segunda-feira, setembro 12, 2016

As mulheres que lêem são perigosas?





Já o contei aqui. Eu era bebé, tinha seis meses, uma leve penugem loura na cabeça, e estava no meu quarto, na minha caminha branca que tinha na cabeceira uma fita com uma lua de prata. E estava a dormir.

A minha mãe estava noutra divisão. Lá fora um cão ladrou e, a seguir, a minha mãe ouviu uma voz de bebé a dizer 'cão'. Assustada a minha mãe foi a correr ver que coisa estranha era aquela. Eu estava acordada e provavelmente a sorrir já que me dizem que eu estava sempre a rir e as fotografias assim o mostram. Depois o cão ladrou e eu disse outra vez: 'cão'. A minha mãe assustada largou a correr a ir chamar a vizinha da casa do lado: 'a menina falou!'. A vizinha disse que podia lá ser, são sons que os bebés às vezes fazem. Mas a minha mãe que não, que eu tinha dito distintamente 'cão'. Vieram as duas a correr e abeiraram-se da cama, queriam que eu repetisse mas eu não. Até que o cão ladrou e eu disse 'cão'. Quando o meu pai chegou encontrou-as assustadas e também não acreditou. Até que o cão ladrou e eu voltei a dizer 'cão'. Logo depois, ia eu ao colo do meu pai visitar a madrinha dele e, quando acenderam a luz, eu disse 'luz'. E toda a gente ficou assustada, um bebé tão de colo. Depois foi um dos meus tios, mais novo que os meus pais, o Manuel, a quem, na brincadeira o irmão e os amigos chamavam Lela. Quando cheguei ao pé dele, disse Lela. Aos poucos foram acreditando que eu estava mesmo a começar a falar. A minha mãe conta que devia eu ter uns oito meses e já dizia tudo, foi comigo ao mercado e eu não me calava, a dizer o nome das frutas e a perguntar tudo. E que as pessoas ficaram admiradas, um bebé de colo, praticamente ainda só com uma penugem na cabeça, a falar assim: 'Mas que idade tem o bebé...?!' e mal acreditavam no que viam.

E contam que eu falava, falava. Perguntava tudo, queria saber tudo e não me calava. Com um sapateiro que trabalhava ao pé da casa de uma das minhas avós ou com o pai de uma que viria a ser minha tia. Eles tinham paciência e eu, sem querer, abusava. Adorava as explicações que eles me davam, a forma como falavam, as palavras desconhecidas que usavam.

Depois foi a ler e escrever. Aos quatro anos, quando entrei para a infantil, já lia e escrevia. Quando cheguei à primária lia correntemente. Uma vez mostrei à professora umas fotografias e numa estava eu a ler a Crónica Feminina. O meu pai tinha-me apanhado a ler aquela revista e achou graça. A professora disse: 'Sabendo já ler, devias ler coisas melhores, isso não presta'. Fiquei incomodada. Gostava tanto de ler a Crónica Feminina. Tal como gostava de ler tudo o que me vinha parar às mãos.

Ainda gosto. Para onde quer que vá, vou com livros.

Mas, se páro na estação de serviço, ponho-me a ver as capas das revistas e, se tiver tempo, até folheio alguma. Se estou parada à espera que me chamem pela minha vez, seja onde for, estou no smartphone a ler o que calhar. Se apanho uma revista qualquer, mesmo que tenha meses, leio-a de uma ponta a outra. 

Quando era adolescente escrevia cartas a amigas que conhecia em intercâmbios de escolas, em acampamentos, a namorados, a pen friends que não conhecia de lado nenhum. Adorava receber cartas e escrever de volta. Longas cartas.

Aqui é o que se vê, escrevo como se não houvesse amanhã. Mais do que paixão por palavras, é quase um vício. Coisa de nascença, como se viu.

Mas, com os livros, dá-se uma coisa estranha. E não sei se devo dizer com os livros, se com a idade. Estou cada vez mais intolerante. Se a escrita me parece vulgar, se há palavras que me parecem mal escolhidas ou que melodicamente são dissonantes no texto mas o são por desmazelo e não por qualquer motivo justificável, ou se são histórias de uma banalidade rasteira, não consigo sequer fazer um esforço.

Eu, que era omnívora na leitura, agora, tal como na comida, estou cada vez mais exigente. Se já não consigo suportar comida muito puxada, carnes com muita gordura, coisas assim, e cada vez mais gosto de um bom peixe fresco cozinhado muito simplesmente e até pode ser acompanhado só com batatas e feijão verde cozidos,  ou de boas saladas, bem temperadas, e fruta de época - ou seja, a simplicidade, o sabor verdadeiro das coisas - nos livros parece que é a mesma coisa.

Tem a escrita que me parecer fluida, simples, genuína. E soar-me-á bem se contiver uma melodia que me leve nos braços ou se for surpreendente e me sacudir o espírito. No fundo, acho que, por um qualquer motivo, deve conter um fio que me conduza pelo caminho das palavras.

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Poderia agora enunciar alguns dos livros ou autores que, apesar de muito incensados, eu acho um saco ou quais os que, por estes dias, me têm por companhia -- mas, dado o adiantado da hora, por aqui me fico.

Acrescentarei apenas -- e não serei original ao dizê-lo -- que encontro em alguns blogs as características que me prendem tanto ou mais do que muitos livros que por aí vejo recomendados. Alguns estão aqui ao lado, na minha galeria lateral. Outros não.

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Mas o título do post era 'As mulheres que lêem são perigosas?' e acabei por não responder.

Muito sucintamente direi que acho que depende. A maioria será completamente inofensiva. Mas haverá outras que são perigosas. Muito. Cuidado com essas.

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Ao longo do texto, as pinturas são, respectivamente, de Gustave Courbet, Berthe Morisot, Raffaello Sanzio, Renoir, Robert Delaunay.

Leonard Cohen interpreta The letters.

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Queiram, se para aí estiverem virados, é claro, descer até ao post seguinte: Veneza como nunca antes foi vista.

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8 comentários:

Anónimo disse...

conheço mulheres, muitas, que não lêem um caralhinho porém são piores que uma cobra de barriga amarela :)
GG

bea disse...

Jeito manso, a menina é um prodígio disfarçado de gente normal. Ao contrário de si, entrei para a escola aos sete e sabia nadíssima; mas pronto, é verdade, aspiro à normalidade e naquele tempo o normal era mesmo não saber nada. Mas deve ter sido por isso - o total desconhecimento acerca do mundo das letras - que o caminho escolar me pareceu melhor.
As mulheres que lêem, pelo menos enquanto lêem, não bolem. Depois...bom, depois é com cada uma. Podem ser malinas como tudo, razoávelmente sossegadas ou até moscas mortas. Mas são mais exigentes em algumas coisas, sim.
E agora peço desculpa mas tenho e ausentar-me.

P. disse...

O gosto de ler, quer-me parecer, ter a ver com cada um de nós e com a maneira de se estar na vida. E da forma como fomos educados e nos transmitiram esse hábito. No meu caso, recordo-me de ver meus avós e pais a ler e a estimular o interesse pela leitura. Conheço gente que não lê - e que gosta de ler. E já conheci dois casos de total aversão à leitura. Aversão, sim. Este tipo de gosto, como o ler, tanto pode ser estimulado, como pode ser inato. Tal como a música, por exemplo. O nosso neto, de 4 anos, gosta muito de ouvir música clássica e até jazz embora seja igualmente sensível à música moderna, que o pai designa de música de plástico, pelo menos uma boa parte dela (e com alguma razão, diga-se). É certo que as ouve em nossa casa, mas a verdade é que não desgosta do que ouve. Recordo-me de quendo eu era miúdo, enfim com uns 7, 8, 10 anos, não gostava desse tipo de música que meu pai ouvia (nos tais fabulosos discos de vinil). Mas, depois, as coisas foram mudando e hoje aprecio imensamente! Outro dia fomos a casa de uns conhecidos e eles não tinham praticamente um único livro. Nada! Disseram-nos, com a maior tranquilidade: “nunca lemos. É uma perda de tempo!” Um tipo ouve isto e fica banzado! Mas, cada um é como é. Na família há algum equilíbrio: eles e elas ou são totalmente desinteressados, ou leem. Já o tenho dito por brincadeira, a minha mulher: “olha fofa, se um dia me divorciar de ti, a primeira coisa que escolho para levar comigo são os meus livros.” Retiro um prazer muito especial da leitura. É algo que me alimenta a existência – diariamente!
2. Não sei se leu o comentário, ou artigo, no Público on-line de hoje, de Francisco Louçã sobre a entrevista do tal super-juiz. Excelente. Concordo inteiramente com o que ele diz. No fundo, foi mais ou menos o que o meu amigo Desembargador disse, outro dia, sem ter lido Louçã.
3. Um pouco de humor: esse seu “almoço mediterrânico na base do manuri, figos, alface, feta, mel, pêra, beterraba, iogurte, azeitonas, vinho doce a servir de tempero, orégãos -- coisas assim”, deixou-me arrepiado! À parte desconhecer por completo no que consiste essa treta do manuri e feta,o restante, como os figos, vinho doce, iogurte (ao almoço!), etc, deixou-me de rastos! Você consegue sobreviver com semelhante dieta? E, como se não bastasse, voltou a “agredir”, ao jantar, o pobre do seu estômago com caracoletas e moelas! Se aplicasse essa receita ao meu estômago ele indignar-se-ia! Este fim-de-semana calhou-me ir até à Comporta, onde uns amigos têm lá casa. Já não ia lá há quase 5 anos. Não é lugar que me prenda, longe disso, devo dizer, mas por lá comi magnificamente, numas tasquinhas. Por exemplo: uns linguadinhos fritos, deliciosos, uns chocos, com um bom branquinho e tudo à maneira. Agora figos, iogurte, mel, etc, ainda me dava uma coisinha ruim! Eh, eh!
P.Rufino

Lúcio Ferro disse...

Em resposta à pergunta, parece-me que depende das leituras. Isso mencionado, é importante ler, independentemente do género da pessoa que lê (que saiba, só o ser humano tem a capacidade de ler). Boa noite e o prometido Hi 5 para si também. ;)

Um Jeito Manso disse...

Ui, GG, que a menina está danadinha para a brincadeira (a menos que esse que refere seja dos tais que se punham lá no alto do mastro). E sim, há-as más com e sem leituras!

Um abraço, GG!

Um Jeito Manso disse...

Olá bea,

Não sou prodígio coisa nenhuma, sou normal. Nem nunca me achei. Pelo contrário até me achava inferior nalgumas coisas a outras meninas. Por exemplo, via-me aflita para dar cambalhotas para trás quando outras o faziam na maior limpeza.

E é isso, enquanto lêem estão entretidas, não fazem mal. Mas diz que piores ainda que as que lêem, são as que escrevem.

Mas se calhar também é só ficção...

Um dia feliz, bea!



Um Jeito Manso disse...

Olá P. Rufino,

Muito rapidamente só para lhe dizer que manuri, feta e tal são queijos gregos. Sou altamente apreciadora da dieta grega.

E linguadinhos fritos com açorda de ovas foi o meu almoço hoje, deliciosos. Com um alentejano branco, bem frio, não lhe digo nada.

E livros, como lerá, ando, por estes dias, mais repórter fotográfica do que grande leitora...

E esse seu neto que pintarola... Música clássica e jazz. Não é nada comum. Os meus, se vão comigo no carro, aguentam um bocado mas depois é logo 'Ó Tá, podias agora pôr uma música menos chata...?'. Têm tempo de ouvr de tudo e fazer as suas escolhas.

Um dia bom para si, P. Rufino.



Um Jeito Manso disse...

Olá Lúcio,

Ler é importante, claro, mas tenho dúvidas quanto ao efeito ou utilidade de ler porcarias.

E perigosas são todas as mulheres que não têm homens (ou outras mulheres) à altura à sua frente. E aí acredito que a leitura seja munição relevante até porque, como tanta coisa nesta vida, o perigo 'é uma coisa mental'.

Um dia feliz para si, Lúcio.