sexta-feira, maio 22, 2015

A menina agressora, o menino assassino, o polícia mau, as famílias gatunas - pequenos espelhos que, em parte, reflectem os tempos que atravessamos nesta sociedade que parece estar a desestruturar-se


Vá lá, vamos lá. Este é o meu terceiro post desta noite e vinha com isto em carteira mas, vá lá perceber-se como funciona isto da mente, que me deu para tentar afastar este assunto dos dedos e pôr-me com frioleiras, rebaldarias e vestes descaradas.
Abaixo poderão ver um Papa que quer lá na igreja uma decoração clean, em tons nude, e um pintor inspirado que desperta pensamentos indevidos no Papa. E, mais abaixo, tenho o anúncio mais recheado de erotismo dos últimos tempos, pelo que recomendo que as almas mais sensíveis se aproximem de óculos escuros e que as senhoras mais dadas ao pudor desçam um recatado véu sobre o olhar.
Mas, enfim, isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa fia mais fino.




Espelho no espelho




Se o ano começa com mulheres a serem assassinadas de qualquer maneira, a tiro, à facada -- e outras vezes não são mulheres, são vizinhos, amigos -- a gente assusta-se e pensa que isto parece ser uma tendência em crescendo.  E pensa que é o desemprego, o álcool, factores que tiram os homens se si próprios.

Mas depois há as violações, padrastos e pais que engravidam filhas pequenas, e mães que levam as filhas menores a prostituírem-se e pensa que desgraças assim sempre as houve, agora é que se sabe mais.

E há os padrastos e pais e mães que agridem filhos menores, bebés até, e que de tal forma é a violência que as crianças morrem e já nos estamos a interrogar sobre que gente é esta, gente desalmada que faz sofrer e mata aqueles que tanto devia amar. Tentamos encontrar explicações para cada caso, talvez sejam vidas desestruturadas, droga, carências absolutas, casas onde os valores mais básicos já desapareceram, onde as pessoas já são pouco mais que animais acossados.

E depois são também os programas de televisão, aquela torpe exploração básica de sentimentos que resultam da troça, da humilhação, mesmo que as vítimas sejam adolescentes que depois ficam fechados em casa, incapazes de conviver com a vergonha pública.

E logo de seguida chega-nos um vídeo que mostra um rapazinho a ser passivamente esbofeteado por colegas enquanto os outros riem e filmam -- e o tempo passa e ele não se mexe, espera que o agridam e a miúda agride-o e ri; e depois vejo na televisão o miúdo de costas num quarto muito pobre e fico ainda mais triste porque tudo isto é muito mau, muito incompreensível e triste.

E logo depois é um outro rapazinho, franzino, problemático,  que mata à pancada um outro e que arrasta o corpo ensanguentado e o esconde e, ao que parece, se passeia com o casaco ensanguentado da vítima.

E, ainda em choque com isto, chegam-me ecos da mensagem da mãe, no facebook, a gritar que mais valia que o filho fosse o que foi morto. Depois arrependeu-se, disse. Mas o grito de rejeição de mãe por esta cria que tem andado de casa de acolhimento em casa de acolhimento ficou a sangrar no meu coração e talvez no de todos quantos leram um tal grito cheio de sangue, raiva e lágrimas.

E ainda mal refeitos, logo nos chegam imagens de um polícia tresloucado a agredir num homem pacífico que está com o pai e com os filhos, e o pai, de idade, também  a ser agredido e os miúdos a chorarem de medo.

E na festa de Lisboa a coisa deu em violência, uma batalha campal, agressões a polícias, e em Guimarães gente normal, famílias normais, destruíram instalações e tornaram-se vulgares gatunos que tudo roubaram à sua passagem.

E, perante tantos episódios tão aberrantes e tão frequentes, eu não consigo virar-me para um dos agressores em concreto, não consigo concentrar nele, apenas nele, a minha rejeição e perplexidade.

E dou até por mim olhando-me ao espelho da minha consciência e interrogando-me:
Podia seu eu a estar ali, com as câmaras a filmarem, a roubar uma loja como se de uma vulgar ladra eu me tratasse? Aquelas pessoas parecem tão normais. 
Poderia eu, num momento de desnorte, desatar a agredir uma outra pessoa mesmo perante o olhar assustado dos filhos? Aquele polícia parece tão normal, até ia receber um louvor. 
Poderia eu, num momento de desatino, estando sem dormir, sem dinheiro, sem futuro, sacar de uma faca e desatar a golpear a pessoa que amo? De quase todas as pessoas que o fizeram, disseram amigos e família que nunca suspeitaram de demência ou distúrbio grave. 
Se calhar podia. Se calhar se a vida me golpeasse fundo, me desamparasse, se eu estivesse sem trabalho, sem ter como alimentar os meus filhos, sem esperança em nada, talvez eu pudesse deixar de ser eu e tornar-me um monstro, uma ladra, uma demente. Como então culpar cada uma destas pessoas sem lhes conhecer a vida? E como não ver que não é uma pessoa a fazer mal mas, sim, muitas, muitas, cada uma à sua maneira?

As televisões e os jornais exploram ad nauseam as imagens de violência e eu acho errado porque não há nada pior do que a banalização do mal e porque, ao olharmos para um caso em particular, descuramos o olhar panorâmico e não percebemos que o mal é geral, é profundo, que algo se passa na nossa sociedade, que os laços ancestrais de harmonia que pareciam ligar as nossas células parecem estar a quebrar-se. E eu não sei se é o desemprego, a emigração, a falta de perspectivas, o manto de lama que foi lançado sobre nós (que éramos piegas, que éramos preguiçosos, que éramos gastadores), a desmotivação que se lançou sobre os agentes do sistema de ensino, o descrédito relativo ao sistema financeiro que achávamos intocável, a fraca qualidade dos políticos que introduziram a mentira como vulgar arma de arremesso, a comunicação social que se lança sobre tudo de uma forma primária, destruidora, e mais o medo e a insegurança que parece submergir toda a gente, ou se é tudo isto misturado num caldo infecto – mas o que sei é que se deveria repensar bem se é esta a sociedade que queremos. Por vezes é bom dar-se um passo atrás, pensar.

E, se necessário for, mudar de rumo.
.....oooooo....



(...)
porque tudo anda dentro de mim, e o mundo
esgota-se
no teu movimento entre laços
de sangue, cabelos luzindo, as pedras
inclinadas para os teus lugares respiradores; a árvore
crescendo a cada paragem, com toda a tua inspiração
na minha morte, aqui, uma árvore
combustível
onde a fruta faísca: paraíso de espaços múltiplos
e velozes,
entranhando em mim como se eu fosse a árvore
e tu fosses o espelho que a árvore despedaçasse pela sua força
e no espelho eu, como uma imagem, fosse despedaçado
brilhando.



[excerto de 'a morte própria' de Herberto Helder in Photomaton & Vox]
  
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O vídeo mostra uma cena do Ballet Othello com música de Arvo Pärt, Spiegel im Spiegel, pelo Estonian National Ballet numa coreografia de  Marina Kesler. 

As fotografias fazem parte da série “Reflections” na qual Sebastian Magnani fotografa um espelho redondo em vários lugares. Surpreendido pelo silêncio e simetria que se desprende das imagens, Sebastian tem prosseguido em busca do contraste of structures, colors, moods and various lightnings.

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Para mudar de ambiente e aliviar a alma sugiro que mergulhem nos posts seguintes - humor, erotismo e ligeireza.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela sexta-feira. 
E iniciemos o caminho em direcção a melhores tempos.

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