Perdemo-nos uns dos outros talvez porque simplesmente não os saibamos procurar, talvez porque, por indolência ou medo, deixamos que se percam de nós. O nosso tempo é finito, o nosso coração também. Não conseguimos ir atrás de tudo o que nos seduz, receamos que o que encontremos seja incomportável na nossa vida, receamos magoar alguém - e assim andamos sempre, com receio, sempre numa gestão cautelosa, gerindo o tempo como se ele fosse infinito.
Tantos afectos que já deixei perdidos no tempo. De vez em quando alguém liga-me e eu, ouvindo alguém tratar-me familiarmente pelo nome próprio, assim de repente, fico a tentar perceber a quem pertence aquela voz afável. Depois lembro-me e mostro o meu contentamento e, do outro lado, alguém fica também feliz por ver que eu, tanto tempo decorrido, ainda reconheço a sua voz. Mas eu raramente tomo a iniciativa de telefonar para quem vive no meu passado. Não gosto de reabrir portas. Mesmo quando as portas não foram fechadas por mágoas mas, sim, pelos circunstancialismos da vida, eu não tenho vontade de mexer no que, para mim, já são cinzas. As pessoas, em geral, acham que sou afectuosa, extrovertida. Mas eu, que me conheço bem, sei que tenho este lado frio - ou talvez não seja frio, talvez seja apenas desligado. É como se, sabendo que vai ser impossível reactivar o que ficou no passado, mais valesse abrir espaço para que novos afectos se possam desenvolver. Digo isto e penso que esta é, mesmo, uma maneira fria de ser.
Quando desempenhei funções que implicavam acesas negociações, área em que me sinto verdadeiramente bem, assustava os meus colegas e colaboradores com a frieza implacável com que conduzia os assuntos e, pior, com os riscos absurdos que corria. Arriscava tudo para conseguir o último dólar, arriscava temendo falhar, temendo deitar a perder tudo o que tinha conseguido até ao momento. Os outros quase imploravam que eu parasse, que o resultado obtido já era mais que bom. Mas eu não parava. E preferia estar sozinha, sem conhecidos por perto. Era como se não quisesse que testemunhassem esse meu lado frio, implacável. Um dos meus colegas da altura, por sinal, um dos meus grandes amigos, avisava sempre 'cuidado com ela; como adversária é temível'. E eu sentia que ele tinha razão.
Mas nada disto, em mim, é pensado.
Agora, a todo o momento, vejo alguns fedelhos que, antes de fazerem qualquer porcariazita, planificam tudo, enunciam cenários de risco, fazem power points atrás de power points, incapazes de um salto no escuro. Não sabem o que é a adrenalina de agir no fio da navalha, sem rede, apenas com a intuição e a vontade irrepremível de conseguir o melhor.
Hoje, à hora de almoço, enquanto conduzia, ia recordando algumas pessoas que deixaram fortes marcas impressas na minha memória. Pensei: se tivesse que seleccionar os deveras importantes por razões pessoais, quais escolheria? Fui decantando. E fui-me afligindo com a facilidade com que decantava. Pessoas que foram uma presença tão importante na minha vida, iam passando na minha cabeça, e eu, facilmente descartando-as. Fiquei-me por um. Alguém deveras especial, alguém que me conhecia (e conhece) bem, que me dava luta.
Mas pudesse eu ter o dom da ubiquidade no espaço e no tempo e, de vez em quando, embrenhar-me-ia por bosques no fim do mundo, aldeias perdidas, conventos abandonados, caminhos junto a rios pesados como ventres prenhes, e procuraria novas gentes, velhos de olhares agudos ou risos inocentes, raparigas de corpos sedutores com quem aprenderia o despudor e a malícia, homens que me contassem histórias antigas e me falassem de caminhos secretos, crianças que me ensinassem a brincar sem medo, mulheres que me vestissem e penteassem e me iniciassem em rituais de vida e amor. E procuraria viver como os bichos, livre e sem medos, toda eu alegria, leveza, afectos, toda eu tempo para tudo, para nascer de novo. Mais uma vez.
Mas também, antes de me perder nos fins do mundo, poderia encostar-me a uma casa antiga numa rua empedrada de Génova, uma rua que leva ao cais, e ficar a ouvir a rapariga que, de pé, cantava uma ária de ópera enquanto o seu par, um rapaz, sentado, tocava violoncelo, enchendo de magia, ao pôr do sol, aquelas ruas douradas pela luz da tarde. Ou poderias -- sim, tu -- levar-me a ver os telhados de Paris no telhado das Lafayette, abraçados, e depois, abraçados na rua, os dias já pequenos, já quase noite, já frio, poderíamos recolher ao quarto do hotel até que fossem horas de sairmos de novo, procurarmos talvez aquela restaurantezinho na Madeleine, carpaccio, lembras-te?, delicioso, e mousse a l'aise. Ou poderíamos ir, uma vez mais, quantas vezes lá fomos, ao Quai d'Orsay?, e eu sempre deslumbrada como se nunca antes lá tivesse estado e tu puxando-me, anda, vamos. E iríamos almoçar ao Le Restaurant e sempre encantados, os chandeliers, as pessoas nas outras mesas, a comidinha boa. E visitaríamos livrarias, passearíamos até ser noite, e então andaríamos pelas pequenas praças, pelos recantos silenciosos, abraçados, namorados, amantes.
Ah, e pedir-te-ia ainda que fossemos outra vez a Donostia, a cidade luminosa e fresca, onde as pessoas são felizes, as ruas largas e arborizadas, os passeios cheios de crianças que chilreiam, e, junto ao mar, uma bruma marítima fresca e limpa.
Ou fazer uma viagem de comboio em wagon-lit, ver o dia a nascer, lavado, frio. Ou ver anoitecer enquanto o comboio cruza florestas mágicas, negrumes - e nós abraçados, num ninho que fazemos nosso.
Mas não tenho esse dom nem a coragem para largar tudo e ir atrás do que tanto puxa por mim, nem sei pensar numa vida em que caibam os que já não vivem no mesmo espaço que eu conjuntamente com que vivem no meu coração e, ainda, deixar um espaço livre para os que ainda queiram vir fazer parte da minha vida.
Quero festejar a vida, cantar, dançar, conviver de perto com a arte, encher a minha vida de cor, de música, de pássaros, de gente simples, de luz, de sonhos. De livros. Quero ler mais, quero ler até que faça sentido que os livros sejam todos o mesmo. Quero tanto. E quero ouvir-te a dizer-me poemas. Fecharei os olhos e embalar-me-ás, dizendo-me frases, excertos, poemas, beijando-me as pálpebras, os lábios.
Talvez um dia. Por ora, enleada em afectos múltiplos, abraçada por mil laços e com limites bem à vista, tenho que pacientar e ir-me contentando com estas rêveries inocentes com que pontilho a minha existência.
A música, tão linda, tão linda, é uma Missa Luba interpretada por Les Troubadours du Roi Baudoui e que conheci através do Fernando Ribeiro a quem devo a permanente descoberta de realidades do outro mundo.
As primeiras fotografias são de Steve McCurry. As duas últimas são do The Sartorialist.
Teria hoje muita matéria para analisar, nesta semana em que os números se despenham do alto da pesporrência do PaFistão e em que ficámos a saber que o PSD faz um excelente pendant com os camaradas do PCP, avisando-os para se mexerem mais senão ainda acabam por perder votos para o PS. Uma vez mais a espúria união dos extremos. Mas acontece que hoje estou KO, a dormir mesmo, e, até ao final desta semana, não vou ter tréguas. Por isso, vou já daqui directa para a cama. Mas, vocês, por favor, se encontrarem resmas, caixas, barcos, etc, de gralhas, relevem, se fazem o favor. Se escrevesse à mão presumo que estaria melhor mas, assim, aqui, as palavras voam-me, transfiguram-se.
Tendo a não me deixar cativar por quem gosta muito de mim, me obedece, me diz que sim a tudo ou a quem me acha especial. Pelo contrário, gosto e sinto-me bem ao pé de quem me desvenda para além do que eu quero dar a conhecer, de quem me finta, de quem me surpreende, de quem me desconcerta, de quem me desafia, de quem me ensina. Mas não há muita gente assim. Raras, raras as pessoas assim.
Mas também, antes de me perder nos fins do mundo, poderia encostar-me a uma casa antiga numa rua empedrada de Génova, uma rua que leva ao cais, e ficar a ouvir a rapariga que, de pé, cantava uma ária de ópera enquanto o seu par, um rapaz, sentado, tocava violoncelo, enchendo de magia, ao pôr do sol, aquelas ruas douradas pela luz da tarde. Ou poderias -- sim, tu -- levar-me a ver os telhados de Paris no telhado das Lafayette, abraçados, e depois, abraçados na rua, os dias já pequenos, já quase noite, já frio, poderíamos recolher ao quarto do hotel até que fossem horas de sairmos de novo, procurarmos talvez aquela restaurantezinho na Madeleine, carpaccio, lembras-te?, delicioso, e mousse a l'aise. Ou poderíamos ir, uma vez mais, quantas vezes lá fomos, ao Quai d'Orsay?, e eu sempre deslumbrada como se nunca antes lá tivesse estado e tu puxando-me, anda, vamos. E iríamos almoçar ao Le Restaurant e sempre encantados, os chandeliers, as pessoas nas outras mesas, a comidinha boa. E visitaríamos livrarias, passearíamos até ser noite, e então andaríamos pelas pequenas praças, pelos recantos silenciosos, abraçados, namorados, amantes.
Ah, e pedir-te-ia ainda que fossemos outra vez a Donostia, a cidade luminosa e fresca, onde as pessoas são felizes, as ruas largas e arborizadas, os passeios cheios de crianças que chilreiam, e, junto ao mar, uma bruma marítima fresca e limpa.
Ou fazer uma viagem de comboio em wagon-lit, ver o dia a nascer, lavado, frio. Ou ver anoitecer enquanto o comboio cruza florestas mágicas, negrumes - e nós abraçados, num ninho que fazemos nosso.
Mas não tenho esse dom nem a coragem para largar tudo e ir atrás do que tanto puxa por mim, nem sei pensar numa vida em que caibam os que já não vivem no mesmo espaço que eu conjuntamente com que vivem no meu coração e, ainda, deixar um espaço livre para os que ainda queiram vir fazer parte da minha vida.
Quero festejar a vida, cantar, dançar, conviver de perto com a arte, encher a minha vida de cor, de música, de pássaros, de gente simples, de luz, de sonhos. De livros. Quero ler mais, quero ler até que faça sentido que os livros sejam todos o mesmo. Quero tanto. E quero ouvir-te a dizer-me poemas. Fecharei os olhos e embalar-me-ás, dizendo-me frases, excertos, poemas, beijando-me as pálpebras, os lábios.
Talvez um dia. Por ora, enleada em afectos múltiplos, abraçada por mil laços e com limites bem à vista, tenho que pacientar e ir-me contentando com estas rêveries inocentes com que pontilho a minha existência.
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As primeiras fotografias são de Steve McCurry. As duas últimas são do The Sartorialist.
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Teria hoje muita matéria para analisar, nesta semana em que os números se despenham do alto da pesporrência do PaFistão e em que ficámos a saber que o PSD faz um excelente pendant com os camaradas do PCP, avisando-os para se mexerem mais senão ainda acabam por perder votos para o PS. Uma vez mais a espúria união dos extremos. Mas acontece que hoje estou KO, a dormir mesmo, e, até ao final desta semana, não vou ter tréguas. Por isso, vou já daqui directa para a cama. Mas, vocês, por favor, se encontrarem resmas, caixas, barcos, etc, de gralhas, relevem, se fazem o favor. Se escrevesse à mão presumo que estaria melhor mas, assim, aqui, as palavras voam-me, transfiguram-se.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma excelente quinta-feira.
Sejam felizes e, aos que puderem, só tenho uma coisa a dizer: votem contra os PàFs, pleeeeasseeeeeee.
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7 comentários:
Senti um bocado de raiva ao ler o que acabou de escrever ... e está tão bom.
Oh Rosa... então raiva porquê?
Olá.
Nada com a UJM ...a raiva é minha para mim....li e enfiei algumas carapuças.
Continue...
Ora Rosa, raiva para quê, deixe isso, bola para a frente.
Quando escreveu isso pensei que tinha escrito alguma coisa chata, que a tivesse incomodado. Quando hoje perguntei ao meu marido se tinha lido, como de costume limitou-se a dizer que sim. Depois perguntei se tinha gostado e disse que sim. Depois perguntei o que tinha achado e disse, 'Que acho que querias antes um gajo que te levasse a passear também para sítios estranhos' e desatámos os dois a rir. Mas, por acaso o que me levou a escrever aquele texto é que ia almoçar com o meu primeiro chefe, pessoa que admiro muito e de quem muito gosto. Mas esqueço-me sempre dele. Ele é que me escreveu, amoroso como sempre, a perguntar por mim e a sugerir que nos juntássemos. E fomos hoje, eu e o meu marido, ele e a mulher dele. Devo-lhe imenso, aprendi imenso com ele e ele deixou-me voar. E eu esqueço-me dele. Já está a ficar velhinho e isso faz-me impressão. Mas o que acontece com ele, acontece com tantos outros. Éramos amigos, chegados e depois uma pessoa muda de empresa, muda de local, outros reformam-se e eu, desligada, esqueço-me de manter vivos os laços. Mas nem é por mal, é que nem tenho tempo. Nem sei.
O tempo é curto. Ainda hoje eles nos convidaram para ir passar um fim de semana com eles, para levarmos os filhos. Mas parece que, tantas as solicitações, que nunca tenho tempo para acorrer a tudo aquilo de que gostaria. E fico com pena. O tempo passa e a gente vai deixando tanta coisa para trás, não é?
Um abraço, Rosa!
Não estou nada de acordo com o que escreveu, mas, ao mesmo tempo, quero lá saber, pois cada um pensa como pensa. Não tanto nas questões laborais, mas nas afectivas, do passado. Tenho e cultivo as boas memórias do passado (as más, todos nós tendemos a esquecer, ou a “arquivar”, embora se possam e devam retirar ilações e lições para o futuro). Regresso com prazer a esse passado se for o caso. Essa treta de só olhar em frente não é comigo. Na vida não se pode negar o que fomos, o que passámos, o que fizemos, os outros de antes, etc. Podemos depois fazer selecções, mas pôr de lado, completamente, é algo que me choca. Talvez pelo facto de, apesar de viver há várias décadas na zona de Lisboa, que não é a minha origem e por manter – fortes – ligações ao meu passado, e por nunca ter criado a tal empatia e afectividade onde vivo, há anos, a verdade é que para mim este presente, embora agradável, nunca apagará o passado feliz que vivi e tive a sorte de usufruir e que ainda hoje me leva até terras do Douro, Beira-Alta e ao Porto. E é ali onde me sinto bem, ou seja, melhor do que aqui onde vivo. Apesar das amizades que aqui criei, de família que acrescentei, etc. Mas, também ali, nos tais outros sítios, que fazem parte desse tal meu passado, tenho família, amigos, etc. Mas, mesmo antigos colegas quer do Liceu ou Faculdade, quando nos reeencontramos, o que já sucedeu, é com prazer que nos voltamos a falar e a reescrever e recontar as nossa vidas. Daí que não compreenda, embora respeite, esta sua opinião, talvez resultado de não ter família fora de Lisboa, ou vivências fora da capital. Talvez esteja enganado, julgo que no Algarve, ao que li. Quanto à atitude laboral, julgo que essa sua posição só impresssionará quem se deixa impressionar. Vamos lá ver, uma pessoa, na empresa onde está e por quem é paga, procura fazer o seu melhor, o que é natural. Assim sendo, recorre dos processos psicológicos, etc, que melhor entende para levar a sua avante e demonstar que aquilo que propõe e defende é melhor. A atitude, mais ou menos afirmativa, aguerrida, determinada, demolidora, depende de cada um/a e da sua postura e personalidade. Quem ouve, ou concorda ou não e ou se deixa impressionar, ou não. Faz-me lembrar um pouco a forma como na “barra”, em julgamento, se procura influenciar o Colectivo da nossa posição. Ou numa reunião de um qualquer conselho de administração. Distingo os casos na “barra”, que muita das vezes exigem alguma retórica para convencer o tal Colectivo e numa reunião num Conselho de Administração, onde o poder de síntese, embora assente num argumentário forte, é a melhor arma. Ou seja, pelo menos comigo, não possuo assim tão distintas dicotomias, entre a minha postura no trabalho e fora dele. Se tiver de dizer coisa que possam desagradar, no plano pessoal, digo, tal como trabalho e de igual modo o contrário. Comigo as coisas, nos dois ambientes, laboral e pessoa, não são assim tão preto branco. Eu sou o que sou, exactamente em ambas as circunstâncias. E claro há malta que não gosta de mim e outros que gostam, por essas razões. Quero lá saber. Dou-me com os que gostam de mim. Ponto.
Cordialidade!
P.Rufino
PS: como Dia D a aproximar-se...esperemos que a Cáfila não venha, pelo menos, a ter uma maioria absoluta!
ehehe grande P.Rufino!!!!
Votem! (caso seja PaF - acho que chove. melhor ficar em casa)
Agradeço-lhe mais esta referência ao meu blog. Segundo as estatísticas do Blogger, a "minha" Missa Luba tem tido bastantes visitas, muitas mais do que eu esperava. Está a ser um sucesso. Como este seu blog recebe muito mais visitas do que o meu, julgo poder concluir que alguns dos meus visitantes foram convencidos por si. Assim sendo, só me resta agradecer-lhe, mais uma vez.
P.S. - Quanto às eleições, fiquei triste, mas não completamente. Uma maioria absoluta do PàF é que seria um desastre completo.
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