sexta-feira, janeiro 15, 2016

Crime e castigo




Passeio pelas margens do rio. As terras estão encharcadas, cheira a lodo, a terra fértil, as árvores mergulham os ramos na água, os pássaros cantam, as gaivotas, os patos e os mergulhões desfrutam o prazer de existir. Está frio mas não muito. O dia está claro. Aspiro o ar fresco, ando devagar para não assustar as aves, aproximo-me das margens onde a terra quase se afunda tanta a água, gosto deste cheiro, gosto destas cores.


Depois começo a fotografar as igrejas. A esta hora, a luz está branda, ficam bonitas as igrejas recortadas contra os montes. São imponentes estas igrejas. Mais logo irei para lá mas, por enquanto, continuo a caminhar junto, mesmo junto, às margens do rio Minho. É de longe, agora, que observo estas casas feitas para serem de evangelização, de oração.


Se eu fosse arquitecta, me pedissem para desenhar uma igreja e me dessem carta branca não sei se faria um edifício imponente. Acho que não. Contudo, um edifício grande cumpre o objectivo de se ver de longe, talvez atraia os descrentes, talvez mostre onde se devem dirigir os que precisam de pedir por alguém ou de chorar o seu arrependimento. Não sei.

Eu, quando entro numa igreja, sinto-me bem. É uma casa aberta onde qualquer um pode entrar, descansar, meditar. E são espaçosas, bonitas, uma pessoa sente-se em liberdade ali dentro. Eu, pelo menos, sinto. Também só entro por pouco tempo e, geralmente, calha não estar a haver missa.


Quando entro numa igreja, gosto de ver a talha, os santos, os altares, as pinturas. Depois, inconscientemente, ocorre-me pedir pelos meus. Depois aborreço-me comigo: não sendo crente, que sentido faz entrar ali para me pôr a pedinchar? Dou por mim, então, quase a pedir desculpa por ser tão inconveniente. Mas estou a pedir desculpa a quem?

Penso, então, que seria bom que a igreja fosse sempre um lugar de recolhimento, de generosidade e tolerância, em que a diferença fosse aceite e o erro compreendido. O Papa Francisco tem vindo a aproximar a igreja das pessoas e isso comove-me. O Papa Francisco comove-me, acho que é um homem bom, que gosta genuinamente das pessoas, que quer que a igreja seja um lugar de inclusão.

Depois, dirijo-me à vila. Ao caminhar rente à água vejo um pássaro negro contemplando a água. Penso que o seu negrume contrasta com a brancura da garça que tinha visto no outro extremo. A vida é feita de opostos.


E, então, quando chego ao centro da vila e me preparo para procurar uma das igrejas que tinha visto quando caminhava junto à margem, lembro-me de olhar para cima, para o monte que começava a ficar envolvido em névoa. No topo, uma imagem terrível: uma forca, o suporte de pedra onde, bem à vista de todos, a alguns era retirada a vida. Arrepio-me ao ver tão tenebrosa imagem. Procurava eu um lugar de apaziguamento e vejo ali a prova de como os homens puderam exercer tão implacável castigo sobre os seus iguais. Imagino alguém ali pendurado, em estertor, e cá em baixo, na vila, as pessoas a verem, talvez com indiferença, talvez até com contentamento.


Já não acontece, foi há muito, muito tempo, O que, na altura, era tido como um castigo, agora seria visto como um crime. E bem. Mas em quantos lugares ainda há déspotas, alarves, estúpidos, anormais, tarados que, em nome de religiões, ideologias, ou, até, amor, tiram a vida aos seus iguais? Uns dando um tiro na cabeça ou degolando indefesos ajoelhados, outros apedrejando ou chicoteando, outros queimando com ácido, outros também enforcando e tantos, tantos, agredindo, tantas vezes agredindo até à morte - quantos crimes acontecem ainda hoje? 

Pensei, então, que talvez seja boa ideia que se preserve aquele monumento, aquela prova da maldade e demência humana -- para que nos lembremos daquilo a que não deveremos nunca voltar.

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Mais tarde, quase ao fim do dia, já em Espanha, Baiona, outra igreja, de pedra, pedra sobre pedra, sóbria, muito antiga. Um casal idoso, de braço dado, caminha para lá. Vou também.


Penso na forca, não me sai da cabeça. Penso que a igreja deve ser o oposto da forca mas, tantas vezes, não foi.

Entro. Muito bela, muito simples, silenciosa. Um lugar de aceitação, de compreensão, de tranquilidade e paz.


Depois, procurei, de novo, a beira da água. As cores do fim do dia muito bonitas. E muito frio, muito.


Então, o meu marido sugeriu que entrássemos num daqueles cafés simpáticos onde os espanhóis se juntam a 'picar' e a conversar ao fim do dia. Chão de madeira escura, mesas e cadeiras de madeira, luzes acolhedoras, gente animada lá dentro, velhos, novos e até crianças. Eu bebi um chocolate espesso, quente, ele uma cerveja gelada. Ambos ficámos bem melhor.

E eu a tentar esquecer-me do diabo daquela forca maldita que encima o monte junto ao centro
de Vila Nova de Cerveira -- uma vila linda, estimada, dedicada às artes.


A evolução e regressão do homem

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Sobre o desaparecimento de Alan Rickman, dono de uma voz assombrosa, falo já a seguir.
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