sexta-feira, maio 15, 2015

"Expões-te tanto", dizem-lhe como quem diz "admiro a tua coragem". Frederico Lourenço não concorda. Pergunta: "Estamos no Irão? Aí sim, seria coragem" - até porque, como se sabe (acrescento eu), no Irão não há homossexuais.


Il n’y a pas d’homosexuels en Iran (Suisse) ©Laurence Rast




Por outro lado, o que está em causa no "expões-te tanto" poderá ser acima de tudo sintoma de uma maneira muito portuguesa de entender a tarefa do escritor: o poeta deve ser um fingidor; o romancista deve ser um efabulador, alguém com um talento extraordinário para criar mundos, realidades e personagens inventadas. (Não digo que não). (...)

No meu mundo literário não é assim. Em primeiro lugar porque não tenho talento para efabulador: quem escreve deve conseguir transformar as suas fraquezas em mais-valias; é o que me esforço por fazer. Em segundo lugar, constato que este escrúpulo lusitano de apagar do texto a realidade pessoal de quem o escreveu não é dogma vigente noutros mundos literários. (...)

Porque é que escrevo sobre mim? Porque é que escrevo sobre os meus pais, sobre a música que me põe a alma a falar, sobre os meus ridículos preconceitos, sobre as minhas infindas absurdezas, sobre a forma como amei os namorados cujo amor por mim determinou em tão grande medida quem sou?(...)

Poderá nesse caso perguntar-se a este auto-exposicionista inveterado: escreves então essencialmente sobre aquilo que mexe contigo, não é? Ao que o próprio auto-exposicionista responde com outra pergunta: teria algum interesse que eu escrevesse sobre aquilo que não mexe comigo?


Il n’y a pas d’homosexuels en Iran


Uma vez perguntei a um colega meu na Faculdade de Letras de Lisboa por que razão não comprava uns óculos de sol. É que estávamos à porta da Faculdade, estava uma luz afiada e cortante como só existe em Lisboa; e eu, mesmo com óculos de sol, mal conseguia abrir os olhos. A resposta do meu antigo colega deixou-me bastante perplexo: o pai tinha-lhe dito em tempos que usar óculos de sol era "prova" de se ser paneleiro. Coisa bastante sensível para quem, como esse meu colega, não sendo de todo homossexual, toda a vida se debatera com essa fama, sem nunca ter tido o proveito (coitado).

Seja como for, se há coisa divertida são as provas "iniludíveis" que tantas pessoas pensam ter da orientação sexual de outrem.Tantas vezes tais provas não provam rigorosamente nada. Os próprios gays nem sempre têm o seu "gaydar" apurado e enganam-se redondamente ao tentar adivinhar se este ou aquele "será". 


Il n’y a pas d’homosexuels en Iran 


Pessoalmente não "escolhi" ser homossexual: sei apenas que sempre fui. Mas tenho a certeza absoluta de que, se me fosse dado escolher, escolheria ser como sou. Gosto profundamente da minha sexualidade, sempre convivi com ela de forma saudável e não levem a mal se eu transcrever aqui um grafito que, quando eu era estudante, me intrigava numa das casas de banho dos rapazes na Faculdade de Letras de Lisboa: "ser gay é genial". Suponho que quem escreveu essas palavras usou "genial" no sentido de "bacana". Ser gay é bem bacana. Ser heteressexual também (imagino). O sexo, desde que praticado entre consenting adults, é bacana e (porque não?) genial. Eu acho.

.....

(...) o Apolo que Benoît quer encontrar no mundo da noite gay é o sósia da imagem do deus, tal como imaginado por Boucher, no quadro, actualmente na Wallace Collection de Londres, The rising sun.
Neste quadro, pintado em 1753, o deus é visto nos termos habituais da corporalização da masculinidade perfeita, mas há uma nuance que tira esta imagem da categoria beefcake, ainda que não da eye candy. A nuance é dada pela veste vaporosa que salvaguarda a modéstia do deus, veste que Boucher tingiu com a cor dos dedos róseos de Aurora.
(da crónica Em demanda de Apolo)
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* Todos os textos fazem parte do livro 'O lugar supraceleste' de Frederico Lourenço, das Edições Cotovia. Os que acima não se encontram assinalados pertencem, respectivamente, às crónicas:

  • Expor-me

  • Óculos de sol

  • Orientação sexual enquanto tema filosófico


* Lá em cima a música é Capriccio de Richard Strauss numa interpretação de Kiri Te Kanawa

Mas na ópera há também (...)  "la joie d'aimer sans vouloir le dire". E a personagem operática mais expressiva desta maneira não-verbal de amar é a Madeleine de Capriccio (...). Esta vivência, por parte de Madeleine, da alegria de amar sem querer dizê-lo não é inteiramente resultado da discrição aristocrática da personagem (uma condessa), mas sobretudo da circunstância de ela estar apaixonada por dois homens.   
Excerto da crónica O som do amor (3)

* As fotografias fazem parte de uma série do fotógrafo suíço Laurence Rasti sobre o tema tabu da homossexualidade no Irão: Il n’y a pas d’homosexuels en Iran. Ao dar-lhe visibilidade, Laurence Rasti pretende assinalar os riscos que os homossexuais iranianos ainda correm, tendo que viver a sua sexualidade às escondidas pois arriscam, inclusivamente, a pena de morte.


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E por cá? Todos os homossexuais já vivem a sua sexualidade com naturalidade, sem serem vítimas de preconceitos? É possível falar e brincar da homossexualidade com sentido de humor e descontracção? O tema já não é tabu? O léxico, desde o mais científico ao popular ou vernáculo, já é olhado com naturalidade e não como insulto?
Pergunto.
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A pessoa que amamos é a metade que nos falta para nos sentirmos completos?
(...)

Quando nos apaixonamos por alguém, faz parte da sintomatologia própria da paixão percepcionarmos a pessoa amada como a peça que faltava para nos sentirmos inteiros.
(...)

Nada nos traz mais próximos de nós mesmos do que amar outra pessoa.
(...)



(Excerto da crónica O ganho de uma perda
- ou como o amor e a paixão são iguais seja na hetero seja na homossexualidade)

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Para terminar:

É possível tocar Bach em piano com supremo bom gosto (Maria Tipo) 

- Frederico Lourenço dixit na crónica A centelha


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela sexta-feira, com muito afecto, com muita paz.

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