Fecho os olhos e, cega, deixo-os correrem por campos azuis, mares brancos, grutas que entram pelo fundo do mar adentro, e lá dentro há nuvens, brumas, pássaros de mil cores, sóis serenos, pedras preciosas, signos misteriosos e escadas, muitas escadas, e espelhos e lagos de águas flutuantes onde pousam mãos dóceis, flores eternas, transparentes espumas, sorrisos. Nas paredes dos céus que cobrem as grutas há palavras ditas por corações apaixonados ou escritas por outros cegos que desenharam também juras de amor eterno, beijos cintilantes, abraços apertados e ternos. E eu, de olhos fechados, cega, caminho por estes labirintos que se desenrolam neste espaço infinito que os meus olhos, mesmo se abertos, jamais alcançariam.
Se eu desço essas escadas chego a uma varanda de onde parte outro lanço de escadas. Nessa varanda, que me parece suspensa, há árvores muito verdes, flores, sombras afáveis. Quando aí chego, vem na minha direcção uma pessoa que não sou eu. Sorri como eu sorrio e no seu rosto eu vejo a minha surpresa. O seu olhar é o meu e eu procuro o espelho que reflecte assim a minha alma. Não sei do espelho e não sei de onde veio essa pessoa. Depois descemos juntos a escada e eu não sei se sou eu, cega, que o invento, se foi ele que me inventou a mim. Descemos, pois, envoltos em sorrisos, nós, anjos improváveis que pousaram um dia numa varanda solta no ar, cheia de árvores, flores, asas, brisas suaves como carícias.
Quando abro os olhos, já não o vejo, apenas vejo as suas palavras. Desapareceu mas deixou em mim o seu perfume, a sua voz gentil e as suas palavras que desde então me habitam, que se aninham no meu peito, que me abraçam muito, muito. Procuro os espelhos que me reflectem e apenas estou eu, espreito atrás do espelho e apenas vejo a ausência de luz, encosto o ouvido às flores e a respiração que ouço é a que vem da terra, não do coração daquele que um dia nasceu da minha imaginação numa varanda suspensa cheia de sombras e cores perfumadas.
Conto os dias, subo as escadas do tempo, procuro os esconderijos misteriosos onde as palavras se escondem. Fecho os olhos. Descalço-me, percorro os caminhos de terra, levanto as pedras, sinto o musgo, deito-me e cheiro o húmus e os bichos silenciosos, olho a lua, aspiro o vento. Passo as mãos pelos troncos das árvores, levanto as cascas, espreito as palavras que aparecem escritas no ar, saudades, ausências, amores perdidos, desencontros. Repito: saudades, ausências, amores perdidos, desencontros. E as minhas palavras cruzam-se no ar com outras iguais, espelhos infinitos, ecos.
Não sei de nada. Inocente como se tivesse nascido hoje, pronta para descobrir o mundo e as palavras que importam, pronta para ver pela primeira vez, pronta para aprender os afectos, os olhares límpidos, a luz que emana dos seres que vêm de outros tempos para nos trazerem ao colo. Inocente como uma cega que vê pela primeira vez, como quem não sabe o sentido das palavras, como quem navega no sangue de quem nos habita. Eu dentro do outro que está dentro de mim e eu dele e ele de mim, um espelho dentro do meu corpo e eu espelho dentro dele e as mãos unidas e os lábios soletrando as mesmas palavras, os olhos olhando os olhos que não se vêem, o olhar reflectindo o olhar, o mar, o mar, a mar.
E quando,
de novo, me encerras,
volto a dormir
como dormem os rios
em véspera de serem água.
A saudade
é o que ficou
do que nunca fomos.
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Vem, junta-te a mim, toma-me nos braços, desce comigo as ruas coloridas dos meus sonhos.
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As imagens animadas são da autoria do artista cego George Redhawk.
Lá em cima Benjamin Clementine interpreta The People And I
Lá em cima Benjamin Clementine interpreta The People And I
O excerto do poema pertence a 'Sazonais eternidades'. O título deste post pertence a 'Lembrança'. Ambos os poemas fazem parte de 'Tradutor de Chuvas' de Mia Couto.
Por fim, ao som dos OK Go interpretando Skyscrapers, Moti Buchboot & Trish Sie percorrem as ruas coloridas dançando, corpo a corpo.
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É tarde. Fui ao cinema. Não vi televisão, não li notícias. Não sei se o mundo ainda está no mesmo sítio. Por isso, hoje fico-me por aqui e relevem se o que escrevi não fizer sentido. Há dias assim, de injustificação.
Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado, muito feliz.
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