Dante acreditava que, durante a nossa viagem pela vida, se a graça o permitir, encontraremos uma alma companheira que nos ajudará, pelo caminho que fica para lá da selva escura, a reflectir sobre as nossas próprias perguntas e a descobrir o que quer que seja o nosso destino; acima de tudo, uma alma cujo amor nos mantenha vivos.
Acredito nisto. Já me foi dado encontrar esse alguém que parece ter sido misteriosamente posto no meu caminho para me mostrar que todos os acasos são possíveis. Nessa altura, todos os caminhos parecem ter inexplicavelmente convergido para aquele instante sagrado em que a nossa vida e a de outra pessoa parecem ganhar um novo e incompreensível sentido. E, a partir daí, uma serenidade invade o nosso corpo porque sentimos que um tem o outro e que, juntos, percorreremos com feliz expectativa todos os labirintos de que a vida é feita.
Todos sabemos que os acontecimentos por que passamos ultrapassam, no seu sentido mais completo e profundo, as barreiras da linguagem. Nenhum relato, nem sequer da mais pequena ocorrência na nossa vida, pode fazer verdadeira justiça ao que teve lugar, e nenhuma recordação, por mais intensa que seja, pode ser idêntica à coisa recordada. Tentamos relacionar o que acontece, mas as nossas palavras falham sempre, e aprendemos, após muitas tentativas, que a melhor aproximação a uma versão verdadeira da realidade só pode existir nas histórias que inventamos. Nas nossas ficções mais poderosas, sob a teia da narrativa, consegue discernir-se a complexidade da realidade, como um rosto atrás de uma máscara. A melhor maneira de contar a verdade é mentir.
Penso o mesmo. Tantas vezes vivo situações que são tão impossíveis de descrever, tantos loucos acasos, tantos inesperados momentos de afecto e sintonia, tantos mistérios, tantos momentos em que o conhecimento parece vir de há muitas vidas atrás, tantos instantes de paz e beleza - que não tento nem falar neles, ninguém acreditaria. Tantas vezes as situações parecem mais credíveis se eu alisar a realidade, se eu omitir o que parece ficção, se eu esquecer aquilo em que nem eu própria acredito, aqueles instantes que eu não sei explicar senão pensando que sonhei.
Os leitores na Idade Média usavam a Eneida de Virgílio como ferramenta de adivinhação, fazendo uma pergunta e abrindo o livro em busca de uma revelação; Robinson Crusoé faz basicamente a mesma coisa com a Bíblia, para encontrar orientação nos seus longos momentos de desespero. Todos os livros podem ser, para o leitor certo, um oráculo, chegando ocasionalmente a responder a perguntas não formuladas (...)
Também acontece isto comigo. Quando estou na minha capela, gosto de pensar no que me está a acontecer, na minha vida, nas minhas dúvidas e, então, pego na Bíblia, abro-a ao acaso e leio. E o que leio responde-me. É a única forma que tenho de ler a Bíblia. Não a leio numa perspectiva religiosa, pelo menos na perspectiva da religião católica. Sendo agnóstica, gosto, contudo, de acreditar que há respostas, que as respostas pairam no espaço à espera que agente as agarre e as encaixe nas nossas perguntas.
E isto faço também agora. Pego neste livro e abro-o. Na página onde ele se fez abrir, eu encontro explicação para o que faço, para o que me acontece, para o que não sei dizer. Não é que fique, em tudo, completamente esclarecida mas, pelo menos, sinto-me acompanhada nas minhas perplexidades e, sentindo-me acompanhada, sinto-me serena. E isso, para mim, já é bom.
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O livro de onde transcrevi os excertos em itálico é 'A História da Curiosidade' de Alberto Manguel de que no outro dia falei. As fotografias provêm do BoredPanda. Lang Lang interpreta a Serenade de Schubert.
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Convido-vos, ainda, a descerem até ao post seguinte onde falo na sensualidade das gordas.
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3 comentários:
Amiga venho especialmente desejar-lhe a si
e sua Família um Feliz e Santo Natal.
Irene Alves
Caríssima UJM, boa noite
Desejo a si e à sua família um Natal Feliz, com muita saúde, paz, tranquilidade e harmonia
E muito obrigado pelo seu excelente blogue.
Um abraço
HB
Mesmo se não tivesse havido a "A história da curiosidade"* a escolha seria sempre excelente
http://cultura.elpais.com/cultura/2015/12/19/actualidad/1450541458_153217.html
*a edição portuguesa tem de facto uma capa feiosa .. mas a das Actes Sud não é nada melhor
http://www.actes-sud.fr/catalogue/litterature/de-la-curiosite
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