terça-feira, dezembro 22, 2015

Na base de tudo




Nos outros anos, nas vésperas de natal, eu gostava de, aqui, me dirigir a cada uma das pessoas que me escreve ou que comenta, queria que soubessem que me lembro de cada uma. Contudo, este ano não vou fazê-lo. Lembro-me de todos, mesmo daqueles Leitores com quem há muito tempo não falo. Não me esqueci de ninguém mas creio que basta dizer que me lembro, que agradeço a companhia, que gosto muito de cada pessoa que, ao longo destes cinco anos e tal, me tem escrito mails ou comentado.

Não vou mencionar, uma a uma, cada pessoa pois quero falar de uma forma mais geral pois, mencionando aqueles cujos nomes conheço, estou como que a deixar de fora aqueles que me acompanham de forma silenciosa e cujos nomes desconheço.

Não sei se na véspera de natal vou conseguir tempo para cá vir e, por isso, vou já adiantando alguns pensamentos que, nesta altura, por aqui gostaria de deixar.
...

Enquanto escrevo estou a ver na RTP 2 um programa sobre raparigas institucionalizadas. Sentem falta das famílias, das mães. Vejo-as e sinto uma pena infinita. Escondem dos outros a sua situação. O programa mostra-as a fazer um filme, a ler os seus textos. Uma fala em cadeiras vazias viradas para a porta, a espera sem sucesso, a mãe que não aparece, o abandono. Um programa comovente. Penso nas crianças que sofrem com essa sensação de abandono cravada nos seus corpos. Mas penso também nas mães e pais que, por algum motivo, deixaram os seus filhos para trás. Podem, talvez, não o demonstrar mas imagino o vazio que sentem no seu coração quando lhes vêm à memória os filhos que não conseguiram manter na sua vida.


E lembro-me de uma coisa de que creio já aqui ter falado. Numa altura em que não tinha máquina de café em casa, ia à rua para o tomar. Não passo sem café de manhã, a minha tensão baixa provoca-me dores de cabeça. No dia de natal só dois dos cafés do largo estavam abertos. Aquele a que nós íamos servia refeições. Como não me levantava cedo e depois havia a abertura dos presentes e a arrumação e tudo isso, só íamos à rua perto da hora do almoço. E havia uma situação que me incomodava muito: havia sempre pessoas, sentadas, sozinhas, almoçando uma refeição ligeira ou uma sandes e um galão. Fazia os possíveis para que não vissem que eu as tinha visto. Imaginava que se sentiriam sozinhas, imaginava que não quereriam que os outros se condoessem da sua condição, imaginava que pudessem sentir-se humilhadas se os outros, os que aparecem com ar de festa, as olhassem. Mas depois ficava inquieta: e se as pessoas gostassem de receber um olhar de atenção ou um sorriso? Ainda hoje não sei como agir. A minha vontade, quando vejo alguém que se percebe que não tem com quem passar estes dias em que se pensa em família, é aproximar-me, é, como quem não quer a coisa, pôr-me à disposição para que conversem, se isso lhes apetecer. Mas sou cobarde, fico com medo que interpretem mal, que achem que estou a perturbar o seu sossego.


Também me lembro de uma colega minha que um dia tinha ido trabalhar com um colaborador meu. Como geralmente faço, fui ter com ela, cumprimentei-a, e, sentindo-a menos alegre do que era costume, sentei-me um bocadinho ao seu lado, perguntei-lhe se estava tudo bem. Disse-me que estava um bocado preocupada porque a filha, universitária, estava mal disposta, já na véspera tinha ido com ela ao hospital, que não lhe tinham achado nada, tinham-na mandado para casa mas que tinha ligado para casa e que ela estava outra vez a sentir-se mal, que não estava bem. Pareceu-me inquieta. Disse-me que se calhar ia para casa, para a levar outra vez ao hospital. Sosseguei-a: alguma coisa que tinha comido, alguma virose, coisa banal. Mas ela estava preocupada. Nessa tarde fui ter uma reunião noutro edifício da empresa. Quando acabou, vi as secretárias consternadas. Tinham acabado de saber que a filha da tal colega tinha morrido. Fiquei paralisada. Não percebia como podia ter acontecido uma coisa assim. Não conseguia imaginar como estaria a minha colega. Quando no dia seguinte fui à capela mortuária não sabia o que lhe dizer. Não fui ter com ela, receava não conseguir dizer a palavra adequada, queria saber dizer a palavra que a ajudasse a suportar a dor e sentia que não era capaz.

Quando, estando eu cá fora, ela saíu da capela, viu-me e veio ter comigo dizendo, 'Morreu a minha filha...' e abraçou-me e eu abracei-a e ali fiquei com ela a chorar e eu aflita, com vontade de chorar, incapaz de dizer o que quer que fosse. Depois, por fim, lá consegui; mas, em vez de ter uma palavra de consolo, o que me saíu foi uma pergunta: 'Mas o que foi? como foi possível?' e ela, a chorar, 'Dizem que foi uma pneumonia. Não acredito, não acredito. Morreu a minha filha. Não acredito'. E eu, olhando para ela, incapaz, incapaz de dizer a palavra certa. Depois ela segurou-me numa mão e ali ficou, a chorar e eu em silêncio. Não me esqueço disto. Foi sobretudo a tristeza que senti, uma tristeza imensa por ela, pela perda da filha, mas foi também a minha incapacidade para  ajudá-la, a minha inutilidade. 


Vi também há bocado imagens de mais um grupo de refugiados. Um tremia, olhar absorto. Outros tinham morrido e alguns estavam desaparecidos. Tinham vindo numa pequena embarcação, sobrelotada, sem coletes salva-vidas. Um jovem descrevia a situação. Que coragem, que desespero, que caminhar sobre um terreno revolto, feito, todo ele, de incertezas, sustos, medos. Vêm a fugir da morte ou da ausência de futuro e arriscam a vida, vindo ao encontro de um labirinto do qual podem não conseguir escapar. Morrem nas praias, desgastam-se em acampamentos ultrajantes, penam por estradas, correm mil riscos, são gente sem identidade - de quem desviamos a atenção: já cansa tanta imagem de refugiados, já não é tema. A nossa indiferença mata-os. Tal como a nossa cobardia. Tal como o nosso comodismo.

Podemos não saber qual a palavra, podemos não saber o que fazer, mas acho que não devemos esquecer. Não conseguiremos nunca chegar a todos quantos precisariam de um gesto mas talvez possamos estar atentos, talvez possamos arriscar e tentar aproximar-nos de quem sente a falta de algum apoio.


Há muita solidão em quem está desempregado, doente, em quem se sente deprimido, pouco amado, sem perspectivas. Talvez alguns dos meus Leitores se sintam assim e tomara eu agora encontrar a palavra certa. Mas não sou boa nisso. Por isso, digo apenas que, mesmo quando me apresento na maior folia e destempero, no fundo de mim está sempre presente o amor pelos outros, a compaixão por quem precisa, a solidariedade para os que pouco têm, pelos que sofrem. Se mais vezes não o digo não é por nada, é talvez apenas porque não sei dosear a expressão dos meus sentimentos, ou é tudo ou não é nada, ou porque não sei como melhor chegar a quem não sabe fazer-se ouvir e cala a sua solidão.

Por isso, não sabendo se na véspera de natal consigo escrever alguma coisa, aqui vos digo que, nestas alturas de festa, quero, sobretudo, que saibam que o meu pensamento vai, em primeiro lugar, para todos os que não sentem vontade de sorrir - e que muito gostaria de pensar que o calor do meu coração de alguma forma chegará até eles. É que, na base de tudo, acredito eu, tem que estar o afecto.

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A música é de Tchaikovsky: None, but the lonely Heart

As fotografias provêm do Bored Panda


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E, por favor, desçam até ao post seguinte caso queiram saber o que acho de mais esta pouca vergonha do Banif -- e do Carlos Costa que, supostamente, está a ser pago para gerir a instituição encarregada de regular o sector financeiro e evitar que tanta castanha quente nos rebente nas mãos.


4 comentários:

Rosa Pinto disse...

Na base de tudo...está o ser humano.
Boas festas para si e família.
Que o novo ano nos seja mais favorável.
Beijo.

Anónimo disse...

Boas Festas.

Gosto muito de passar por aqui e admiro a sensibilidade que poe na sua escrita.

Tambem nesta quadra sou atingido por sentimentos ambivalentes em que alguma euforia excessiva se cruza com situacoes tao dificeis que alguns estao passando.

E a vida em tudo o que tem de teatro.

Votos de muita Felicidade.

Jose

ERA UMA VEZ disse...

Querida Jeitinho

Tanta... tanta coisa havia por dizer...um dia destes escrevo
Por agora envio com muitas saudades e carinho um textinho para os nossos meninos,eles que vão ter de crescer num mundo confuso, perigoso e com problemas ambientais, como diria o Papa Francisco, "a casa de todos nós"

Aí vai, com o desejo de um excelente Natal e muitos muitos muitos sorrisos...

CARTA ENTRE BRANQUELAS

Recebi hoje uma carta
chegada do Polo Norte
(ou talvez do Polo Sul)
O assunto é tão urgente
que veio em Correio Azul

Conta-me um urso Branquelas
primo por parte de mãe
que no seu lindo paraíso
repensar tudo
é preciso
quando o gelo tanto gelo
a cada dia que passa
se despedaça

e todo o urso que avança
à procura de alimento
não volta mais para os seus
e nasce um grande lamento

Diz-se por lá nas montanhas
não sei se é boato ou não
que o homem muda o clima
com as loucuras que faz
por causa da ambição

Fiquei tão preocupado
que nem queria acreditar
quis perceber o que é isso
a que chamam poluição

Consultei a Internet
revistas enciclopédias
filmes foram mais que sete
e depois já tão cansado
de tanto estudar o assunto
ainda vi na televisão
um branquelas a lutar
saltitando sobre o gelo
que se quebrava ao pisar

Os ursos parecem ter
o destino já traçado
será que os humanos sabem
o que lhes vai acontecer?

E ao reler esta carta
eu sinto grande tristeza
e não consigo entender
se os homens são mesmo uns génios
se fazem "figura de urso"
ou se estão a enlouquecer...

FELIZ NATAL PARA TODA A FAMÍLIA!!!!!

Um Jeito Manso disse...

A Todos,

Os meus agradecimentos. Amanhã tentarei responder a cada um porque já é uma e meia da manhã, hoje já não dá mesmo, estou completamente a dormir e o dia que me espera já me está a cansar ainda antes de começar.

(Erinha...! Que saudades! A ver se consigo também escrever-lhe.)

Beijos e abraços a todos e um Feliz Natal para todos!!!!