terça-feira, maio 03, 2016

É nómada a tua língua e a minha, dizemos palavras sem morada.
Porque não há nada em vez de tudo? - perguntou o cientista.





Sob a superfície dos dias procuro o que não se vê, o oculto sob as águas verdes do lago, o obscuro entre a folhagem, as palavras não ditas, as que ainda não encontraram a expressão à luz do dia. Tacteio emoções, afloro aproximações. Receio e recuo.

Espreito as sombras, tento adivinhar os pensamentos ainda em esboço, procuro a luz nos espaços entre as ideias que ainda não se formaram, colo frases às imagens, a voz aos sonhos. 

Passo o olhar pelas árvores que ondulam na rua, passo o olhar em distantes fotografias, passo as mãos nas páginas nuas de livros que me trazem novas toadas, desconhecimentos, intimidades longínquas, experimentações.

Fecho os olhos, ouço a música, releio em pensamento palavras novas.

Depois olho outros livros que me falam da imensidão do infinito, de espaços sem fronteiras, quase esferas, paradoxos, equações impossíveis, espirais à solta num espaço vazio.

E penso outra vez: a elegância da ciência, a estética das descobertas.

O prazer de cruzar fronteiras.

O prazer de querer e não querer atravessá-las, o prazer dos primeiros passos.

Outro livro: 'a minha vida' de Isadora Duncan. Cruza-se a inquietação e a paixão de uma mulher livre com os espaços infinitos, os números primos, os irracionais e os imaginários, as redes complexas, os poemas novos. 

Não sei se há um denominador comum nos meus gestos, nas minhas divagações, nas minhas palavras, na forma como desenho interrogações para as quais não procuro resposta. Talvez apenas estenda linhas paralelas no espaço, talvez espere que alguém agarre na outra ponta e estabeleça um alfabeto comum. Há paralelas que se tocam -- leio-o e acredito. Novas geometrias, marés, voos, camadas de sonho, fractais de uma abstração simétrica, perfeita.

Detenho-me em silêncio. Vocês aí tão longe.

Conjecturas, dualidades, palavras estranhas para quem não procura senão a simplicidade do perfume de uma flor.

Fecho os olhos. Penso. Peço.
Conta-me do percurso do perfume da rosa dentro de mim, conta-me se são também paralelas as estradas que as palavras percorrem quando falam de perfumes e se são convergentes os olhares que se desconhecem. Conta-me os teus sonhos, fala-me de mundos transcendentais, de loucuras de uma pureza sem igual, de teorias de uma elegância nunca imaginada, fala-me de céus muito azuis, de águas muito límpidas, fala-me das tuas mãos.
Falo como se falasse para alguém que segurasse as pontas das linhas que lanço no espaço mas não sei se esse alguém existe. Talvez exista um ser igualmente estranho. Intangível como eu.

E, entretanto, enquanto aqui estou à espera de um sinal, fala-me, Daniel Jonas, de uma certa Casa Despida. Eu ouço.


Uma vez mais
a casa despida.
Lentas fotografias, moles molduras,
álbuns blindados, o pó de tudo,

o silêncio prevalecente
da despedida.
Uma casa mais
eu deixo.

Por vezes parece que
sou eu quem fica
e ela que me deixa.


E tu, Eugénia de Vasconcellos, responde-lhe que não é possível Tanta luz. Eu ouço-te e o Daniel também. Fala, que te queremos ouvir. Fala enquanto danças ao sol procurando onde guardar tanta saudade.

Na hora mais madura do sol,
tanta luz, e na curva da duna
nem uma nesga de sombra
onde guardar a saudade:
o tempo passou.


E olha, bela Eugénia, diz como acaba esse Não faz meu coração fronteira com o teu? 
Diz que estamos aqui para te ouvir.

O sol declina
e o esplendor não veio a derramar doçura.
Este dia e as horas deste dia são
um número a menos dos que me cabem contar.

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Tamara Rojo dances the first two waltzes of Frederick Ashton's one-act ballet Five Brahms Waltzes in the Manner of Isadora Duncan, 2004.

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Os poemas de Eugénia de Vasconcellos e a primeira parte do título desta mensagem pertencem ao livro 'o quotidiano a secar em verso' da Guerra e Paz. O poema de Daniel Jonas e a segunda parte do título da mensagem pertencem ao livro 'Bisonte' da Assírio e Alvim. 


Lá em cima Avishai Cohen Quartet interpreta Into the Silence - Live @ Blue Note Milano (com os meus agradecimentos ao Leitor que tão generosamente mo deu a conhecer)

As fotografias mostram Isadora Duncan.
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E caso tenham estômago para o absurdo e deslocado Passos Coelho que, no meu texto, se faz acompanhar por uns despudorados anjinhos papudos, queiram, por favor, descer até aqui abaixo antes que alguém o mande pôr-se ao fresco.

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