Todos os dias procuro o frescor que se sente junto às margens do rio. Só mesmo se não puder é que não vou. Ao fim de semana e a menos que aconteça alguma coisa de grave, começo os dias procurando o rio.
Riverside
por Agnes Obel
Tantas vezes, à noite, depois de um dia de trabalho, mesmo quando me apeteceria estar abrigada em casa, mesmo ao vento e à chuva, lá vou. De noite ouve-se o rugido do mar, o ranger das correntes que prendem os barcos ao cais, e não se vê vivalma. Pode sentir-se medo quando se anda assim à noite, nos dias de vendaval, de invernia. Nesses dias posso chegar a casa molhada, a cara gelada, mas venho retemperada. A maresia lava-me a alma.
Da casa dos meus pais, antes via-se o rio. Depois construíram prédios em frente e, para eu poder ver o rio, tinha que ir à rua lá mais em cima. Passou a ver-se apenas a serra do outro lado. Todos os dias, quando me levantava, eu ia à varanda da cozinha olhar a serra. Ainda agora, quando lá estou, se vou à cozinha continuo a ter o reflexo de ir à varanda ver a serra.
Quando passei a viver numa casa minha, tinha Lisboa inteira a meus pés, o Tejo inteiro até ao oceano. Era um 15º andar onde eu via o efeito do amanhecer, do entardecer, das tempestades, sobre o rio e sobre a cidade. Se pudesse, estava sempre à janela ou na varanda, apesar de não conseguir abeirar-me muito dos limites pois as alturas causem-me vertigens, aquela sensação de que poderia sair dali a voar.
A seguir, mudei para uma casa maior mas que tinha uma vista mais limitada e agora vivo numa casa também perto do céu. De manhã, abro a janela e tenho um mar imenso, a cidade bela, os navios que lentamente deslizam, os pequenos veleiros, as gaivotas que vêm do rio dançar aqui em frente da minha janela.
Agora está a chover muito e a noite pesada mal me deixa ver as luzes da cidade. Se calhar, a cidade a esta hora já não tem luzes, se calhar só eu estou acordada.
Mas de manhã o céu estava quase limpo, uma neblina, uma leveza no ar.
Os gatos da margem estão gordos. Há umas mulheres que aparecem com grandes sacos, chamam os gatos pelo nome, espreitam para dentro das ruínas, aliciam-nos. Depois eles aparecem e eu tenho pena deles. Eram gatos vadios, ágeis, esquivos. Andavam nas rochas, procuravam o que comer, pulavam os muros, esgueiravam-se pelos telhados. Agora aceitam que as mulheres os alimentem com comida que os engorda e os deixa inertes. Mas as mulheres andam felizes, vê-se que se sentem realizadas por terem tomado os gatos vadios à sua guarda. Até lhes fizeram umas casinhas com tábuas e plásticos. E os gatos aceitam isso, ser tratados como brinquedos.
Um dia destes talvez veja as gaivotas em gaiolas ou a comerem milho, feitas pombos gordos.
Às vezes tenho vontade de dizer às mulheres que o que estão a fazer é imoral mas, se me levassem a sério, ficavam os gatos libertos da bondade delas mas ficavam elas tristes, talvez com a vida vazia de propósito. Por isso, não digo nada.
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O Riverside ainda deve estar a correr mas, se concordarem, paravam-no porque agora é tempo de passear na minha Motherland
Estes dias não me andam fáceis e o meu tempo não tem podido ser inteiramente meu. Por isso, os meus dias in heaven têm escasseado. As visitas são mais espaçadas e mais curtas.
O solo está coberto de musgo, tudo está verde e molhado, a natureza vive em liberdade e a caruma caída mistura-se com a rama do alecrim e os caules mais secos cobrem-se de líquenes que parecem seda ou renda, e as cores são límpidas, limpas.
O odor que se solta da terra molhada, da ramagem dos eucaliptos e dos pinheiros, do alecrim e do rosmaninho é um odor lavado, doce, e eu ando muito devagar para ver se a impressão fica gravada em mim. Tanto que eu preciso destas sensações e tão poucas vezes que as tenho. Durante a semana, a maior parte do tempo, vivo entre vidros, respirando ar condicionado. Durante o dia, enquanto me sento em cadeiras e secretárias de autor e enquanto resolvo problemas, atendo telefonemas, envio mails, dirijo ou participo em reuniões, não vejo gatos da beira do rio nem gaivotas nem líquenes.
Por isso, quando vejo veleiros que deslizam como grandes pássaros marinhos ou quando estou in heaven, tento guardar reservas para os dias que se seguem.
Cada vez consigo andar mais silenciosamente. Os pássaros já quase não se afastam quando passo sob as árvores onde se abrigam. Apenas se faço alguma fotografia e o leve som do disparo os assusta é que, se levantam, num sobressalto, as asas batendo contra a folhagem. Outras vezes, são os coelhos que se assustam e saem a correr, assustando-me também a mim que por ali vou, em silêncio, em êxtase.
As árvores, algumas, têm os ramos nus, ramos que se entrelaçam, corpos livres que traçam gestos de bailado.
Espreito os azulejos através deles.
Espreito os azulejos através deles.
Eu dizia, Ainda aqui há-de estar 'un petit bois' e ria-me e eles riam-se também, não acreditavam.
As árvores do meu pequeno bosque cresceram, os troncos já têm rugas e neles nascem rendas, jóias maravilhosas.
E vou andando. Observo as pequenas flores, pequenas, pequenas, que parecem querer prenunciar uma primavera ainda distante; passo as mãos nos arbustos de alecrim e madressilva, depois aspiro o perfume das minhas mãos molhadas.
O céu aqui está cinzento, chove, está muito frio, e eu desloco-me com vagar, tento que o tempo se dilate, não quero que se aproxime a hora de voltar à cidade.
Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes!
Pudesse eu, pudesse eu. Digo as palavras como minhas, não de Sophia. Pudesse eu responder aos teus convites, ó vida.
Pelos recantos espalhei poemas. São palavras que me acompanham enquanto por aqui ando, é a voz dos poetas que habita esta casa que me acolhe como se eu fosse sua filha.
Mas a casa está fria, precisava que lá estivéssemos mais tempo, que acendêssemos a lareira ou a salamandra, que as luzes estivessem acesas, que a nossa respiração a aquecesse.
Mas a vida é o que é e nem sempre se consegue fazer tudo o que se quer. Viémo-nos embora ao fim do dia e agora já estou de novo na cidade porque as solicitações assim o exigem.
A chuva, entretanto, abrandou. Há um silêncio suave aqui na sala. E passa das três da manhã, vou dormir. Daqui a nada o meu dia recomeça e, ainda com os pulmões lavados com o ar puro do eucalipto e alecrim, deslocar-me-ei de novo até à beira do rio.
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Permitam que vos diga que, no post abaixo, falo da separação do CR7 e da Irina, gente que habita um outro mundo.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo domingo.
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15 comentários:
Um texto digno do Ginjal, um texto que me fez bem. Hoje acordei com uma certa nostalgia, uma saudade não sei de quê. Talvez precise mesmo de guardar o "tempo dentro de mim" e de respirar o ar fresco da manhã. Para já, vou tomar o pequeno-almoço e ler o jornal.
Tenha um excelente dia, UJM.
Bj
Olinda
Olá UJM
Gostei ...e muito! O texto com a qualidade habitual, este com um toque íntimo sereno e luminoso e as fotos EXCELENTES. Quando eu for grande quero fotografar assim!!!
Um grande abraço e um enorme obrigado
JOAQUIM
O texto fez-me bem para iniciar um domingo sombrio. Parabéns!
https://www.youtube.com/watch?v=1p_ebSseEq8#t=43
Oiça nos seus passeios!!!
Beijinho
Belo texto, estimada UJM !
Votos de continuação de um retemperador fim de semana.
Melhores Cumprimentos
Vitor
Tinha saudades de ler os seus textos poéticos.Foi nessa sua fase que a "conheci" e,com a sua deriva para uma outra fase mais cheia de libido-fantasia,francamente,afastei-me.Há estados de alma que não gosto de ver partilhados com estranhos,soi disant,num blog.Hoje tive uma agradável surpresa.Parabéns palo texto.Obrigada pela partilha.
Maria Ana
Um outro mundo, dos tantos e imagináveis que existem.
Daqui dá para ver o quanto se esmera o habitante do mundo ao lado do meu, do muito que faz para se notabilizar, enquanto nos do outro lado, permitem-se respirar. Sim. Respirar também é uma conquista, em alguns mundos.
Naveguei, em tempos, por mares, onde terminava a fronteira de outros mundos. Fiz amizades e tréguas com alguns desses habitantes. Desejámos felicidades e partimos em direcção ao nosso canto.
Sim. Cada mundo tem o seu canto. Uns estão no centro, outros em cantos, assim funcionam os mundos.
Dessas viagens, pernoitavam os chamados alaridos humanos. O que são? Penso que seriam homens e mulheres que tentavam socializar numa capa oca. Com essa ferramenta, viviam em mundos vastos de superficialidade, e cantavam vitórias. Eram os alaridos.
Mas eram alaridos humanos, apenas porque de noite, deixavam as capas moribundas nos seus corpos guarnecidos pelas capas diurnas, e mergulhavam na imensidão esbelta e luzente que trazem consigo em cada sonho, infestadas de sentimentos, capazes de atravessar o melhor que cada mundo tem, e unir numa humanidade que apenas aí reside.
Respirar o ar fresco do rio deste meu mundo, não é o mesmo dos grandes oceanos transbordados de ar injectado, pelo preço que as capas diurnas podem pagar. Sim. Em mundos que só respiram porque podem pagar com a moeda da falsidade e receber o troco da imunidade.
Pisar o musgo macio do meu campo, não é o mesmo dos grandes pastos de verde virtual, compostos por grandes maquetas e figuras pintadas de pessoas e animais que fingem serem reais, perante o aplauso eufórico de tantos figurinos, pagos pela mesma moeda e mesmo troco, dos que respiram dessa forma.
Ser eu e tentar guardar o tempo dentro de mim, como se ele fosse meu, e dele pudesse dispor eternamente, como se eterno fosse atingível, por quem é por pouco tempo, de cada vez que o é, e se dentro de mim, coubesse todo o tempo que podia ter.
Sim. Há mundos que podem pagar e ter troco da tal moeda, mas esses, estão presos e são presos do seu tempo.
Um bom domingo.
TITO COLAÇO
18.01.2015
Olá Olinda,
Fico sempre contente quando vejo as suas palavras. Volta e meia apetece-me deixar-me ir sem pensar muito no que escrevo. Repito-me, eu sei, mas os caminhos são os mesmos, os meus passos são os mesmos, não me posso inventar para escrever coisas diferentes.
Espero que esteja tudo bem consigo, de saúde e de tudo.
Beijinhos!
Olá Joaquim,
Ontem quando escrevi isto já estava a pensar ir-me deitar mas depois arrepiei caminho pois estava com vontade de deixar as palavras seguirem o seu rumo. Fico contente que tenha gostado quer das palavras quer das fotografias. Obrigada.
Um abraço.
Olá Rosa Pinto,
Que música linda, não conhecia. Obrigada. Não a ouvirei enquanto passeio pois nunca me habituei. Prefiro ir ouvindo os sons da rua. Mas estou a ouvir agora e hei-de partilhar pois gostei mesmo.
Agradeço muito.
Um abraço!
Olá Vítor,
Fico feliz que tenha gostado. Quando uma pessoa escreve de forma tão espontânea e até temendo que, por não trazer nada de novo, chateie os outros, é agradável ver que, afinal, até ficou bom de ler.
Obrigada. Um abraço!
Olá Maria Ana,
Fez-me sorrir. Quando me dá para escrever contos a atirar para o erotismo é pura ficção. Não me daria jeito nenhum partilhar estados libidinosos de mim própria. (Estou a escrever e estou a rir só de pensar).
Já tenho escrito outras histórias, ficção também, e que são de outro tipo mas, se quer que diga, quando estou para aí virada, gosto de escrever historietas malandrecas e se o não faço mais vezes é que a meio a coisa começa a tender para o humor, já me dá vontade de pregar partidas aos próprios personagens que inventei. Mas, enfim, seja para o que for, a gente tem que estar para aí virada e a inspiração não é coisa que se comande - pelo menos, comigo não é.
Reservo o fim do dia, geralmente noite tardia, para escrever e não tenho tempo para medir bem o que escrevo. É o que me ocorre no momento. se ouço uma notícia que me faz saltar a tampa, é sobre isso que escrevo. Se leio alguma coisa ou vejo imagens engraçadas, é sobre isso que me sairão as palavras.
Outras vezes, não penso em nada e escrevo sem pensar e foi o que aconteceu ontem.
Gostei que tivesse gostado e agradeço que mo tenha dito.
Muito obrigada.
Olá Tito,
Tem razão, há quem procure rios de felicidade sem tentar ser feliz com o rio que corre perto de si. Ou quem idealize mundos que não existem, deixando o tempo ir passando sem encontrar o que está dentro de si próprio.
Os tempos andam acelerados e pouco tempo há para simplesmente aproveitar o que se tem.
Um bom fim de domingo também para si.
Obrigada Jeitinho,
Neste domingo chuvoso e triste em que esta solidão urbana tomou conta de mim, soube-me tão bem este passeio pelo seu Paraiso.
Senti o cheiro da terra molhada, um perfume.
Os seus textos são sempre reconfortantes.
Um beijinho e uma semana mais calma.
Olá Pôr do Sol,
Respondo já na segunda feira e para lhe desejar que o domingo até tenha sido bom e que esta semana ainda seja melhor. E que consiga descobrir motivos para ter confiança porque sem esperança no futuro é que nunca sentiremos alegria.
Um abraço, Sol Nascente!
Sobre Lisboa, talvez possa parecer estranho dizer isto, mas a verdade é que nunca houve uma empatia entre mim e a cidade e na primeira oportunidade que tive deixei-a de vez para ir viver noutro local. Nunca criei afectos com Lisboa. Nunca. E só a visito por razões de trabalho. Reconheço que a parte antiga tem o seu encanto (Baixa, Chiado, Graça, Castelo, etc), mas tão só. O resto da cidade, de arquitectura mais recente ou mais moderna, que é a maior área, não me diz rigorosamente nada. Lisboa, quanto a mim, perdeu muito do seu antigo charme, com a confusão de gente e veículos que por ali vivem e andam. O mais estranho é que só há pouco tempo Lisboa começou a olhar para o rio. Mas, mesmo assim sem grande convicção. Impunha-se, tivesse havido imaginação e ousadia, embora hoje já não seja possível, uma marginal que fosse do Guincho a Vila Franca de Xira, por exemplo, pujante de vida e comércio.
Quando tive de me ausentar para o estrangeiro, nunca senti, por um momento que fosse, saudades de Lisboa. Há cidades assim, que não nos agarram. Como sucedeu comigo e Lisboa. Ou porque perderam qualidade de vida (que julgo ter sucedido com Lisboa), ou porque não nos satisfazem por qualquer razão.
Já visitei e conheci várias cidades e tal como Lisboa, numas viveria agradavelmente (em Itália, ou França, por ex.), noutras jamais (como NY, Berlim, etc).
Estas coisas não se explicam. São assim. E a falta de sintonia entre mim e Lisboa não tem solução. Enfim, há males piores.
P.Rufino
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