domingo, dezembro 06, 2015

Molhado o rosto de areia e de sal, pelas ondas, e o vento desenhado com traços de alegria e desalento, mais o estampido da rebentação


Se, como abaixo contei, comecei o meu dia rente ao rio, já de tarde andei, uma vez mais, junto ao mar. Pelo meio, ocupei-me de afazeres domésticos, tantos, de afazeres familiares, o meu pai abatido depois do internamento hospitalar, a minha mãe sempre atarefada, ocupei-me de compras natalícias (tanto me recomendam que, como habitualmente, não deixe tudo para a última hora, que hoje já comecei a cumprir a missão -- mas a que custo... Ir para um centro comercial ao fim de semana é sacrifício a que me custa muito sujeitar: muita gente, muito calor e eu muito impaciente).

Mas, algures a meio de tudo isto, fomos até à praia. Uma tal maravilha, uns momentos tão, tão bons. Apanhámos sol, passeámos, fotografei as águas azuis e verdes, os surfistas que cavalgam as ondas, as gentes que se alimentam de luz, aspirei a o ar limpo, senti a frescura alva que se evola da rebentação.




A beleza é muita, a felicidade que se desprende de uma natureza assim é também muita, muito genuína, muito simples, e as pessoas aproveitam o privilégio que é habitar um mundo assim, cheio de paz e luz. Umas caminham águas adentro, outras deitam-se na cama de areia macia, outros sentam-se na beira da praia, conversando, sentindo o tempo a oscilar, sereno e infinito como as marés.


E muitas passeiam, passam sorrindo, falando, namorando, desfilando o seu corpo feliz, banhado pelo sol. Uns para cá, outros para lá, e eu, ser invisível, fotografando sem que ninguém me veja, caminhando entre vozes, risos, maresias.


O mundo neste estradão à beira-mar é um mundo diverso: enquanto uns se deitam, corpos quase nus ao sol, outros mergulham, afoitos, nas águas revoltas, enquanto uns brincam com os cães junto ao rebentar das ondas, outros lêem um livro, absortos em relação à vida que os rodeia, enquanto uns andam descalços, escorrendo depois de saírem do mar, outros usam meias, botas, agasalhos.


A criança brinca com o cão e o cão brinca com a criança, um tenta enganar o outro, e o outro finge que se deixa enganar. O menino tem a vida inteira à sua frente e um mundo para reconstruir, o cão tem a sabedoria dos animais que sabem, desde sempre, que a única coisa que importa é o afecto incondicional, o afecto presente, o afecto expresso, declarado, vivido, retribuído.


E há Apolo feito homem. Não sonho, não mito, não lenda, não figura de pedra ou desenho de pintor: um corpo vibrante, apressado, caminhava ao encontro das águas. Como um lençol com dobras de rendas e espumas, o mar convidava e o jovem avançava resoluto ao seu encontro. Cavalgará, esporeará as ondas, por-se-á de pé, desafiando a força das águas que se elevam, deitar-se-á deixando que a carícia das marés o abracem com vigor.


Depois entro eu. Quase. Caminho pelo pontão, vou até ao fim, vou para perto do rebentamento. Percebo a atracção pelo mar, pelo fundo do mar, pela rebentação. Sinto o ar molhado, os salpicos brancos e frescos. O chão está molhado, poças de água, as rochas estão escorregadias. Um pouco mais abaixo, as rochas estão lavadas por mil águas e o perfume da maresia é intenso. Pudesse eu, ah pudesse eu deixar-me ir, descer até onde o corpo sentisse o mar intenso, deixar-me ir, mergulhar neste mar encantado e cheio de vida. 


Saímos com a luz a esvaecer-se, o sol a deitar-se sobre o mar, a espalhar a sua luz sobre o rebentamento suave onde os cavaleiros das ondas deslizam. Na beira da água uma mãe brinca com o filho, debruça-se, talvez lhe ensine o prazer do mar, talvez escute as suas perguntas, talvez lhe diga poemas onde as palavras cheirem a limos, a algas, a medusas transparentes, a ondas luminosas.


Vem sobre os mares,
sobre os mares maiores,
sobre os mares sem horizontes precisos,
vem e passa a mão pelo dorso da fera,
e acalma-o misteriosamente,
ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

.......

E agora dancemos nas águas, chapinhemos como crianças, brinquemos, festejemos a frescura da alegria nos dias de sol

......

O excerto de poema acima pertence a Vem, noite antiquíssima e idêntica de Álvaro de Campos in Antologia Poética de Fernando pessoa com ilustrações de Pedro Proença.

O título do post faz parte do poema Marés vivas de Agosto de José Carlos de Vasconcelos in 'A vista desarmada, o tempo largo' (Poetas em homenagem a Vasco Graça Moura.

Lá em cima no vídeo é o Poema azul de Sophia de Mello Bryner, voz de Maria Bethania.

O bailado é Vollmond (Lua Cheia), uma coreografia de Pina Bausch.

As fotografias foram feitas na Costa de Caparica.

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E queiram agora, se vos apetecer, claro está, descer até à beira do rio onde comecei o meu dia. 

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1 comentário:

Pôr do Sol disse...

Olá Jeitinho,

Tambem eu andei a saborear o ar saudavel dessas paragens, visitando amigos que têm o previlegio de viver na Costa de Caparica.O nosso poiso para o cafe, é mais no K Bar. Nunca simpatizei com o espaço do Barbas.

A conversa andou à volta das maravilhas daquela zona, o prazer de um dia de sol e da preocupação sobre a modificação do clima. Estamos no fim de Novembro e a chuva nao está prevista. Com as ruas cheias de folhas, sargetas cheias de lixo e a pouca prevenção habitual das camaras, esperamos que não haja mais casos como Albufeira.

A "obrigação" das compras de Natal é feita on line, ando sem vontade nem paciencia para euforias.Pode ser que o espirito de Natal me ilumine lá mais para diante. Adoro dar presentes, gostar daquilo que dou, mas ainda não estou nessa.
Boa semana.