domingo, março 27, 2016

Uma vez mais:
O que é a arte?
-- a palavra aos Leitores Joaquim Castilho e P. Rufino


Pintura que integrou a exposição 'A felicidade em Júlio Pomar'

 


O que é a arte? Para que serve a arte?


Para que serve uma paisagem desértica ou uma montanha nevada?

A arte, tal como por exemplo uma paisagem, pode transmitir-nos emoções agradáveis ou penosas, evocar memórias, ampliar a nossa sensibilidade, permite-nos ver e sentir para além da realidade racional, objectiva e “ utilitária” do quotidiano.

Contrariamente ao que normalmente sucede com uma paisagem, a arte é uma construção levada a efeito por um produtor, um “artista” que pretende realizar com volumes, cores palavras, com fixações em telas ou em papel fotográfico, por exemplo, as emoções ou uma qualquer mensagem que ele próprio pensa ter descoberto e que julga interessante dar a conhecer a outrem. Esta actividade exige “inspiração e transpiração” e é muitas vezes penosa de realizar até o artista julgar ter conseguido atingir o objectivo pretendido.

Aprendi, como engenheiro de telecomunicações, que para comunicar algo a alguém é necessário um emissor, o artista, um receptor, o público interessado na fruição da obra de arte, e um meio de comunicação, o objecto artístico, mas também uma linguagem que seja compreendida pelo receptor sem a qual não existirá transmissão do que quer que seja.
Se um chinês me comunicar na sua língua qualquer coisa eu não irei receber nada porque não falo chinês.
Se não me for acessível a linguagem utilizada pelo artista, ou se ele não me facilitar essa compreensão, não posso entender o que ele me quererá dizer e não posso fruir a obra de arte.

Muitos artistas constroem uma linguagem que nos é perceptível pelo facto das suas obras nos conseguirem transmitir as emoções que teriam pretendido expressar mas nem sempre são exactamente as que o artista terá querido exprimir mas uma transmissão funcionou.

Ubu Roi III - Miró, 1966

Gosto do Miró ou do Pomar porque sou sensível à sua linguagem reproduzida em inúmeras obras. 

Detesto o Cabrita Reis por não consigo “sentir” o que ele me quer dizer. Chego mesmo a pensar que ele não “fala“ qualquer linguagem. Mesmo os especialistas que a procuram traduzir por palavras escrevem numa linguagem tão hermética que eu sou incapaz de a perceber.


I dreamt your house was a line - Cabrita Reis, 2003

As linguagens vão evoluindo através dos séculos. Há artistas que morreram e outros que continuam vivos porque as linguagens que utilizaram continuam vivas.

É normal que os artistas procurem sempre outras linguagens, sempre foi assim, mas procurar não significa necessariamente encontrar. Um dos problemas da arte contemporânea é que há demasiada sede de procura e raramente se encontram linguagens perceptíveis à nossa sensibilidade de “receptores” comuns mesmo que a procuremos ir educando e façamos um esforço nesse sentido.

Depois aparece a “máfia” dos galeristas, dos colecionadores, dos críticos, dos gestores de museus, curadores de exposições e editores revistas de arte etc. etc. desejosos de “valorizar” as obras de arte dos “se” artistas que ainda complicam mais a situação.
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Acrescento ainda alguma coisa à minha longa “narrativa“ (...) uma vez que (...) talvez seja falando de música, da linguagem musical, que o meu texto possa ganhar alguma verosimilhança! 

O canto gregoriano, a ars nova, as linguagens trovadorescas medievais, as oratórias. os madrigais, o nascimento da ópera, a música pré-barroca, o barroco, a musica clássica, o romantismo, o impressionismo etc., etc.

Linguagens que poderemos ir compreendendo e que nos vão facilitando a recepção de sonoridades diversas, de diversas épocas, que traduzem emoções, memórias, planícies e montanhas que descobrimos e por onde é bom viajar.

Die Lebensstufen (The Stages of Life), Caspar David Friedrich, 1835
Encontrámos desde o século passado o dedecafonismo, a musica minimal repetitiva e outras linguagens como a do referenciado Eric Satie, inclassificável como ele próprio, depois becos sem saída como Scelsi, Stockausen, Boulez, Xenakis que sábia e honestamente tentaram novos caminhos. Novas clareiras com Gubaidulina, Ligeti ou Part e tantos outros que procuram e talvez tenham encontrado e que terão aberto caminhos que os “mais famosos” vieram a revelar.

Botas como as de Van Gogh ou torturadas paisagens como as Caspar David Friedrich enriquecem-nos porque terá havido sempre e continuará a haver alguém que, através da Arte, nos quererá dizer qualquer coisa e nos irá sendo possível sentir o que nos querem transmitir mesmo sem os compreender. Ligação absolutamente necessária entre o emissor criador e o receptor fruidor da obra de Arte .


Texto da autoria de Joaquim Castilho, enviado através de comentários a posts abaixo

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Este tema, sobre o que é a Arte, é muito interessante e estimula uma boa e saudável discussão. 



Aqui há uns bons meses comprei um livro na FNAC que aborda esta questão de uma forma curiosa e mesmo cativante. Uma excelente obra. O autor é Julian Bell e o livro intitula-se, “Espelho do Mundo – Uma Nova História de Arte”. Já conclui a sua leitura há uns tempos e não me arrependi um momento sequer. É um livro grande, de muitas páginas, que leva tempo a ler – com atenção. (...)

No fundo, o significado de Arte tem também a ver com as sensibilidades de cada um. Da percepção que temos de objectos (um quadro, uma escultura, por ex) e sons (música), por exemplo. Mas, julgo também sobre o sentido desses mesmos objectos e sons. Da sua beleza. Da sua capacidade de nos atrair. Daquilo que podem significar e transmitir. E talvez também da dificuldade da sua execução (quer pela duração da sua concepção, quer pelo esforço mental que exigiu, etc).

Há muitas variantes no que respeita ao conceito que nos leva a definir Arte. E a Arte e o seu conceito evoluiu, ao longo dos tempos. E houve momentos em que aquilo que se seguiu, um novo estilo, foi rejeitado de início, para ser admirado mais tarde. Na Pintura (recordemos as primeiras reacções aos artistas Impressionistas, um dos vários exemplos), como na Escultura, como na Música (Stockausen, Xenakis, etc, aqui mencionados por outro Leitor que gosto de ler). Mas, também na Literatura. António Lobo Antunes, se bem me recordo, teve os seus contestatários pela forma como se revelou a escrever, ao não seguir a escrita com a pontuação tradicional (o mesmo para Saramago, que depois foi Prémio Nobel). Nalguns casos, o que chocou o conceito de Arte foi a sua (total) inversão.

Por exemplo, como dizia um crítico, a desconstrução de se conceber Arte.

La soupe - Pablo Picasso, 1902-1903

Picasso e outros foram exemplos disso (todos os movimentos que se seguiram ao Impressionismo, para além do Cubismo, o Surrealismo, o Expressionismo, Fauvismo, Futurismo, etc, ousaram reinventar a concepção de Arte).

Passaram a conceber a Pintura de uma forma até ali completamente diferente. Foram ousados e criaram um novo estilo. Inovaram. Goste-se ou não, ninguém discute hoje as suas qualidades artísticas e o seu lugar – relevante - na História da Pintura.

Le Rêve - Picasso, 1932

Naturalmente que há e houve em muitos casos, na concepção de determinada obra (Pintura, Escultura ou Composição musical), razões de natureza pessoal, experiências ou vivências desse tipo que levaram à concretização dessa obra. Os exemplos são vários, alguns até fascinantes. Agora, também terá de haver algum rigor para se considerar, ou incluir no conceito de Arte, determinada obra. É que nem sempre um excesso de ousadia, ou de inovação, ou de desconstrução, ou de abstracção, pode, ou deve, ser considerado Arte. Ou não deveria. Hoje, todavia, relativizou-se muita coisa, até na Arte. Por mim, desde que uma composição musical, um quadro, uma escultura, um livro, me fascine, pelo gozo que me deu de o desfrutar, já me sinto feliz. 

Les Deux Sœurs - Auguste Renoir, 1881

(PS: tenho imenso respeito por Martin Heidegger (com quem Herbert Marcuse colaborou, em particular num trabalho sobre Hegel – sempre admirei muito Marcuse), mas ainda hoje me custa entender aquela sua atitude perante o Nazismo, sobretudo vindo de alguém da sua estatura intelectual. Ficou a dever bastante a Hannah Arendt (com quem teve um “affair”, a sua recuperação, ou “desnazificação”). Outra nota: embora goste de Van Gogh, prefiro, por ex, Renoir (ou Monet, Manet)).


Texto da autoria de P. Rufino, enviado através de comentário a post abaixo

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Agradeço a ambos os Leitores os seus contributos e espero que não levem a mal que tenha puxado os seus comentários para o corpo principal do Um Jeito Manso.

A selecção de obras que usei para ilustrar o texto é da minha responsabilidade embora tenha sido feita a partir das referências dos seus textos.

A música lá em cima, Magnificat, é da autoria de Arvo Pärt.

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1 comentário:

JOAQUIM CASTILHO disse...

Ulá UJM!

Complementado as minhas simplórias considerações, que teve a coragem de transpor para o seu blog e por curiosa coincidência, na imprensa do fim de semana surgiu um artigo no Público e uma grande entrevista na Revista do Expresso do meu inimigo de estimação Pedro Cabrita Reis (tenho outros como o José Carlos Espada e o José Manuel Fernandes!!).
Vieram reforçar uma atitude que eu julgo poder diferenciar os artistas contemporâneos incluindo muitos da segunda metade do século passado dos artistas de séculos transactos.
Os artistas hoje trabalham para si próprios , com a linguagem única que eles próprios inventaram, não pretendendo dizer nada a ninguém mas se alguém perceber ou se sentir interpelado pela obra em questão tanto melhor. Eles, os interessados na arte, os visitantes de exposições, que procurem para ver se descobrem “qualquer coisa”.
Quando interrogados sobre o significado das suas obras escondem-se, na maioria dos casos em frases herméticas, que só para eles próprios poderão ter, eventualmente, qualquer significado.
Vejamos as declarações de PCR citadas do artigo do Público sobre desenhos de nus presentemente em exposição em Lisboa
“Aqueles nus são desenhos geométricos. Exactamente. Digo que são feitos com a mesma cerebralidade. Se quisermos, é um lugar estranho, de mistura. Aquele corpo que está ali não tem particulares traços de identidade ou de expressividade. É talvez o sítio em que se possa imaginar, afinal bastante bem, o encontro possível da racionalidade com a pulsão, a organicidade”
Entrevista pode ser lida em:
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/e-os-nus-emergiram-na-obra-de-cabrita-reis-1727119~
Por sua vez na longa entrevista do Expresso declara:
“Os desenhos são a minha reminiscência de ter pertencido ao mundo das árvores”
“Os que têm pensamento sobre o mundo são os artistas, os outros são praticantes de belas artes”
Também no Expresso e numa análise crítica ao livro de Rui Chafes “Sob a Pele” são citadas as seguintes afirmações de Rui Chafes transcritas do referido livro:
“A única escultura que me interessa é a não escultura, a escultura que é apenas uma sombra que existe “entre”, que não quer pertencer ao mundo!”
Se nos dermos ao trabalho de ler as críticas de artes plásticas que aparecem na imprensa, encontraremos também muitas frases pomposamente crípticas deste tipo, quanto a mim apenas pedaços de má literatura !
O próprio super-laureado Manoel de Oliveira foi citado como tendo afirmado:
“ Se um só espectador vir o meu filme eu já me dou por satisfeito”
Não é críptico mas traduz uma atitude muito na moda nas artes contemporâneas

Eu, apenas um curioso e interessado “nestas coisas das artes” , por mais que os vistam continuo a dizer que a maior parte dos Reis vão mesmo nus!!!!

Um abraço