Agora, enquanto escrevo, espreito o rio. Parece adormecido, escuro. As luzes das cidades que o aconchegam no seu sono cintilam em sua volta. Mas o silêncio que de lá vem é de sossego, paz. A estas horas as pessoas que precisam da sua presença aquietam-se nas suas casas, permitem que ele, intrépido marinheiro, repouse.
De manhã, mal o meu dia começou, foi por lá que andei. Estão dias azuis, não há vento, nem frio, e, quero acreditar, nem sustos a rondar. Há pequenos e grandes veleiros deslizando nas águas. Podiam ser pássaros brancos ou pequenas esculturas que tivessem voado da caravela de pedra, podiam ser desenhos de crianças. Pudesse eu voar, alcançar os barquinhos, estender os braços e colher a água nas mãos abertas.
Os bichos que, tal como eu, precisam da companhia da água bebem desta serenidade e estão, em paz, contemplando a leveza que o azul tinge de luz, a lonjura que brilha até à linha de horizonte. Em que pensam? Ou não pensam, limitam-se a existir, felizes nos seus esvaziamentos, absorvendo toda a beleza que os seus olhos inocentes abarcam?
Ando em passos suaves, tento que nem se apercebam da minha presença, não quero perturbar a sua meditação. Ouvirão o seu respirar, talvez a respiração das águas, talvez sintam no seu pequeno coração as juras de amor que os apaixonados deixam escritas naquelas paredes que o tempo sedimenta. Talvez achem graça ao humor doce com que os brincalhões os brindam, talvez se riam, talvez troquem, entre eles, malícias e travessuras.
Estão habituados a tudo, estes bichos da beira do rio: à música das águas, aos peixes que os pescadores do cais trazem a saltar na linha, às vozes de mil línguas que cruzam a rua, ao ranger das cordas, às sirenes dos navios, ao sopro das ventanias, ao choro das chuvas e à calmaria dos dias, como o de hoje, em que o rio corre, calmo, levando barquinhos elegantes, com velas brancas como véus nubentes.
Um gaivotinho (?) pintado de perdiz passeava, curioso, pela amurada do cais e, quando me sentiu, olhou-me intrigado. Baixei-me, quis que me sentisse próxima de si, e ele retomou a marcha, devagar, olhando-me. Tivesse eu mais tempo e teria, também eu, pousado ali no chão, rés da água, para que ele se aproximasse de mim, para que visse que sou bicho de paz, como ele.
Mais à frente uma gaivota, orgulhosa na sua bela plumagem, meditava na ponte junto ao barco acostado. Acerquei-me. Gostava de sentir com os meus dedos a macieza alva e platinada das suas penas. Mas o meu olhar sente-a, o meu olhar tem tacto. A gaivota olha-me mas logo percebe a minha insignificância. Deixa que eu a fotografe, a ela altiva criatura dos largos espaços, habitante dos mares e do rio, dos silêncios, dos largos espaços. E eu tento honrá-la, mostrando-a na sua beleza superior.
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Havia nesse tempo uma espécie de sol,
e era ao cimo da água,
e eu no fundo do mar.
E via aquele brilho sem saber que era o sol,
só uma linha difusa a clarear
lugares do nunca.
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Yiruma interpreta River flows in you
O título do post foi retirado do poema Adamastor de Ana Luísa Amaral do qual extraí o excerto aqui acima. O poema faz parte do livro 'A vista desarmada, o tempo largo' (poetas em homenagem a Vasco Graça Moura).
As fotografias foram feitas este sábado no Ginjal
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo.
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