domingo, março 13, 2016

Ir ao lugar do vinho




Lembro-me que o meu pai combinava com o irmão irem lá, falavam da qualidade das uvas, se chovia menos os bagos estavam mais doces, se a colheita tinha sido boa, e qual a melhor altura para lá ir, e se valia a pena trazer apenas do novo ou de outros anos. 
O meu pai tinha no quintal (e, agora que falo, lembro-me: que será feito disso? se calhar está para lá, ninguém mais se deve ter lembrado de tal coisa, tenho que perguntar à minha mãe), debaixo de umas escadas, uma casinha, bem fechada, escura, onde nunca dava o sol, onde guardava as garrafas. E ali guardava vinho de vários anos, não só de lá, lembro-me de irmos também ao Alentejo e ao Ribatejo, a umas adegas que ele lá sabia.

E depois decidiam ir. Nestas coisas nunca queria que eu fosse; a minha mãe, a minha tia e a minha prima não iam, acho que percebiam que aquilo era coisa de homens. Mas eu queria ir. Esse, justamente, era o tipo de coisas que eu não queria perder. Que não, que não, não há meninas por lá, não, não e não. Por fim, tão massacrado era, que acabava por me levar. Iam os dois à frente, esquecidos de mim, a conversar, e eu, no banco de trás, a espiar as conversas.

No porta bagagens iam vários garrafões vazios. Íamos pela estrada que leva a Azeitão, depois, à direita, saíamos da estrada e subíamos pela serra, campo, campo, não havia ali vestígios de cidade, subíamos, subíamos. Penso que duas vezes, pelo menos, foram para a pisa. Lembro-me. Só homens. Havia um tanque alto, de pedra, elevado. Os homens subiam um lanço de escadas para lá entrar. Tinham as calças arregaçadas e, numa feliz irmandande, pisavam os bagos sangrentos, as pernas enfiadas naquele sumo escuro, cheiroso. Sorriam, diziam graças, estavam alegres. Já naquela altura, assistir a momentos assim, deixava-me impressionada, como se estivesse a assistir a um momento mágico. Quem pensa que assiste a milagres deve sentir-se assim, o interior do corpo transido, como se o corpo estivesse a ser convocado para participar num momento único.

O meu pai não gostava que eu ali estivesse, os homens diziam asneiras, falavam com excessivo à vontade, não queria que eu ouvisse. Mas nada daquilo me incomodava, gostava mesmo era de ali estar, aquele perfume intenso a flores pisadas, a sangue quente, aquela intimidade profunda entre os homens e os frutos da terra.

O meu pai e o meu tio falavam com conhecidos, provavam vinhos, depois iam encher garrafões. No fim acertavam o preço, pagavam. 


Quando chegava a casa, o meu pai passava o vinho para garrafas, umas para o vinho que tinha a uso, às refeições normais, e outras em que havia um outro cuidado. Tenho ideia que aquecia as rolhas ou lhes punha cera ou parafina, já não me lembro. Devia querer proteger as rolhas ou que as garrafas ficassem bem vedadas. Essas iam para a casinha do vinho.
Se eu perguntasse ao meu pai, iria lembrar-se disso. Mas não lhe posso perguntar, senão fica a pensar, aflito por não se lembrar bem, a querer reconstituir os passos que antes dava, a querer transmitir o que se sabia e a saber-se limitado, as palavras por vezes faltam-lhe, fica impaciente, enervado, depois não dorme bem. Mas talvez a minha mãe se lembre. Tenho que lhe perguntar.
Mas aos anos que isso foi. Nunca mais fui para esses lados nem nunca mais me tinha lembrado disso.

Este ano, pelo Natal ofereceram-nos vinho de uma determinada Quinta, um vinho bom. Não relacionei.

Por acaso, no outro dia, um entendido em vinhos, pela relação preço/qualidade recomendou ao meu marido o vinho dessa quinta, e que lá o vendiam, que era a caminho de Azeitão, que se subia pela serra, que havia uma capela. Hoje, ao fim da tarde, resolvemos ir lá.


E, ao fazer o percurso, ao subir a serra, ao ver a ondulação dos montes, ao percorrer a estrada estreita ladeada de árvores, o desvio para a capela, a memória trouxe-me de volta aqueles verdes macios, aquela suavidade luminosa que adoça as encostas -- e eu no banco de trás do carro e o meu pai e o meu tio, à frente, falando de gente conhecida, de quem tinhas bons vinhos, dos vinhos que eram bons, dos novos ainda muito vivos, dos outros, com muito álcool, com tom depreciativo diziam, esse não, esse é carrascão.

Só hoje percebo bem essa linguagem. Já o contei aqui algumas vezes. Até há alguns anos eu não gostava de vinho, e, se bebia alguma coisa, nem precisava de beber meio copo para me desatar a rir, qualquer coisa que alguém dissesse me parecia hilariante e, mal acabava a refeição, caía num sono profundo. Por isso, não podia beber fora de casa. Uma vez, a meio de um almoço, felizmente só nós, depois de ter dado dois ou três goles, a custo levantei-me e a custo cheguei à sala. O meu marido foi atrás para ver o que se passava e quando lá chegou já me encontrou a dormir a sono solto.

Até que, há meia dúzia de anos, depois de ter frequentado um curso de vinhos, comecei a apreciar e, por estranho que possa parecer, passei a aguentar bem. Agora é com prazer que acompanho a refeição com vinho, é com prazer que tento identificar as notas que o compõem, que deixo que estacione na língua para que o paladar longo ali persista, que as papilas gustativas de lado sintam o seu sabor, e tento, a partir do sabor, perceber o térroir onde as uvas medraram -- e tudo sem que produza qualquer efeito negativo em mim. Apenas prazer.


Trouxemos algum vinho, de diversas castas e, uma vez mais, fiquei encantada com o lugar. Percebi que agora há lá turismo de habitação e, sob num telheiro, à entrada da loja, um grande grupo de caminhantes lanchava, na maior animação. Quando nos vínhamos embora, cantavam os parabéns a você e o aniversariante apagava as velas.

Fiquei com muita vontade de lá voltar com mais tempo, de entrar pela serra, de procurar uma queda de água que me lembro de haver por ali, uma ribeira. 

A Quinta é a Quinta do Alcube. 


Depois passámos por Azeitão e, porque já estávamos atrasados para um outro compromisso, não parámos mas deu-me uma grande saudade, há lugares lindos por ali (e umas tortas de ovos e canela deliciosas). Fica para outro dia.

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Tatyana Ryzhkova interpreta Fantasia La Traviata de Francisco Tarrega

As fotografias foram feitas este sábado no percurso para a Adega do Alcube e lá mesmo.
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E é isto. Caso vos apeteça, agora, descer até à praia e ver como estava bonito o mar neste Março felizmente solarengo, avancem até ao post já a seguir onde poderão ouvir poesia dita e cantada.

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4 comentários:

Anónimo disse...

Nessa região, "Setúbal-Palmela-Azeitão", um dos melhores vinhos que já bebi foi o "Domingos Damasceno" tinto (antes produzido por Kol de Carvalho, que entretanto vendeu essa sua posição, ou propriedade, ao que me consta). Ainda é possível encontrar. Se puder, compre e desfrute-o. Não se arrependerá.
P.Rufino

Fernando Ribeiro disse...

Não conheço a Quinta do Alcube propriamente dita, mas já lhe passei ao lado mais do que uma vez, há coisa de vinte anos (como o tempo passa!). Gosto imenso do vale da ribeira do Alcube, tão belo e tão suave, que desce desde as bandas de Palmela até à Aldeia Grande, onde passa a EN 10 a caminho de Setúbal. Também conheço o monte Córdova, que é o ponto mais alto da serra de S. Luis, tão bem fotografada por si na primeira e segunda imagens deste post. Vale a pena ir lá acima admirar a paisagem, que é muito mais bonita do que a do castelo de Palmela, quanto mais não seja porque do monte Córdova se vê Palmela. E a perspetiva sobre as serras do Louro e de S.Francisco (?) é muito mais bonita também. Desde então, nunca mais fui a esse vale e a essa serra, apesar de ter voltado várias vezes à minha querida Arrábida.

Um Jeito Manso disse...

Obrigada, P. Rufino, já nos vamos pôr em campo para ver se o descobrimos. Obrigada.

Um Jeito Manso disse...

Fernando,

Fala-me de lugares por onde muito passeei. Mas não sabia que aquele monte se chamava Monte Córdova.

Penso que deve ser nessa ribeira, num cenário lindo, que fiz alguns pic-nics com amigos dos meus pais. Lembro-me da doçura da luz da tarde entre as árvores.

Aqueles lugares são lindos e a Arrábida é uma serra especial na minha família. O meu tio, irmão da minha mãe, cuja morte muito me custou e que aqui aflorei muito ao de leve, quis que as suas cinzas fossem espalhadas na Arrábida.

Fico contente por ouvir um 'homem do norte' a falar assim destes lugares qu eme são tão caros.

Um abraço, Fernando.