segunda-feira, janeiro 18, 2016

Fatti non foste a viver come bruti




Nunca fui de fazer poemas. Sinto, desde sempre, que não tenho competência para tal. Quando adolescente, intuía que, se me pusesse a escrever, me sairiam poemas vulgares, lágrima a rolar na face, passarinhos cantando nos galhos, nuvens brancas sobre céu azul.
Verdade seja dita que também nunca fui de amores não correspondidos, sempre fui mais dada a paixões de caixão à cova, e essas, em mim, mais depressa são de pegar fogo do que de alimentar arroubos poéticos. 
Nem aqueles poemas chorosos de amores imaginários ou sofridos mereceram alguma vez a minha atenção. Acontece também que, graças a algumas primeiras impressões, bani dos meus gostos alguns poetas que conheci através de poemas demasiados líricos para o meu gosto. Ainda hoje mantenho preconceitos contra, por exemplo, Florbela Espanca a quem, se me forçar a ler, reconheço elegância verbal e sentido poético. Mas, não sei explicar, parece que, para mim, há ali um excesso de sentimento que me afasta -- e é que nem será excesso de sentimento, será mais uma ausência de processamento do sentimento; não sei explicar. Sei é que não me atrai.


Já uma vez contei aqui: teria eu uns dez ou onze anos, no liceu, ao fazer uma redacção, deu-me para fazer um poema. A professora ficou impressionada e pediu à minha mãe autorização para o mandar para o jornal da cidade. A minha mãe autorizou e o jornal publicou-o. Uma vez, na rua, cruzámo-nos com uma amiga da minha mãe que vinha fungando. Contou que tinha passado pelo edifício do jornal que tinha, na rua, um placard de vidro onde estava exposta a última edição, justamente na página em que estava o meu poema -- e que se tinha emocionado. À minha mãe aquilo também lhe dava para o sentimento e confessava-se surpreendida com esse meu feito. Eu ouvia a conversa e observava, com uma certa estranheza, a emoção delas e era como se nem tivesse a ver comigo. Aquilo tinha-me saído, sem pensar, sem saber bem o que escrevia. Ainda hoje me lembro: era como se uma toada se tivesse formado na minha cabeça e eu, sem refrear, a deixasse plasmar-se no papel. Mas não fiquei impressionada ou envaidecida. Era como se aquilo tivesse acontecido por acaso (ou não se tivesse verdadeiramente passado comigo, pelo menos não com aquela que eu era habitualmente).

Reparem, por favor, no avião que vai a passar no canto superior direito
-- um elemento real num cenário irreal.

Também aqui há tempos, sem que eu percebesse como nem porquê, mal chegava ao emprego e ligava o computador, sem pensar, escrevia um poema. Era coisa que durava uns dois ou três minutos. Guardava-o e nem pensava mais no assunto. Tempos depois, lembrei-me disso -- e vi-me aflita para os descobrir, não me lembrava que nome teria eu dado ao ficheiro. Quando descobri, li e fiquei surpreendida. Não é que os achasse bons ou maus: pura e simplesmente não os reconhecia, era como se não tivessem sido escritos por mim. Muito estranho. Nunca mais os li, não quero comprovar que, de vez em quando, me desconheço.

Tirando isso, a mim, devota da poesia, não me dá para me aventurar por aí. Sei que não tenho arte, poder de síntese, depuramento ou elevação suficientes para decantar as ideias ou as emoções de forma a exprimir-me capazmente em linguagem poética.

Mas, se não me dá para escrever poesia, dá-me, isso sim, para a consumir com assiduidade e reverência. Não deve haver dia em que eu não procure a leitura ou a audição de, pelo menos, um poema. Tendo formação e ocupação profissional em áreas que são do mais árido possível no domínio da palavra escrita, não sei explicar que amor é este, das palavras feitas poesia. Mas os amores não se explicam: vivem-se.


Há pouco, uma vez mais, lia Manguel e, como sempre faço neste tipo de livros, leio tentando não memorizar para que, a cada vez, possa surpreender-me; forço-me à ignorância. Abro ao acaso, leio e, por vezes, sinto que já li antes mas, se me agrada, continuo a ler e sempre assim, ao de leve, uma aragem que me traz um conhecimento que passa.

Transcrevo uma parte que me agradou:
Talvez essa perseverança de uma voz seja a única verdadeira justificação da poesia.
A poesia não oferece respostas, a poesia não pode apagar o sofrimento, a poesia não trará um ser amado de volta à vida, a poesia não nos protege do mal, a poesia não nos concede força ética nem coragem moral, a poesia não vinga as vítimas nem castiga os que as vitimam. Tudo o que a poesia pode fazer, e só quando as estrelas são caridosas, é emprestar palavras às nossas perguntas, ecoar o nosso sofrimento, ajudar-nos a recordar os mortos, nomear as obras do mal, ensinar-nos a reflectir acerca das consequências da vingança e dos castigos, e também da bondade, mesmo quando essa bondade já não existe. (...)
Este poder da poesia é algo que há muito conhecemos, ou talvez sempre tenhamos conhecido, desde os primórdios da linguagem, um conhecimento tornado maravilhosamente evidente nos primeiros cantos do Purgatório.
(...) Até em Auchwitz, onde nada já parecia ter importância ou sentido, a poesia era ainda capaz de atiçar resquícios de vida em prisioneiros como Primo Levi, oferecer a intuição de 'algo gigantesco', acender no meio das cinzas a centelha da velha curiosidade e fazê-la arder mais uma vez, em chamas eternas.
....


(...)
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece a paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelo e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
(...)

"Se questo è un uomo" de Primo Levi é interpretato por Dino Becagli sobre música de John Williams (banda sonora de A lista de Schindler)
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O título da mensagem (Fatti non foste a viver come bruti = Não fostes feitos a viver quais brutos) foi retirado de Divina Comédia, Inferno, XXVI e é referido no livro de Manguel


Já aqui acima, Carlo D'Angelo (1919-1973) lê Inferno, Canto XXVI, Divina Commedia - Dante Alighieri (1265-1321). As ilustrações que se vêem no vídeo são de William Blake (1757-1827), Gustave Dore (1832-1883), Alessandro Vellutello (1473-?).

No texto, o excerto transcrito, em itálico, faz parte do capítulo 16, 'Porque é que as coisas acontecem', do livro 'Uma história da curiosidade' de Alberto Manguel

Por recomendação de Fernando Ribeiro a quem muito agradeço, lá em cima o Maestro José Atalaya conduz (sublimemente) a Orquestra Raizes Ibéricas na interpretação do Adágio para cordas de Samuel Barber.

Fiz as fotografias ao fim do dia. Depois de ter estado rodeada pela criançada -- alegres, ruidosos, felizes da vida -- quando me vi sozinha, olhei o céu e, com assombro, vi-o assim, como se estivesse em chamas (não todo, mas um bocado do céu estava assim: indescritível, inacreditável).



E, para acabar: o Paraíso

L'amor che move il sole e l'altre stelle



Roberto Benigni recita Dante (Paradiso: Canto XXXIII)

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana, a começar já por esta segunda-feira.

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1 comentário:

Anónimo disse...

Ontem, ao fim da tarde, já o sol se tinha posto, enquanto conduzia para casa, ouvi na rádio (creio que na Antena 1) entre outras superstições de que se não deve fotografar o pôr do sol pois, ao que percebi, tal acordaria os anjos, que acabavam de adormecer (até ao amanhecer?).
A a acrediar nisso, a UJM terá acordado algum?
P.Rufino