quinta-feira, janeiro 08, 2015

Eu sou Charlie. Je suis Charlie. I am Charlie. Yo soy Charlie. E por aí fora, em qualquer língua. Mas, se me permitem, pergunto: quem forneceu as armas aos assassinos? que países estão a permitir que toda aquela gente ande armada até aos dentes? em que países está a indústria de armamento que está a abastecer esta gente perturbada?


Em momentos de comoção como este, todas as atenções se concentram na condenação unânime do acto sangrento. Ao condenar o acto, não se condena apenas aqueles que premiram o gatilho e, a sangue frio, dispararam contra os jornalistas e cartoonistas do Charlie Hebdo como, também, o movimento em que se integram e, a coberto do qual, de forma bárbara, executam, sem dó nem piedade, qualquer um que lhes pareça não respeitar o Profeta. 


E com esta condenação moral de toda a população livre e democrática - em que se pede justiça também sem dó nem piedade, em que se pede que ninguém se detenha em desculpas, em atenuantes, e se punam exemplarmente os facínoras - as atenções focam-se nas consequências e esquecem as causas.

Não me levem a mal mas eu sou mesmo assim. Para verem bem a massa de que sou feita, conto-vos que, por exemplo, não fui capaz de me vestir de branco e, de vela na mão, ir fazer vigílias por Timor. Se nunca tinha percebido a forma como os portugueses tinham virado as costas a Timor deixando que a Indonésia pusesse e dispusesse daquele longínquo território, também nunca achei que existisse grandeza moral num homem como Xanana que aparecia vestido de benfiquista a louvar os carcereiros e que era visto (e ainda é) como o grande salvador de Timor Leste. Ou seja, não sou de me deixar ir em qualquer onda emocional (o que, se calhar, é defeito meu) pois, em momentos de crise, torno-me fria e o meu lado racional impera sobre o emocional.

Por isso, gostava que soubessem o que penso sobre o que aconteceu em Paris no semanário humorista Charlie Hebdo, naquela inacreditável carnificina no coração de uma Europa livre.



1. Claro que fiquei chocada quando soube. Ia no carro e fiquei arrepiada, horrorizada.


2. Contudo, tenho dificuldade em cegamente pedir sangue, não querendo olhar a atenuantes. 

A minha primeira reacção perante quem faz enormidades deste tipo é querer que sejam impedidos de as continuar a fazer - e, a seguir, o meu coração perdoa. Posso não esquecer, posso ficar atenta, de pé atrás, vigilante - e fico. Mas, dentro de mim, perdoo.


3. Já aqui o disse: acho que todo este movimento é, essencialmente, uma coisa de rapaziada aventureira, que não tem causas, que se sente desenquadrada e sem objectivos e que, para além do mais, pratica jogos de guerra de forma obsessiva e que, por desfastio, em busca de um objectivo, mobilizados pela adrenalina de um combate global, se lançam nestas aventuras como se não fosse uma coisa a sério mas sim mais um nível num qualquer jogo de guerra. 

Com variantes, acontece isso sempre que há uma guerra: magotes de voluntários oriundos dos mais diferentes cantos, que se alistam nem sempre por razões lógicas, geralmente para irem experimentar a excitação de uma brincadeira a sério. 


4. Mais. Uma vez lá, alistados, em ambientes de desenraizamento, sujeitos a treinos militares, com armas a sério nas mãos, com missões, sentem-se importantes, heróis, macho men, querem provar que estão à altura. E aí vão eles. O homem que as televisões e os jornais difundem e que, na rua, matou um polícia que já estava por terra parece a imagem de uma cena de um jogo de guerra. Não há sentimentos quando se joga: há apenas necessidade de matar os inimigos, fazer pontos, passar ao nível seguinte. Sabem lá eles o que diz o Corão, conhecem lá eles a interpretação profunda da mensagem do Profeta. Devem conhecer umas quantas interjeições, uns quantos clichés e pouco mais. 


5. Na sua imaturidade precisam de inimigos para terem missões, para poderem pôr em prática o que aprendem nos seus treinos. Qualquer um que faça humor 'à custa deles' ou que de alguma forma pareça desafiá-los fornecer-lhes-á o pretexto ideal para passarem à prática, para, empolgados, planearem uma missão, para, depois, a executarem à espera dos louvores e da suprema recompensa.


6. Mas isto são eles. Gente que se junta vinda de vários países, de meios sócio-económicos distintos, com histórias de vida díspares, sem uma cola cultural comum. Conjunturalmente calha juntarem-se. Quando caem neles e querem fugir, são mortos porque passam a inimigos. Ainda esta quarta-feira li que um dos decapitadores apareceu agora decapitado. Quem com ferros mata, com ferros morre - é mais do que sabido. 


7. Mas então como é que estes bandos heterogéneos conseguem ganhar tanto terreno, tamanho ascendente? Interrogo-me.


8. E, no entanto, sei a resposta: porque são alimentados. Armam-nos primeiro com o pretexto de que vão combater ditadores ou que vão ajudar a derrubar regimes inimigos ou conquistar território para uma qualquer causa. Mas, de facto, armam-nos porque a indústria de armamento é poderosíssima e tem que se manter activa. É preciso manter as fábricas de material militar a trabalhar. Essas fábricas têm que vender o que produzem, têm que escoar a produção, os stocks. Têm. Têm mesmo - nem que para isso alguém tenha que inventar guerras, movimentos separatistas, grupos de combate a qualquer coisa. 

Claro que há também o consumo doméstico mas isso são amendoins. A população americana armada até aos dentes, uma habituação desde a nascença ao mundo das armas, seja através de filmes e séries, seja através de jogos, uma aculturação conduzida pelos grandes interesses, dá no que dá. Há poucos dias foi um bebé de dois anos que, num supermercado, matou a mãe. A mãe, transportando consigo uma criança de dois anos, trazia, certamente com naturalidade, uma arma pronta a disparar. E, no entanto, os americanos condescendem e o mundo fecha os olhos. Mas isso, de facto, não é o que aguenta uma máquina de guerra. Para tal há que exportar armas, viaturas, mísseis, fardamento, munições - tudo o que precisa de vendas de grande volume para que o negócio se mantenha próspero.

Para pagar esse armamento, os movimentos que o recebem apoderam-se de fontes de petróleo ou são apoiados por produtores e traficantes de droga. Mas isso é apenas um outro pormenor.


Ora bem: quais são os países em que a indústria de armamento é mais forte? Quais são os países que geralmente encontramos a apoiar movimentos destes? Estou a pensar em dois ou três, ou quatro. Claro que já se apressaram a condenar os actos bárbaros. Claro que choram os mortos, claro que fazem discursos inflamados, escorrendo sentimento. E, no entanto, quanto do sangue que escorreu dos corpos dos que caíram no Charlie Hebdo teve origem nos disparos de armas que saíram desses países?

9. Se, em vez de toda a comoção contra dois ou três dementes, manipulados, desenraizados, três iguais a tantos outros, estivéssemos, antes, em fúria contra o cinismo, a hipocrisia, a amoralidade dos senhores da guerra que manobram, que viciam, que compram os políticos que tudo aceitam, bem mais a salvo estaríamos e melhor defenderíamos a liberdade e a democracia.


10. E, no entanto, eu sei. Na poderosa indústria do armamento está grande parte do PIB dos países em que se insere. Muita gente a trabalhar lá, gente de muitas especialidades, e, a montante, muito aço, e muita electrónica, muita indústria complementar. Não é de ânimo leve que algum governante vai deixar cair a indústria de armamento na qual circula muito dinheiro, muitos segredos, muitas pontas soltas.


11. Só governantes fortes, líderes visionários, dispostos a enfrentar lobbies poderosos e perigosos é que, com tempo, com acordos de regime de longo prazo, muito bem estruturados, conseguirão reconverter a indústria de armamento para algo menos mortífero e certamente pior remunerado. Só com acordos inter-países, só com uma forte consciencialização global é que se poderá fazer qualquer coisa. E só quando isso acontecer é que o mundo estará livre de momentos de terror como os que atingiram o Charlie Hebdo, ou massacres como o da escola do outro dia, ou ataques de toda a espécie, atentados sangrentos, pânico e insegurança.


12. Posso dizer um milhão de vezes que sou Charlie e, tal como eu, podem todos os meus Leitores, todos os leitores de todo o mundo e todos os jornalistas, escritores, políticos do mundo inteiro que nada disso resolverá o que quer que seja. 

Talvez um dia o mundo acorde para a necessidade de controlar tudo o que se move nos bastidores do mundo e que deixa rastos de sangue ou pobreza por onde passa: as entidades financeiras sem rosto, a indústria de armamento de que ninguém fala, o mundo da droga. Até lá, vamos andando iludidos.




Vamos fazendo de conta que, se dissermos todos que somos Charlie, divulgarmos cartoons, fizermos minutos de silêncio ou hastearmos bandeiras a meia haste, resolvemos alguma coisa. Era bom que sim mas, em minha opinião, na prática, isso vale pouco mais que nada.

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Os cartoons que ilustram este texto foram feitos por diferentes cartoonistas para diferentes jornais como forma de solidariedade pelos colegas assassinados. Obtive-os no Libération.

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O que é o Charlie Hebdo? O que aconteceu e porquê?

- o Wall Street Journal explica em menos de dois minutos.




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E, sem mais, para terminar:


Click-Pause-Silence pelo Nederlands Dans Theater - Jiří Kylián



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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quinta-feira.

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8 comentários:

Vitor disse...

Disse MUITO BEM, estimada UJM !
Melhores Cumprimentos
Vitor

Humberto disse...

Caríssima UJM
Excelente artigo ! Excelente !
Um óptimo dia
Um abraço
HB

Anónimo disse...

Poderia subscrever todo este seu Post, aliás muito bem equacionado. Tal como você, UJM, também prefiro, em ocasiões de crise, utilizar o racional e evitar as emoções. É com este tipo de procedimentos que se consegue encontrar as melhores soluções. Só diferia na forma como combater este tipo de barbárie. Há quem defenda que violência com violência se paga. Talvez sim, talvez não. Esta canalha fanática e criminosa não nos respeita minimamente. E matam a sangue frio, como sucedeu ontem mais uma vez, com a satisfação do objectivo obtido, alegremente, impávidos e sem quaisquer remorsos. São absolutamente irrecuperáveis. Nesse sentido, ter-se-á que os combater eliminando-os. Não há outra solução. Apanhá-los, julga-los, condena-los e executa-los. Não me repugna minimamente a pena de morte para casos extremos, como estes, como os trogloditas assassinos que degolam inocentes, etc. A par disto, por muito que custe aceitar tais procedimentos, um Estado que é vítima deste tipo de problemas tem todo o direito de limitar a migração de cidadãos oriundos de países muçulmanos. Mas tem igualmente o direito de, doravante, passar a ter de controlar apertadamente e vigiar policialmente todos os bairros onde vivem estas comunidades, ou mesmo até, limitar o número de habitantes em cada um desses bairros. Mas, o importante é dar uma resposta adequada, drástica, a estes miseráveis e insensíveis assassinos. Não concebo sentimentos para com gente deste calibre. E não acredito em programas de reabilitação, numa prisão. Matou, elimina-se. Para exemplo. Ou destrói-se o bárbaro, como aqui há uns a anos trás, pude ouvir. Conto-lhe. Naquela ocasião tive de participar num encontro, ou reunião de trabalho, onde se discutiam várias questões relativas a presos, desde extradição dos mesmos, a cooperação jurídica e judicial, condições das prisões, reabilitação de presos, etc. Estavam lá presentes diversos directores dos sistemas prisionais, entre outro tipo de pessoas, juristas, sociólogos, etc. E, à margem daquela reunião, falámos com um desses directores do sistema prisional do seu país, natural de um país europeu, campeão dos direitos humanos. Que nos revelou o seguinte: relativamente a determinado tipo de detidos, extremamente perigosos e depois de um exame psicológico completo, chegando-se à conclusão que não seriam recuperáveis, eram encarcerados em celas de 2mx2m, sem janelas, apenas no fundo da porta uma portinhola para receberem as refeições, totalmente à prova de qualquer som, as paredes pintadas de cinzento (por, aparentemente, ser uma cor que deprime ao fim de um certo tempo) e cuja luz interior era administrada pela prisão, que, a acendia e fechava a horas incertas. As visitas eram raras. Com isto, o prisioneiro ia perdendo a noção do tempo, do dia e da noite, da realidade (sem sons) e como não tinha acesso a livros, ou quase e mesmo assim muito esporádico e da escolha da prisão, o resultado era o total aniquilamento psíquico do ex-criminoso perigoso. Ao fim de vários anos naquelas prisões, os antigos criminosos estavam completamente destruídos e já não constituíam um perigo para a sociedade. Na altura, aquela descrição fez-nos impressão. Mas, olhando para estes fanáticos islâmicos, como os que decapitam e matam inocentes, hoje, semelhante sistema de castigo prisional não me repugna. Terrível dizer isto, mas é o que sinto – desde há algum tempo a esta parte. Lá diz o ditado: “quem os seus inimigos poupa, ás suas mãos morre!”

Rosa Pinto disse...

É.
Melhor análise não poderia ser feita.
Como dar "volta" a isto tudo?

Beijinho

lino disse...

Excelente posta! Haja alguém que saiba escrever bem e ponha os pontos nos is.
Beijinho

Anónimo disse...

UJM,
Por lapso, ao que vejo, o meu (longo) comentário não saiu com o meu nome.
Aqui o deixo - P.Rufino assina o comentário "poderia subscrever o seu Post".

Pôr do Sol disse...

Cara Jeitinho,
Lamento sinceramente aquelas mortes.

Contudo penso que a liberdade de expressão não tem de passar pela provocação.

Falha minha, talves, mas não compreendo aquele tipo de humor nem a sua necessidade.

Concordo totalmente consigo e penso que a hipocrisia anda de maos dadas com o fabrico de armas.

Contra tudo e contra todos, começando cá por casa, não sei se me juntaria à manifestação de hoje, onde tanta gente com responsabilidade se expôs.

Apetece-me gritar SOCORRO!!!!

Cada vez me identifico menos com este mundo.

FIRME disse...

Se os restos mortais dos nossos idos ,falassem ,entre eles de campa para campa ,será que diriam:Morri por tua culpa?Ou a culpa foi tua? Será que nem lá,admitem que,foram ambos culpados? Andamos sempre a passar de mão em mão,uma culpa que é de todos...As malditas armas,só matam quando um homem quer...Usá-las em legitima defesa,SIM !