segunda-feira, setembro 28, 2015

Acasos, casualties, estilos






O ponto de viragem na vida do professor de filosofia Abe Lucas, o homem irracional, dá-se quando, acidentalmente, num restaurante, ouve uma conversa entre pessoas que se sentavam noutra mesa. A partir daí ocorreu-lhe intervir na situação ali falada, imaginando que não correria quaisquer riscos já que nada o ligava àquelas pessoas.

Hoje almocei num restaurante no Chiado, um belo almoço à base de mexilhões e com fresquíssimas ostras como entrada. Noutra mesa estava uma conhecida figura pública que encabeça uma lista de um certo partido. Imaginando que estaria a falar da situação política, tive vontade de ouvir a sua conversa mas, sendo eu bem educada, obviamente não o fiz.

Depois de termos flanado, a seguir, por aquele que é um dos meus locais de eleição em Lisboa, fomos buscar a minha mãe e juntámo-nos a parte da família na Gulbenkian (belíssima exposição de Charrua - a ver se ainda falo dela). Para rematar, fomos lanchar ao self do CAM. Eu estava ainda cheia do almoço, pelo que me limitei a beber aquele delicioso cup de frutas que é um dos seus ex libris. Contudo, mal o bebi, senti que me tinha caído mal. Daí a sentir-me mesmo mal foram minutos. Não tenho ideia de uma cena daquelas. Mal, mal, inclusivamente à beira de desmaiar, transpirando em bica, mal me podendo mexer. Imaginei que o sumo frio me tinha parado a digestão e, apesar do estado em que me encontrava, não valorizei. Queria chegar a casa, deitar-me de pernas para o ar a ver se a tensão me subia, esperar que o estômago atinasse ou pelo menos que se esvaziasse de vez. O diabo foi o facto de a minha mãe assistir ao filme. E aí foi o drama: que uma vizinha morreu por causa de mexilhões com umas bactérias, que se tinha também sentido mal e que foi um ar que lhe deu. E ai, ai... olha como tu estás, ai... ai... A minha filha, por outro lado, tinha dito antes que, nuns almoços lá nuns eventos em que se juntavam vários médicos, a única coisa que não comiam era ostras porque se comem praticamente cruas e, se têm uma tal bactéria, é trigo limpo farinha amparo. E a minha mãe num desatino, eu é que estava mal e ela é que gemia. E eu, de facto quase a perder os sentidos, mais para lá do que para cá, ouvia a conversa delas e percebia que já me viam morta e enterrada. E que eu fosse ao hospital e que tinha que ir e que o meu marido me levasse, quisesse eu ou não. Eu, mal falava, piorava de novo, mal mexia a cabeça ficava a transpirar em bica e a ver tudo sem cor, pelo que bem tentei oferecer resistência mas, qual quê, não consegui evitar. Lá me levaram para o hospital, numa viagem surreal tal o estado em que eu estava. Aí a chatice do costume: análises e logo posta a soro, um garrafão que nunca mais acabava, e antes, na veia, um protector para o estômago e um outro para parar as náuseas. Para cima de duas horas nisto, nas urgências. 

Mas uma coisa destas não teria história nenhuma não fosse dar-se o caso de, na cadeira ao meu lado, nas urgências, estar uma outra doente, toda boas famílias, a telefonar, para familiares e amigos a dar a notícia que o Manel tinha acabado de morrer e que não sabia ainda se a vida tinha terminado para ele ou se ele lhe tinha posto termo, que, para ela, seria a segunda hipótese, que seria o mesmo que da outra vez, mas que não dizia nada, não queria alimentar especulações. A questão é que ela não dizia apenas Manel, dizia também o apelido. Quando pronunciava o nome, baixava o tom de voz. Mas eu estava apenas a soro, não estava inconsciente: ouvia tudo. E, mais tarde, dizia também onde seria o velório e o dia do enterro. Ora a ser quem eu penso, será pessoa muito conhecida e, a ter sido a causa da morte a que ela dava a entender, será coisa com uma carga dramática considerável (aliás, carga dramática tem sempre uma morte provocada só que, neste caso, a ser quem me pareceu que fosse, terá uma dimensão pública considerável).

Entretanto, chegou o marido, preocupado com o estado de saúde dela, mas ela deu-lhe logo a notícia e ficaram a conversar, em voz baixa mas, para mim, audível, que a última vez que tinham estado juntos, eles e o falecido, tinha sido na festa de anos de fulano de tal, e que quem, há minutos, lhe tinha pedido para ser ela a dar a notícia tinha sido beltrana, e que não podia ser beltrana a avisar os amigos porque tinha sido namorada dele e o marido é um ciumento que não se pode, e ficaria furioso se soubesse que ela estava a informar amigos, etc, que o outro tinha morrido e que, coitada, senão, ela é que ainda acabava a pagar as favas. E, uma vez mais, disse o nome da dita namorada e eu, uma vez mais, reconheci o apelido.

Enquanto ali estava naquele aparato, a soro, feita inválida - mas já bem disposta (aquele chuto na veia tirou-me mesmo as náuseas e as dores no estômago) -  peguei no telemóvel e googlei a ver se já havia notícia. Não havia. 

Mas fiquei a pensar: acidentalmente podem gerar-se situações complicadas que, potenciadas por estas tecnologias ubíquas, se podem transformar em bolas de neve difíceis de parar. 

Imagine-se que eu era pessoa sem escrúpulos e, tendo ouvido toda aquela conversa, enviava logo dali informação para algum jornal online ou a publicava eu aqui no Um Jeito Manso ou a enviava para alguém com facebook badalado. Às tantas, poderia estar montes de gente a saber de uma situação dramática que a família deve querer gerir com pinças, sem que ninguém soubesse como é que, na hora, a notícia tinha extravasado. Ou imagine-se que há mais pessoas com aquele nome e que ainda punha um boato sinistro a circular, dando por morto alguém cheio de vida.

Entretanto, estava eu ali sossegada, preferindo não estar a ouvir toda aquela conversa, quando chegaram os resultados das minhas análises: so far, so good. Se havia bactéria, tal não se via no sangue. Portanto, deve mesmo ter sido uma paragem de digestão. Vim para casa com uma receita para começar a tomar ainda hoje e durante três dias. Mas tão saturada saí de lá que me marimbei para ainda ir à farmácia.

Não jantei nem tenho fome mas sinto-me como se nada me tivesse acontecido.

E, entretanto, já me ocupei das minhas tarefas de dona de casa: já fiz uma panela de sopa para os estes próximos dias, já fiz umas costeletas grelhadas para que amanhã o jantar já esteja pronto, já fiz uma máquina de roupa e já a estendi, já fiz arrumações, etc. 

Agora é quase uma da manhã, estou com sono - mas para aqui estou ainda a pensar nisto de uma pessoa sem querer ouvir uma conversa alheia que, aparentemente, nos revela uma situação horrível. Pelo que percebi, esta irá deixar consternada toda a gente que conhecia o dito Manel (talvez devesse dizer malogrado Manel). Não tivesse eu educação, sensibilidade e bom senso, poderia agora estar aqui a divulgar tudo o que ouvi e vocês todos, meus Caros Leitores, a tomarem conhecimento. Há um lado perverso nisto das novas tecnologias: sem querer, as palavras podem chegar até nós e nós, sem pensarmos bem, poderemos mesmo deixar que elas nos fujam das mãos, escapem ao nosso controlo, a qualquer controlo.

Deveria mesmo haver um livro de estilo para isto tudo.



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As pinturas são, uma vez mais de Juan Lecuona. Ryuichi Sakamoto interpreta Aqua

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Hoje não vou escrever mais nada. Tinha fotografias de umas peças de artesanato que gostava de vos mostrar (um galinho e um crucifixo), fotografias do Chiado e fotografias da exposição do Charrua no CAM. Mas, dado o adiantado da hora e o sono que tenho, não vai poder ser. Outro dia, talvez.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta segunda-feira. 
Saúde, alegria e beleza em vossa volta é o que vos desejo.

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4 comentários:

Anónimo disse...

Numa cena do género
estava eu numa esplanada quando
ouvi
não podia deixar de o fazer
era mesmo na mesa ao lado
uma ex-amante do meu ex-marido
já na altura ex, entenda-se
a dizer cobras e lagartos dele
confesso
fui buscar o jornal
e durante 2h não mudei de página
não resisti a tão hilariante situação
*
as melhoras
GG

Pôr do Sol disse...

È mesmo querida Jeitinho. Acontece muito, então conversas telefonicas em que as pessoas dão informações que podem ser menos bem utilizadas é frequente.

Lembro-me de uma amiga contar que soube que o irmão andava a pular a cerca ao ouvir uma conversa num consultorio.

Esperemos que essa morte não seja de alguem honesto na politica.

Ainda bem que não passou de uma paragem de digestão, fez bem ouvir a sua mãe e recorrer a quem a pode tranquilizar.

Valha-me Deus já são 2,12horas.

Uma boa semana (a começar já por esta segunda feira) como diz alguem que muito aprecio.

Rosa Pinto disse...

Caso para dizer - UJM pode ser um perigo nas urgências.

Bom não é para rir ..mas não tenho culpa ..fez-me rir....ai as ostras!

Melhoras, rápidas.

Um Jeito Manso disse...

A Todos (incluindo ao anónimo/anónima antipático/a que me chamou nomes feios por eu ter comido ostras, como se comer 2 ostras fosse uma coisa que merecesse castigo),

Tal como referi no texto, foi de tal ordem o shot que lá me deram seguido do balde soro que saí de lá como se nada se tivesse passado comigo.

É certo que estava sem fome apesar de não ter ficado com nada do estômago mas fiquei fina e hoje estava como se ontem não tivesse estado toda almareada.

Como adivinhou (num mail) um Leitor, a minha mãe hoje estava vitoriosa: "estás a ver como fizeste bem ir ao hospital?" e, pronto, reconheço, não queria ir, enquanto lá estava, vendo o tempo a passar e o soro a nunca mais chegar ao fim, estava numa impaciência mas reconheço: aquele tratamento foi remédio santo.

Portanto, agradeço o cuidado de todos quantos desejaram as minhas melhoras mas a verdade é que estou mesmo bem (até ver... que eu nisto, quando digo que estou bem, por prudência, já bato três vezes na madeira).

Um abraço a todos (mesmo aos mauzinhos)!