quinta-feira, julho 09, 2015

Esta é a ditosa língua, minha amada - grande discurso de Hélia Correia ao receber o Prémio Camões. [E a mais recente sondagem que dá o PS a distanciar-se, e a Lagarde a defender a reestruturação da dívida da Grécia e, para aumentar a barafunda, nails de gel e sei lá que mais]


Eu conto. Cheguei a casa quase às dez da noite depois de um dia de trabalho em que nem tive tempo para pensar na morte da bezerra. Agora, aqui em casa, já estive a preparar a valise para amanhã de manhã me pôr a caminho. Dois dias fora. E acabei de ver que preciso de retocar o verniz. Retocar não, tenho é que retirar o anterior e aplicar uma camada nova. E agora arranjei um novo que tem um gel que se aplica por cima, para simular as nails de gel. Vamos ver se resulta. Vejo lá as raparigas todas com unhas enormes, super-coloridas, super-grandes, super-brilhantes -- e eu completamente banal. Então, no outro dia, li não sei onde que há estes conjuntos de verniz+gel e que isto seca rapidamente, não requer nada daqueles apetrechos das super-manicuras. Numa corrida à hora de almoço, dei um salto à Sephora. O difícil foi a côr. Só gosto de me ver com cores neutras e só lá tinham pink, verde, azul, cinzento, preto. Mas afinal isto era na marca que eu tinha dito. Pedi produto idêntico mas de uma marca qualquer desde que em tom nude. Trouxe l'Oréal e ainda me saíu mais barato. Bem, vou parar para me atirar ao assunto.

Pronto, já está. Parece igual aos outros mas se calhar é esta luz que não deixa ver bem. Pode ser que, daqui a nada, à luz do dia, me deslumbre com as minhas próprias maravilhosas nails.

Enquanto estou nisto, vejo as notícias na televisão: o PS finalmente numa rota ascendente nas sondagens. 


Pode ser que estejamos perante uma tendência estável e que, a partir de agora, seja assim, milho a milho, até que o eleitorado demonstre que acredita no PS. Pelo que ouço, o pessoal odeia o Passos Coelho e as suas políticas mas ainda não se revê nas políticas do PS.
É isso: o PS tem que sair da casca e começar a afirmar-se. Se arranjar uma mão cheia de gente qualificada e credível que saiba expôr o que defende, de uma forma clara e assertiva (vejam-se as excelentes prestações televisivas do Embaixador Seixas da Costa, como ontem referi), num ápice o distanciamento do PS face aos malfadados PaFs se acentua. 

Agora estou a ouvir outra coisa extraordinária: a sempre bronzeada (com ar quase esturricado) Lagarde afirma que a solução para a Grécia tem que, forçosamente, passar pela reestruturação da dívida. Oh la la.

Sempre quero ver o que vão agora dizer o Láparo, a Marilú e o Nuno Melo: que a Lacoisa é defensora dos relapsos desta vida? 
Ai, as cambalhotas que os seres destituídos se vêem forçados a dar. Mas nada garante que percebam que as dão, provavelmente cambalhotam, rebolam-se e pinoteiam sem sequer perceber que o estão a fazer. Tudo é possível. Ou então, dão por isso e acham que nós é que somos burros, pois, depois das cambalhotas trapalhonas, não é raro aparecerem a gabar-se de que fizeram um elegante pas-de-deux. Aliada à falta de inteligência vem neles a falta de vergonha.

Bem. Adiante. Tenho que ir ao que interessa que se faz tarde.

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Em primeiro lugar, quero dizer que recebi com grande tristeza a notícia da morte do meu professor de Grafologia, o querido Dr. Alberto Vaz da Silva de quem aqui falei no outro dia. Vão partindo. Vão voando para outro universo. Fica-nos a memória e o carinho que sentirmos quando nos lembrarmos deles.


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Em segundo lugar, quero aqui deixar o extraordinário discurso de Hélia Correia ao receber o Prémio Camões. 



Hélia Correia discursa ao receber o Prémio Camões - com um vestido azul e uma echarpe branca, as cores da Grécia


Σμυρνέικο Μινόρε - Σαβίνα Γιαννάτου - Primavera en Salonico - Smyraean Air 
Savina Yannatou


É um discurso longo e sei bem que a blogosfera é mais lugar de toca-e-foge do que de textos que nos envolvem como uma longa túnica. Não quero saber. O Um Jeito Manso é um lugar onde as palavras reinam, delas é todo o espaço que queiram ocupar. E as palavras de Hélia Correia merecem mais, muito mais do que todos os espaços onde a língua portuguesa seja amada e respeitada.





O peso destes nomes curvaria gente bem mais robusta do que eu, não fosse o caso de a leveza ser o primeiro atributo de um escritor. Aliás, quanto mais os frequentamos, menor pavor inspira a sua sombra.

Não venho aqui como parceira mas como íntima, como alguém mais ligado pelo amor do que por ambições identitárias. Com Luis de Camões passeio em Sintra, enquanto ele espera o jovem rei que anda pelos bosques, enfeitiçado, já um pouco ensandecido. E a ligação aos meus contemporâneos, Sophia e Saramago, Eduardo Lourenço, Maria Velho da Costa, Mia Couto, feita de encantamento e aprendizagem, toca-me infantilmente o coração quando me traz afinidades, uma flor de frangipani que esvoaça num jardim de Maputo, as palavras que não partiram com quem já partiu, uma tão querida voz ao telefone, uma carta enfeitada de papoulas. Estou com eles, não entre eles. E assim estou bem.

Devo falar de tripla gratidão: a gratidão aos promotores deste prémio ao qual foi dado o nome maior das nossas letras, a gratidão aos membros do júri que escolheram a minha escrita para tamanha dádiva, a gratidão a um acaso de nascimento que me deu como língua materna o português.

Também com gratidão evoco a tão citada, e mal, passagem escrita por Pessoa, aliás Bernardo Soares, pois que, achando-se escrita, e por ele escrita, me abre um certo caminho à ousadia: que amo mais a língua do que a pátria. Que me imagino armada, a defendê-la contra quem a quisesse aniquilar. As lutas pela independência que travámos deixam-me o arrepio de pensar que o português se perderia, se perdêssemos. Que morte há de ter sido a de Camões, julgando que morria com a pátria, isto é, com o lugar dos seus poemas!

Rodrigues Lobo formulou-lhe o elogio de maneira concisa e musical ("branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver") durante a ocupação filipina. Os rumos da política eram uns, o castelhano em palácio havia muito que se fazia ouvir, mas essa língua da nação, tão acabada que sem esforço hoje a lemos, tão fadada para arrebatamentos de oratória como para a sátira, como para o lirismo, cultivando sem vénia a erudição para logo a seguir brincar com ela, essa língua era a grande resistente – não a expressão de um povo: a sua essência.

Faz agora oito séculos esta língua. É a prosa formal de um testamento que atesta a data. E prosas há tão belas naquele dealbar, tão saborosas ainda quando anónimas, que dir-se-iam um bom pressentimento sobre o tanto e o tão grandioso que depois ia ser escrito. Mas é na poesia que parece avistar-se um destino, no sentido não de fatalidade mas daquilo a que alguns chamam o talento colectivo e que talvez não passe de especial, convidativa variedade na fonética.

Fácil é para nós esta função de herdeiros de tesouro tão diverso e tão bem acabado, tão antigo e, no entanto, tão reconhecível. Enquanto noutras línguas a pronúncia se foi modificando, a ponto de uma rima do século XIX já não se efectivar passadas décadas, nós cantamos Camões sem que se torne necessária qualquer adaptação. Como se cada uma das palavras reconhecesse o seu momento de perfeição e nele se detivesse, porque o quis. O apetite pelos estrangeirismos, moderado que foi, não lhe fez mal. Incorporou-os elegantemente. Não me refiro às condições presentes, pois, do que ninguém sabe, ninguém fala. E ninguém sabe o que está hoje a acontecer.




Esta paixão pela língua portuguesa, que aqui confesso, cega não será, superlativa muito menos. Entendo-a rica, porque vem das boas famílias dos antigos e o que recebeu multiplicou. Mas nunca afirmarei que é a mais rica ou a mais bela do mundo. Cada povo verá no seu idioma mais virtudes que em idiomas alheios. Que a disputa, se a houver, seja festiva, pois que os idiomas não ocupam espaço e não geram rivais mas poliglotas. Anterior à festa, está, porém, aquilo que dizem História. E a História é bruta e territorial.

Para abordar o assunto do domínio da língua portuguesa sobre os povos são necessários delicadeza e conhecimento, inteligência e desassombro em dose máxima. Dou-me por incapaz e renuncio a uma tentativa de discurso. Sei, sim, que houve opressão e apagamento. Mas talvez não nos caiba desculparmo-nos pelos conceitos e acções de antepassados, visto que não nos assumimos legatários e o continuum moral já foi cortado. Algum dia teremos, quero crer, a congratulação como vingança.

As línguas são os únicos seres vivos que não têm origem natural. O erro humano pode prolongar-se, mesmo inocentemente, por descuido. O português carregará ainda alguma febre imperial no corpo e é natural que desconfiem dele. Mas acontece que a repressão é mecânica e a língua é biológica. Se chega às terras de outros povos na bagagem do colonizador, em breve sai e se desnuda e se alimenta, e adormece e procria. As armaduras ficam no chão, enferrujadas, podres. A formação orgânica progride.

Que desígnio será o seu, agora, se não o de trocar e conviver, isto é, integrar a plenitude, reconhecendo e respeitando a alteridade? Com os nossos instrumentos humanistas, seremos nós os capazes de "Medir", como escreve o Professor Eduardo Lourenço, "esse impalpável mas não menos denso sentimento de distância cultural que separa, no interior da mesma língua, esses novos imaginários"?

Como num pesadelo, não sabemos por que meio fomos dar a esta nova era de horror e de destruição. Umas são nossas velhas conhecidas, outras indecifráveis, por ausência de modelos anteriores. Não lhes antecipámos a chegada. Na Idade Média que nos ameaça não há cancioneiros nem reis-poetas. Na ditadura da economia, a palavra é esmagada pelo número. A matemática, que começou nobre, aviltou-se, tornando-se lacaia. Se a literatura salva? Não, não salva. Mas se ela se extinguir, extingue-se tudo.

O nosso mundo de sobreviventes está seguro por laços muitos finos. Eu vejo os fios que unem os textos nas diversas versões do português, leves fios resistentes e aplicados a construirem uma teia que não rasgue. Quando o angolano Ondjaki dedica um poema ao brasileiro Manoel de Barros, quando Mia Couto reconhece a influência que teve Guimarães Rosa na sua escrita transfiguradora e transfigurada pelas africanas narrativas do seu povo; quando a portuguesa Maria Gabriela Llansol  considera Lispector «uma irmã inteiramente dispersa no nevoeiro», vemos a língua portuguesa a ocupar - não como o invasor ocupa a terra, mas como o sangue ocupa o coração - um espaço livre, um sítio para viver, uma comunidade de diferenças elástica, simbiótica e altiva. Esta é a ditosa língua, minha amada.

Eu dedico este prémio a uma entidade que é para mim pessoalíssima, à Grécia, cuja voz ainda paira sobre as nossas mais preciosas palavras, entre as quais, quase intacta, a poesia. Dedico à Grécia, sem a qual não teríamos aprendido a beleza, sem a qual não teríamos nada ou, no dizer da Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, "não seríamos nada".    

ζουν Ελλ?δα , zoun Elláda, viva a Grécia.



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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quinta-feira. 
Desejo-vos tudo de bom, muitas alegrias, sonhos felizes.

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2 comentários:

ECD disse...

Grande discurso da Hélia. Pensa muito bem, escreve muito bem e, com aquela cara de rapariga bondosa, diz sempre o que tem a dizer. Já era assim quando era "associativa" em Letras.

Rosa Pinto disse...

Fazendo as contas, como dizia o outro, tenho menos uns brancos do que a grande Hélia.
Cruzei-me com ela, no mesmo local de trabalho faz muito tempo.... e só de a ouvir falar, nunca mais a esqueci. Era diferente! Tinha magia no que dizia. Parabéns, Hélia.