quarta-feira, novembro 23, 2016

Medo




Não gosto de me vitimizar. Muito sinceramente penso que isto é coisa da minha natureza: acho que a pele de vítima não me assenta bem.

Contudo, a verdade é que, em geral, sempre achei que nem teria razões para isso; e, nas poucas vezes em que achei que seria razoável que me fosse abaixo, pareceu-me que seria absurdo puxar a mim o mau da situação ou os males do mundo e, por isso, segui em frente, se calhar, como se não fosse nada comigo. Aliás, arreliam-me imenso as pessoas que perante uma desgraça, desvalorizam o acontecimento, emoldurando antes a sua própria experiência pessoal. Por exemplo, se há uma trovoada desgraçada, queda de raios, árvores esfaceladas, casas inundadas, que sentido tem uma pessoa reduzir isso ao que se passou consigo própria: 'eu estava em casa e, quando ouvi aquele trovão maior, até dei um grito e encolhi-me e fiquei a tremer'? Todos nós as conhecemos (na família, na vizinhança, no trabalho ou, mesmo na blogosfera), as pessoas que querem sempre ser as mais infelizes, as mais desgraçadas, as maiores vítimas.

Fatigam-me um bocado, pessoas assim. Acho-as um bocado egocêntricas.

Eu sou o oposto. Não o digo com vaidade porque não apenas não é coisa voluntária, como nem sei se isso é grande coisa. Mas é o que é. Geralmente, em alturas em que seria normal eu mostrar medo ou preocupação, mostro-me surpreendentemente neutra -- quando não calma, imune aos riscos ou superior às emoções.

Posso ver à minha volta pessoas a chorarem, desoladas, a gritarem umas com as outras, num stress, ou numa aflição, a acharem que vai acontecer uma qualquer desgraça, e eu vejo-me como se fosse desumanamente fria ou -- como a minha mãe às vezes diz -- excessivamente racional.


Por vezes é quando tudo passou que, por um qualquer insignificante motivo -- e em privado -- me vou abaixo. Então, posso chorar como se fosse o fim do mundo. Mas, uma vez o choro acabado (e isto pode durar uns cinco minutos), fico fresca como se nada se tivesse passado e, geralmente, já nem me consigo lembrar do que provocou aquela breve fractura emocional.

No trabalho, tenho uma característica que, se eu conseguisse ver-me de fora, me faria assustar. Abomino aquele tipo de cautelas que levam a que, para não assumirem responsabilidades, por tudo e por nada, os gestores recorram a consultores externos. Cautelas ou cobardias. Os consultores começam por fazer levantamentos, depois fazem muitos power-points, produzem muitos entregáveis, falam em quick wins e tretazecas -- e recebem muito dinheiro. Tudo espremido geralmente não vale um caracol e qualquer gestor com um mínimo de testículos (metafóricos) teria feito dez vezes aquilo, em dez vezes menos tempo e a custo marginal nulo.


Portanto, quando tenho carta branca, faço o oposto. Mas completamente o oposto: é com a prata da casa e é para a frente, à bruta e sem medo. Acontece, no entanto, uma coisa: quando estou no rebentar da onda, naquele momento em que não há volta atrás, em que já envolvi todo o mundo de uma forma irreversível, dou por mim a pensar: 'caraças, outra vez; que risco estúpido; e se isto não corre bem?' e aí, sem que ninguém o suspeite, sinto um medozinho agudo no estômago. Mas bola para a frente porque para a frente é que é caminho. E, se correr mal, remedeia-se.

Isto a nível profissional ou social.

Mas já senti medos agudos, daqueles que nos apertam o peito, o pescoço, o estômago e, em boa verdade, todo o corpo por razões um bocado à toa.


Quando os meus filhos eram adolescentes, era uma luta interna que eu travava. Iam sair à noite, cada um com os seus amigos ou amores. Normal. E eu pensava que era bom que saíssem e crescessem.  E tudo bem. O pior era  resto. Se se atrasavam, eu ficava num pânico crescente. Ao meu lado, na cama, o meu marido dormia a sono solto. E eu ficava a ver as horas a passarem, acordadíssima, incapaz de dormir, a ouvir o elevador, a tentar perceber se ia parar aqui à porta, se eram eles, e via e revia as horas... e esperava até achar que não aguentava mais e que tinha que acordar o meu marido. Por vezes virava-se para o outro lado e continuava a dormir, outras vezes também se assustava.

A minha filha padeceu mais do que o irmão com estes meus medos. Tinha medo que ela andasse na rua, tinha medo que algum meliante estivesse na escada, tinha medo que alguma coisa lhe acontecesse. Medo, medo. Quando ela chegava mais tarde, dava-me umas fúrias pelos riscos que eu achava que ela tinha corrido e pelo que ela me tinha feito sofrer; e, não raras vezes, a coisa dava para o torto, mal a ouvia a abrir a porta. Sublimava o medo em fúria, porque ela não percebia os riscos que corria, porque ela não queria saber dos meus conselhos para nada. 

Quando chegou a vez do meu filho, quase três anos mais novo, já eu tinha aprendido a controlar-me um bocado melhor. Além disso, sendo muito alto e tendo aprendido artes marciais, achava que ele tinha mais possibilidades de se defender. Tinha medos, só que eram outros: que bebesse, que fizesse disparates, que houvesse algum acidente. Ao fim de semana chegava, por vezes, madrugada alta ou de manhã. As minhas noites eram passadas em branco, numa inquietação.


Pior ainda foi quando deixaram de ir connosco para o campo e ficavam de me ligar mal entrassem em casa. E ele, volta e meia, esquecia-se ou ficava sem bateria ou qualquer coisa e não ouvia nem atendia o telemóvel. Chegou uma altura em que a minha filha já não morava connosco e, portanto, nestas aflições eu não tinha a quem ligar para ir ao quarto dele ver se já tinha chegado. Muitas vezes, cheia, cheia de medo, depois de já lhe ter ligado umas 20 vezes para o telemóvel, já queria que nos metessemos no carro para vir à procura dele. Até me custava a respirar, tanto o medo que sentia. Por acaso, felizmente nunca tal foi necessário porque aconteceu sempre que, por fim, lá atendia, todo aborrecido por ver mil chamadas minhas no telemóvel.

E medos também senti quando os meus pais estiveram doentes e tocava o telefone fora de horas: ficava gelada, transida, à espera que fosse alguma notícia terrível. 

Tirando isso, não me lembro de muito mais medos. Não me lembro de ter medos quando era miúda.

Por vezes, quando o meu pai ia à pesca de noite, ficava preocupada porque ele nunca mais chegava. A minha mãe era para o lado em que dormia melhor. Eu não, ficava a vigiar os sons de carros na estrada. Mas não sei se isso era medo. Acho que era preocupação.


Quando tinha para aí uns doze ou treze anos, tinha aulas de manhã e a minha mãe dava aulas de tarde; nessa altura, ainda não saía para ir ter com o meu boyfriend, passava as tardes em casa, sozinha, a ler. Lembro-me de ter lido o Allan Poe e de ter ficado com um bocado de medo de sair da sala ou do quarto para ir lá dentro, tendo que atravessar o que, na altura, me parecia um longo e perigoso corredor. Imaginava que saíssem braços da parede, que ouvisse gemidos, que visse sangue a sair de debaixo de algum móvel.

Tirando isso, medos de jeito, acho que não tive. E sinto-me afortunada e agradecida.

Uma vez uma Leitora contou-me que andava sempre com medo, que sentia uma angústia um pouco inexplicável, como se qualquer perigo estivesse sempre iminente, que mal acordava já se sentia cheia de medo. Li também, uma vez, uma entrevista com Manuela de Freitas na qual ela dizia que tinha vivido parte da sua vida com essa insidiosa sensação de medo dentro de si. Deve ser uma coisa horrível. Imagino que uma pessoa nem consiga ver o lado bom da vida, nem estar descontraída a sentir a simples felicidade de viver. Na ausência de motivos concretos, não sei se isso é sintoma de depressão ou se é coisa que se cure mas imagino que, quando doentio, o medo possa ser tratado.

E a ausência de medo festejada.

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Vem isto a propósito de um vídeo que vi. Depois de uma mal sucedida aventura doméstica -- que pôs o meu marido fora dele e a mim a rir -- vim aqui para a sala.

Mas, antes do vídeo, conto a aventura.

Ontem, quando depois de jantar lavei a louça, ele foi buscar a esfregona e disse, com ar censório, que eu, a lavar a louça, tinha sido uma festa. Não percebi. Disse-me, então, que o chão ao pé do lava-louça estava molhado. Não tinha dado por nada. Nem liguei. Aliás, acho que lhe perguntei se achava que, por causa de uma mísera gota de água, valia a pena pôr a nossa relação em risco. E saí da cozinha. Quando chegou à sala, ironizou: afinal, a tal simples gota de água que quase fizera perigar o nosso casamento, era um cano roto debaixo do lava-louça.

Hoje apareceu com um tubo (uma bicha?) e resolveu provar que é sempre bom a gente ter um homem em casa. Enfiou-se lá por baixo, praguejou, pediu-me ajuda e... no fim, em vez de gotejar, aquilo começou a escorrer água franca. O alguidar que se pôs por baixo, rapidamente ficou a transbordar. Passado um bocado, fui ao lava-louça e a torneira também já estava meia desmanchada. Perguntei se teria também que tirar a pedra da bancada. Não achou graça.

Agora não se pode, pura e simplesmente, usar o lava-louça. Mas não faz mal, amanhã lavo a fruta do pequeno almoço no lavatório da casa de banho. A louça posso lavar no bidé. Claro que, chegado a esta fase, já não aceita que eu goze com ele, está furioso. Diz que se calhar o problema está na bicha, que tem que trazer outra. Colecção de bichas cá em casa, portanto. E mais não digo porque ele lê isto e vai ficar fulo por eu estar a desvalorizar os seus fantásticos dotes de canalizador. Não estou nada. Acho até que fez um lindo trabalhinho. 😂

Mas, dizia eu, cheguei aqui e pus-me a ver vídeos e dei com este aqui abaixo, no qual Paula Rego fala do medo que sente.

(E, então, deu-me para escrever o que acabaram de ler.)

Paula Rego on Fear


Pintar para dar um rosto ao medo


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As pinturas que mostram o rosto do medo são de Graça Morais - mas o Corvo é de Karen Margulis e o Grito que é de Edvard Munch.


A música lá em cima é de Ry Cooder e faz parte da banda sonora de Paris, Texas.

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3 comentários:

bea disse...

Acredito que a arte seja um antídoto contra esses medos de infância ou mesmo quase genéticos e que são sensações presentes, acordas e estão lá. Medos como esses não sei se os senti. Se sim, não tenho memória. Medos pontuais, de coisas ou pessoas que me assustam, sim. Mas passam rapidamente. O que há é coisas e situações que me desinteressam e para que não me sei armar, como os conflitos. Podendo, evito: salto para o lado, pulo em frente, não avanço.

Mas não sou esse poço de ansiedade que a JM descreve como seu em relação aos filhos e às noitadas. Raramente me tiraram o sono e apanharam um raspanete em cada vez. Claro que saem à noite e nem sei por onde andam nem dou por chegarem. Temos que aprender a confiar. Se os meus meninos encontrassem uma data de chamadas minhas no telemóvel zangavam-se e nunca mais me contavam nada de nada (mesmo com a tal confiança que não incomoda nem bisbilhota, contam quase nada).
Em termos profissionais só as guerras abertas e prepotentes me causaram danos talvez irreversíveis. Nas coisas em que me metia não pensava em termos de vencer ou perder. Pensava que o empenho conjunto tinha de vingar, só podia. Éramos sempre muitos a defender um projecto.

Anónimo disse...

Olhe, UJM, cá em casa nem temos lava-loiças: usamos um balde que vamos despejar à sanita quando fica cheio de água depois de lavarmos a loiça. Volta e meia a minha mãe queixa-se que eu nunca mais ganho para ir ao IKEA comprar-lhe uma cozinha. Foi o que prometi: os primeiros salários que receber são para poupar para uma cozinha. Já não falta muito!

Abraço,
JV

Anónimo disse...

Medo, medo, só quando, em duas ocasiões diferentes, mas em ambas teria ela uns sete ou oito anos e eu uns onze ou doze, a minha irmã fugiu de mim na rua. Uma dessas vezes, quando andei à procura dela sem a encontrar, fiquei numa aflição tão grande que me senti a desfalecer. Nunca me tinha acontecido uma coisa dessas, nem nunca mais me voltou a acontecer: quase perder os sentidos com algo que não fosse físico (como uma queda que dei uma vez e bati com a cabeça). Da outra vez tive um ataque de asma, que era coisa que não tinha há anos: quase deixei de respirar e sentia o peito a arder. Horrível. Ralhei tanto com ela, depois de a encontrar, que percebeu que não podia fazer aquilo e não repetiu mais a graça.
Peripécias!
JV