Estava eu folheando a revista Bula e dou com umas cenas da Hannah Arendt armada em poeta, uma coisa que, a meu ver, é muito chocha, daquelas experiências a que algumas pessoas se dedicam quando lhes dá para o lirismo -- passarinhos pipilantes, gotas de chuva, pingo, pingo, amores incompreendidos, ventos que parecem lamentos e ameaçadoras nuvens cinzentas. E, quando já eu estava a franzir o sobrolho, dou com uma dissertação que ainda me deixou mais desconfiada: um texto todo prosa, com um título todo a armar-se ao poderoso mas, ó senhores, uma basbaquice de dar dó.
Não é que ela, como filósofa, não tenha obra capaz. Tem, e as suas palavras mantêm-se e manter-se-ão válidas forever. Não que eu seja entendida, claro, até porque é sabido que eu é mais cozinhados (podia dizer que eu é mais bolos mas, não, não gosto de fazer bolos porque requerem que se siga a receita e eu sou demasiado anarca). Mas, com a ligeireza que me caracteriza, posso dar-me ao luxo de mandar umas bocas a propósito de alguns temas mais exquisites. Por isso, com a devida licença dos fundamentalistas, deixem que o diga: uma pessoa pode ser boa na sua área mas sê-lo apenas num determinado ramo. Ora o ramo da Arendt, cá para mim, devia ser mais o mal, não o amor -- pelo menos a julgar pela conversa que abaixo transcrevo.
Hannah Arendt e Martin Heidegger |
E digo isto porque acho que ela não devia perceber bem o que era isso do amor -- e não percebia que não percebia -- senão não falava como o descreveu, como se isto do amor fosse matéria sujeita a dissecações e a escalpes e como se alguma vez uma criança fosse um 'entre' duas pessoas que se amam e mais não sei o que ela para ali diz, senhores...
A confusão que vai na cabeça das pessoas que têm o vício de dissertar sobre tudo e sobre nada mesmo do que não conhecem é uma coisa que aflige. Pôr-se uma pessoa a cortar o amor às postas é assim como pôr-se um burocrata da gramática a retalhar as estrofes do Lusíadas.
A confusão que vai na cabeça das pessoas que têm o vício de dissertar sobre tudo e sobre nada mesmo do que não conhecem é uma coisa que aflige. Pôr-se uma pessoa a cortar o amor às postas é assim como pôr-se um burocrata da gramática a retalhar as estrofes do Lusíadas.
Quando se encontrava o sujeito e se conseguia acasalá-lo com o predicado e com todas as outras coisas que, quando aprendi, se chamavam complementos directos e indirectos e que agora mudaram de nome, já uma pessoa se tinha alheado do sentido da coisa.
Senhores, nada pior que gente chata que tinge de mau feitio tudo aquilo em que toca, que isto de contar orações nos Lusíadas ou filosofar a propósito das crianças expelidas só pode ser mau feitio. Ora vejam bem o que aquela alma de Deus foi capaz de dizer sobre o amor (que é uma coisa tão simples, tão sem gramáticas, tabuadas ou receitas).
O amor é uma poderosa força antipolítica
“O amor, em virtude de sua paixão, destrói o ‘entre’, esse espaço que nos relaciona com outros e nos separa deles. Enquanto dura seu encanto, o único ‘entre’ que pode inserir-se no meio de dois amantes é a criança, o próprio produto do amor. A criança, esse ‘entre’ com que os amantes agora estão relacionados e mantêm em comum, é representativa do mundo onde ela também os separa; é uma indicação de que eles inserirão um novo mundo no mundo existente. Por meio da criança, é como se os amantes retornassem ao mundo do qual seu amor os expeliu. Mas essa nova mundanidade, resultado e único final possíveis de um caso de amor, é, num certo sentido, o final de um amor, que deve superar novamente os padrões ou ser transformado em outro modo de estar juntos. O amor por sua natureza não é mundano, e é por isso — não por raridade — que é não apenas apolítico, mas antipolítico, talvez a mais poderosa de todas as forças antipolíticas humanas.”
(Trecho de “A Condição Humana”, de Hannah Arendt)
...
E já agora, para que não pensem que tenho alguma coisa contra a senhora -- claro que não tenho -- vejam bem um dos seus poemas (supostamente feito a pensar no seu amor, o Heidegger, aquele chato que, no meio de algumas de jeito, se se distraía enchia páginas a falar da coisidade das coisas e de outras coisidades do género)
Por que você dá sua mão
Envergonhado, como se fosse um segredo?
Você é de uma terra tão distante
Que não conhece o nosso vinho?
...
....
De qualquer forma, não sou fechada à erudição pelo que se houver aí algum Leitor dado às ciências ocultas e que consiga descortinar siso e profundidade, quiçá até profundidade de campo, no primeiro texto ou sentido estético no pequeno poema, pois é só explicar-me, mas explicar devagarinho, que eu, com a minha abertura de espírito, cá estarei para tentar alcançar.
Já agora, porque acima referi aquilo de ela ser expert no mal (e isto de dizer que ela é uma expert já sou eu a querer portar-me bem; podia, em vez disso, falar em skills -- e, lá por estar com este linguajar de consultora de meia tigela, que não se pense que há menos respeito; isto é só mesmo uma maneira de sacudir a poeira), uma cena do filme homónimo dirigido por Margarethe von Trotta:
Hannah Arendt (Banalidade do Mal)
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma belaquarta-feira (corrijo, depois de ver o comentário abaixo) terça-feira!
E divirtam-se, ok?
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela
E divirtam-se, ok?
10 comentários:
Caso para dizer - Entre os dois .. venha o diabo e escolha.
Ri.
Pois não é, Rosa...? Já imaginou uma cena de namoro entre aqueles dois? Deviam ser daqueles maçadores que, se um punha a mão na perna do outro, logo esse se punha a dissertar sobre a razão de ser da mão naquele local naquele momento. e a seguir cada um ia para sua casa escrever longas dissertações um sobre a coisidade do amor e outro sobre o sentido da palavra coisa.
Enfim: ainda bem que há sempre uma meia rota para um pé coxo.
Estava o caldo entornado e as sopas secas!!!! - continuando numa de culinária.
Pois é, essa da culinária até dava agora para umas belas metáforas... :-)
Como diz a canção do JORGE PALMA,com todo o respeito...hoje é terça feira,ILUSTRE SENHORA ! Desejo a quem por aqui "passa",um bom dia !
Há gente para quem o sexo é irrelevante. Vivem de uns tantos orgasmos mentais, através de elucubrações etc. Há-os no nosso mundo normal. E não são tão “avis rara” como isso. Recordo-me de um dia, já lá vai uma meia-dúzia de anos, de ter almoçado com um representante dessa espécie. Era um almoço de trabalho. Tenho sempre o cuidado de, quando me aparece uma criatura destas, ser eu a escolher o restaurante, pois essa gente não se interessa igualmente por gastronomia. A vida deles gira à volta das tais elucubrações (o curioso é que parece, ao que consta, serem felizes assim!). Comer, beber um bom vinho, passear, e dar uma queca é coisa que não faz parte das prioridades deles. Se pudessem, para facilitar, tinham a boca na barriga: abriam-na com um Zip e deitavam para lá o que lhe pusessem no prato e nuns segundos resolviam a questão, sem mais preocupações. Degustar, é palavra que desconhecem. Mas, dizia eu, lá escolhi o restaurante. Cheguei primeiro. Apareceu-me pouco depois (estas espécies são pontuais. Chegam exactamente a horas, nem mais, nem menos um segundo, antes ou depois. Vivem, até nisso, como cronómetros. Uns chatos!). Vestia-se a condizer. Com um fato cinzento maior do que ele. Parecia um saco de batatas ambulante. Sentámo-nos e de seguida lá veio a empregada com a Lista. Olhou para aquilo como o meu cão olha para um quadro. Folheou rapidamente e depois, sem capacidade de escolha, perguntou-me: “o que vai comer?” Uma frase fatal para mim. O que é que o gajo tem a ver com isso? A cabeça não sabe decidir, só tem elucubrações teóricas? Não o informei da minha escolha e fiz-lhe uma sugestão. Optei por algo pouco imaginativo, “tipo bife-com-ovo-a-cavalo”. Para estes intelectuais, qualquer coisa serve. E serviu. Nunca olhou para o prato. Só para mim. O gesto de levar a comida à boca era automático. Mas, percebeu quando o prato já estava vazio. Pura intuição, ou cálculo matemático (tipo, isto implica tantas colher a levar à boca)? A certa altura da conversa, já farto dele e dado que a nossa empregada era uma beleza (o que salvou o cinzentismo do encontro e me fez perder de algum modo o rumo da conversa), não me contive e, numa (fútil) tentativa de o chamar à vida terrena, disse-lhe: “oiça lá o Fulano, você já reparou na empregada que gentilmente nos tem vindo a servir? É um espanto! Caramba, Deus estava atento quando a estavam a tentar fazer!” Obviamente, não tinha dado conta! Quando ela voltou para levantar os pratos e indagar sobre a sobremesa (com um sorriso lindo, uma boca sensual, um olhar delicioso, um peito divinal, um rosto belo e tutti quanti), lá se dignou deitar-lhe um olhar furtivo, indiferente. Aquilo foi demais para mim. Atirei-lhe, simulando um sorriso (saiu-me um esgar): “você fez voto de castidade?” Que não. Era casado. Comecei então a imaginar a mulher. Alguém sem sexo, fisicamente um “blend” entre a Irmã Lúcia e a Madre Teresa de Calcutá. Já não pedi sobremesa. Fiquei-me pelo café. Após o que paguei e corri com ele: “então vemo-nos depois, para a semana!” Lá foi, desengonçado. Já, só, agradeci à pequena, dei-lhe uma boa gorjeta e deixei-lhe um sorriso. Retribuiu-me, com umas palavras simpáticas. Foi a única coisa boa do almoço. É que nem me soube, com uma presença daquelas à minha frente! Já nem do nome dele me recordo. Mas, não me admiraria que fosse: “Martin Arendt”.
P.Rufino
Viva UJM!
O poema é uma delícia, obrigada por partilhar.
Não pediu sobremesa, P. Rufino? Que a falta de apetite dos outros não tire a sua, credo!
JV
Olá JV, bons olhos a vejam!
Chegou a arrasou! Gostei!
Olá Firme,
Li o comentário no telefone e não deu para emendar, fiquei roída até chegar a terra firme e poder alterar.
Obrigada! E obrigada por me ter feito rir.
Olá P. Rufino,
Deu-me vontade de rir o seu comentário e agora quando ia responder vi o comentário da JV e ainda mais me ri.
Haja alegria!
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