sábado, maio 10, 2014

Nem sequer o amor que os ligava poderia salvá-los, visto que na ausência do mundo até o amor é impotente








À sua volta tudo é de um branco leitoso, não se distingue o chão, nem as paredes, e estas parecem flutuar como espectros na estranha bruma que em breve as engolirá e apagará.





Nós não sabemos de verdade o que são os mundos nem do que depende a sua existência. Algures no universo está acaso inscrita a lei misteriosa que preside à sua génese, ao seu crescimento e ao seu fim. Mas sabemos isto: para que surja um mundo novo, é preciso que, primeiro, morra um mundo antigo. E sabemos também que o intervalo que os separa pode ser infinitamente curto, ou pelo contrário tão longo que os homens têm de aprender durante dezenas de anos a viver na desolação para descobrirem infalivelmente que não são capazes e que no fim de contas não viveram.



Talvez possamos até reconhecer os sinais quase imperceptíveis que anunciam que acaba de desaparecer um mundo, não o silvo dos obuses por sobre as planícies esventradas do Norte, mas o ruído do obturador, que mal perturba a luz vibrante do Verão, a mão esguia e estragada de uma jovem mulher que fecha tudo suavemente, no meio da noite, uma porta sobre o que não deveria ter sido a sua vida, ou a vela quadrangular de um navio que sulca as águas azuis do Mediterrâneo, ao largo de Hipona, trazendo de Roma a inconcebível notícia de que ainda existem homens, mas já não o seu mundo.




Na insignificância das suas pobres presenças humanas quando o chão lhes fugia debaixo dos pés não lhes deixando já outra opção além da de flutuarem como espectros num espaço abstracto e infinito, sem saídas e sem direcções, do qual nem sequer o amor que os ligava poderia salvá-los, visto que na ausência do mundo até o amor é impotente.


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  • O que se lê são excertos do belíssimo livro O sermão sobre a queda de Roma de Jérôme Ferrari da Divina Comédia Editores numa tradução de Pedro Tamen. Este livro ganhou o Prémio Goncourt 2012

  • A música lá em cima é de Gabriel Fauré - Sicilienne, para violoncelo e piano, Op. 78

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Caso, depois disto, vos apeteça estragar tudo e ler sobre debilidades mentais, inconseguimentos fiscais em tempo de saídas apressadas, e sobre fácies que mostram bem a desgraça que lhes vai dentro, (des)aconselho o post seguinte.

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E, por agora, por aqui me fico. Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado.

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