Quando quis transformar um terreno de pedras e mato rasteiro num pequeno bosque - no outro dia o meu filho falou aqui disto - imaginei ter lá todas as árvores de que mais gosto: pinheiros mansos, pinheiros de flandres, cedros, ciprestes, tuias, eucaliptos, grevilleas, robinias pseudoacacias, e sei lá que mais. E arbustos. E preservar as azinheiras e aroeiras que mal medravam no meio das pedras. Como o terreno é quase impossível de cavar, as árvores novas tinham que ser árvores pequenas para as podermos pôr em buracos relativamente pequenos. Por essa altura, conheci inúmeros viveiros. Morriam muito em pequenas e, por isso, porque queria muitas, porque a taxa de insucesso era grande, as árvores tinham que ser baratas. Falaram-me, então, nos viveiros do Ministério da Agricultura ou da Câmara, que vendem (ou vendiam) aquilo de que não precisavam a preços baixos. Passei, então, a ser cliente regular deles. E é das belas, belas recordações que guardo na minha vida: as minhas idas lá, andar com as jardineiras, elas de botas (porque os terrenos estão muitas vezes molhados, senão enlameados) e eu, tantas vezes, de saltos altos (ia de manhã muito cedo, antes de ir trabalhar), outras vezes metíamos um dia de férias quando o carregamento era maior ou íamos os dois à hora de almoço, e eu a conversar com elas e elas orgulhosas do seu trabalho a mostrarem-me as suas crias, a passarem a mão pelas plantinhas, a aconselharem-me, e eu encantada, tantas vezes a pensar que eu seria feliz se fosse jardineira, paixão das maiores, ver a vida permanentemente a renascer, fazer acontecer.
Tantos cuidados eu tinha com as minhas pequenas árvores, fazendo abrigos à sua volta para não sucumbirem ao vento ou para os coelhos não as roerem, ou a ver se tinham água, e por vezes algumas que não vingavam mesmo, ainda agora há locais onde planto, replanto e replanto e morrem sempre. E o que eu gosto quando ando de podão e serrote a podar árvores, a serrar ramos, e enfio-me pelo meio do mato, e desbasto, desbasto. Não consigo andar de luvas, gosto de sentir a madeira, as folhas, a seiva. Depois fico arranhada e penso sempre que deveria ter cuidado. Mas é mais forte que eu.
Nasceram caminhos, recantos, sombras, as árvores estão grandes. E corto pernadas de arbustos e enterro-os e eles rebentam e há flores, perfumes, e já nascem pequenos pinheirinhos a partir dos pinhões que caem dos primeiros pinheiros, e os pássaros vieram e há ninhos e nascem novos passarinhos e eu sinto-me tão feliz, tão feliz.
Por isso, quando vi que estava em exibição o filme Nos Jardins do Rei (no original, com um nome bem mais atraente: A Little Chaos) sobre Le Nôtre, o jardineiro do rei, paisagista e autor dos jardins de Versailles e outros, fiquei imediatamente decidida a ir ver.
Mas o filme foca sobretudo o que creio ser um personagem totalmente ficcional, Sabine de Barras, jardineira que, sob a supervisão geral do mestre Le Nôtre, introduziu um pouco de caos na mentalidade ordenada do mestre. E, introduzindo esse caos, iluminou a vida do solitário jardineiro real, e levou alguma modernidade e perturbação a uma corte habituada a muita coisa mas não ao inesperado. E levou o prazer genuíno da natureza e da surpresa ao que poderia ser uma perfeição previsível e monótona*.
[*- Ou seja, de facto, todo o mérito da maravilha dos jardins terá residido em Le Nôtre]
Kate Winslet, de cara lavada, rugas à vista, formas generosas (de facto, estava no início da gravidez), é uma mulher tomada pela paixão da vida (apesar da angústia que carrega), que anda na lama, que se entrega à fúria de plantar, desbastar, fazer nascer. É inteligente, decidida, tem sentido de humor, é generosa, uma mulher muito mulher num mundo de homens. E Matthias Schoenaerts é o jardineiro contido, brilhante, que arrisca ao apostar naquela mulher corajosa e com uma visão desordenada do mundo e que, claro está, se apaixona por ela - tal como ela, claro está, se apaixona por ele. E, portanto, para além de tudo, esta é também aquela história que a gente gosta de ver: ele apaixona-se por ela e ela apaixona-se por ele e juntos vencem as dificuldades e, no fim, o baile a decorrer no ball room ao ar livre desenhado no centro do maravilhoso jardim de pedras e cascatas que é inaugurado pelo rei, afastam-se de mãos dadas. Entre árvores. E sabemos que serão felizes para sempre.
As cenas da corte, a conversa com o rei, tudo aquilo é delicioso. Alan Rickman é o rei Louis XIV (e também o realizador) e Stanley Tucci é o divertido Philippe d'Orleans.
Transcrevo a sinopse do Público mas, para mim, transmite uma ideia que fica aquém do que o filme é (ou então, sou eu, que, por gostar tanto do tema, me empolguei e emocionei para além do razoável).
França, século XVII. Luís XIV, o Rei Sol, contrata o famoso arquitecto paisagista André Le Nôtre para criar um projecto para um novo espaço nos jardins do Palácio de Versalhes.
Para o ajudar, Le Nôtre emprega Sabine de Barra, uma mulher à frente do seu tempo, reconhecida pela visão fora do comum. Com ideias muito diferentes sobre estética de jardinagem, a relação entre ambos revela-se algo difícil e conflituosa. Contudo, à medida que se conhecem melhor, as desavenças iniciais convertem-se em admiração mútua e a relação profissional entre ambos altera-se para algo mais íntimo. Mas tudo ameaça ruir quando boatos sobre uma relação secreta entre eles chegam aos ouvidos da vingativa mulher de Le Nôtre…
Com realização do actor Alan Rickman (que também é co-autor do argumento e dá vida à personagem de Luís XIV), um filme de época que conta ainda com a participação dos actores Matthias Schoenaerts, Kate Winslet, Stanley Tucci ou Helen McCrory, entre outros.
Kate Winslet fala da sua actuação em A Little Chaos
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E, já agora, também:
Château de Versailles - Bosquets et fontaines à Versailles
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado, muito feliz.
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2 comentários:
É isso, caos ordenado Sempre me fascinaram os jardins à francesa e, sem o saber, por isso. Por exemplo, gosto muito do Luxembourg em Paris sobretudo daquela zona que mistura canteiros de flores, pequenos relvados, pomares de peras e maças e uma quantas colmeias; entra-se pela porta da Rue de Buci.
Curioso, este seu post coincide com o fim da leitura do livro o Jardineiro Frances, de Santa Montefiore.
Nada melhor para distrair desta dura realidade, do que um livro simples com uma, neste caso, duas bonitas historias de amor.
Não conhecia a autora mas fez-me viver durante alguns dias no campo, trabalhando e reabilitando um jardim abandonado, outrora um dos mais belos a poucos kilometros de Londres.
Deve ser assim no seu Heaven, onde a cada passo se descobrem libelinhas e borboletas variadas em interminaveis bailados por entre flores que crescem livremente.
Gosto sempre de a acompanhar nas suas visitas de renovar a alma.
Bom Domingo.
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