvez o teu olhar, talvez as tuas mãos. Mesmo que os não veja, mesmo que os não sinta. O teu olhar desnuda-me mesmo que não esteja pousado em mim. As tuas mãos, mesmo que ausentes, percorrem o meu corpo. As tuas palavras. O presságio que elas transportam.

Que coisa é esta que me tolda a razão, que eu não sei?

Quero-te, quero os teus olhos mergulhados nos meus, quero as tuas mãos deslizando sobre a minha pele. Quero-te tanto, tanto.

Onde estás agora que não te tenho aqui para me abraçares? Porque não atravessas o mundo inteiro para vires repousar o teu cansaço no meu regaço? Não saberás que te espero, que te espero ansiosamente? Vem.

Apenas a memória da música me traz o teu nome. Ou talvez a lua que agora já é só metade, já só meia luz, meia esperança.

Ouves o meu lamento? Ao menos ouves como chamo por ti?

- És o emissário 
dos astros
ou só o reflexo?

O corpo em contraluz
ou a imperfeição do excesso?

Tens asas
ou és o brilho
das estrelas no seu reverso?


Chamo as aias, os pequenos deuses, os anjos famintos - que segurem o espelho, que deixem que eu veja se aquele que o meu coração secretamente ama vai achar que as minhas carnes são à medida das suas mãos. Serão?

Peço-lhes que cubram a minha pele de óleos perfumados, e toda me entrego ao deleite das mãos que me cegam -- que mil mãos preencham cada recanto do meu corpo do mais perfumado óleo, que toda eu fique macia e tentadora, que a luz desenhe em mim a sombra do meu corpo que ondula.

Depois vejo o meu rosto no espelho.

Olhando-me, achará ele que sou a sua mulher? Quererá segurar o meu rosto entre as suas mãos, olhar os meus olhos e beijar a minha boca?

Olho-me no espelho que o anjo tentador segura. Depois fecho os olhos. Quero ver-me com os olhos daquele por quem o meu coração chama, não com os meus.

Mas não consigo.

Olho a ausência
da minha
imagem no espelho

no seu abismo perverso

O nada absoluto
onde a luz é o excesso.


Ah, a minha nudez. Quererá ele saber-me assim? Nua, sem defesas?

Cubro-me de mantos de veludo, que não me tome ele, o meu amor querido, por impúdica, eu que tanto gosto que me seduzam, que me conquistem, que sofram, que mostrem o sangue escorrendo do coração sedento, que esfreguem sal nas feridas, que caminhem sobre pedras.
Cubro-me, amor, cubro-me para que lutes por me descobrir. Para que me dispas, me descubras devagar ou me adivinhes com sofreguidão, para que faças de mim um segredo desvendado.
E entranço o cabelo e adorno-o com pérolas, ponho brincos, pulseiras, tudo para que percebas como te quero, amor, para que percebas como te desejo, tanto, tanto, amor, para que me olhes com olhos de guerreiro, doido por conquistar a sua secreta amante. Eu e tu unidos pelo mais íntimo prazer de dar prazer -- assim me quero, assim te quero. Amor. Amor meu.
Em surdina, as aias e os maliciosos pequenos anjos vozes segredam censuras no fundo do quarto:

Recato?

Dúvida
a apunhalar-lhe
o coração estilhaçado

Cimitarra e desacato


Pois que seja desacato, que seja, pois que me caiam as vestes e os mantos, que o meu corpo não se fez mesmo para silentes esperas e tímidas ocultações. Pois que me veja ele desnudada, livre, disponível, pois que rasgue as nuvens e suba dos mares ou desça dos montes, que rompa as portadas e me veja assim, toda eu desejo, desafio, desaforo. Pois que veja como o meu corpo se alonga para que melhor perceba que é por ele que o meu corpo espera e que não conheço medos, frios, ou tropeços. O meu peito arde e o meu ventre ainda mais e nele se esconde a rosa mais perversa. Não sei se é carmim e cheira a sangue e mel ou se é azul e inventada, a minha rosa secreta, nem sei se nas horas mais escuras da noite sou tigre, leoa, cavalo azul ou concha, novelo, ninho de amor. Nem sei se, nas horas mais negras da noite, digo palavras de paixão ou se o meu silêncio tem asas e as minhas pernas abraços. Não sei. Isso terá ele, o meu amor, que desvendar, beijo a beijo, palavra a palavra.
Isso terás tu, amor meu, que descobrir. 
Tantos riscos já corri, tantos, tantos, que já perdi todos os receios.
Voei à tua volta
tantas as luas

Dancei na via láctea
do desejo

Procurei em ti
as rosas rubras

Ignorei presságios
expiações

ameaças, abismos 
e anseios


O pequeno anjo ri, menino inocente e malicioso, e que me ria eu com ele, pede. Sorrio mas por breves instantes. E logo mergulho o meu rosto impaciente na lava negra que aguarda o fogo de dois corpos que tanto se querem.
Não lutes mais, peço-te. Nem tentes esquecer-me, nem tentes negar a tua paixão.  
Não tentes, não tentes. Amor, amor meu. Não tentes. Peço-te.
Anda, amor meu, vem acolher-te no meu corpo que tão ternamente te aguarda.
Não ouves como te chamo? Não ouves? Não...?


- Vem outra vez!

Chamo-te num grito
quando a saudade desata

e o corpo se precipita
até à fenda da farpa

onde apenas sei
do espírito
esse tudo e esse nada

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Poemas de Anunciações de Maria Teresa Horta


Hope I don't fall in love with you, interpretado por Tom Waits

Vénus ao Espelho por Tintoretto, Rubens, Ticiano, Mestre da Escola Fontainebleau e Velázquez

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira.

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2 comentários:

bea disse...

Pois quadra tudo muito bem, JM: palavras, figuras, voz. Até à morte, Maria Teresa Horta vai falar do mesmo. Mas sabe dizer, sem dúvida. É bastante boa a pintar climas de sexo amoroso e instilar ambientes. E a gente fala com ela e não adivinha qualquer fogo naquele verbo fácil. E depois escreve estas coisas que parecem um Cântico dos Cânticos em exaltação superior. No meu entender tem um único inconveniente, é monocórdica, bate apenas nessa tecla.

Um Jeito Manso disse...

Olá bea,

Este livro dela 'Anunciações' é uma obra extraordinária. Gosto de escrever, levada pela poesia dela.

E tem razão: ouvindo-a a falar, não se diz. Mas ainda bem, senão banalizava.

Uma boa quara-feira para si, bea.