No post a seguir falo sobre a sexualidade de um certo deputado do PSD e, mais abaixo, mostro o resultado da minha ida aos saldos. Conversetas. Coisas menores. Ligeirezas.
Mas agora, aqui, é coisa bem diferente. A vossa atenção, por favor.
*
Silêncio por favor que é tempo de um certo Redondo Vocábulo
Agora abro alas para falar de um texto do mais maravilhoso que há. Gostava de o transcrever todo. Gostava de o saber de cor. Gostava de o ter escrito. Gostava que toda a gente o lesse. Gostava que toda a gente gostasse tanto da Hélia Correia como eu gosto. Gostava que Portugal inteiro a pusesse num pedestal e a ouvisse e que as suas palavras ecoassem por essa Europa fora.
Como é que esta mulher que parece viver entre fadas e duendes, acariciando gatos e outros seres misteriosos, aparentemente perdida entre sótãos, florestas, poesias, ficções e devaneios de toda a ordem tem depois esta lucidez tão vibrante, esta precisão de atiradora profissional? Pasmo. Sempre pasmei. Mas hoje mais do que nunca.
Peço-vos, mas peço-vos encarecidamente que, no fim, abram o link para o artigo completo e, palavra a palavra, tomem o texto de Hélia Correia nas vossas mãos, pensem nele, levantem-se com as palavras dela como bandeira.
Transcrevo um pouco, apenas um pouco (destaques meus). E vou ilustrar com os graffitis de outro grande, Banksy, ao som de um outro espírito brilhante, José Afonso.
[] [] []
No rigor do latim, “indignado” é o que é tornado indigno. E eis, porém, que a palavra não se aceita a ela própria, empreende uma singular rebelião. Nega a humilhação que cai sobre ela. Vejam o quanto esta palavra é poderosa. Como deitou ao chão a sua origem. Como tomou nas mãos a sua vida
I
Não tenho competência para escrever sobre os eventos da realidade. Começa a falha pelo léxico: nem sei se o termo “evento” pode usar-se aqui. Não aprendi o bom vocabulário. E quanto à organização para o discurso, saber onde ele começa e como acaba, mais o que pelo meio se vai pondo, tão pouco faço a mais pequena ideia.
(...)
Parece, às vezes, que o cenário da ficção científica assentou no planeta actual: que criaturas mais ou menos humanóides nos conquistaram pelo interior e desapoderaram-nos de tudo, esperança, dignidade e alegria. Vimos tanto clamor nas praças gregas, cólera e fogo com nenhuma consequência. É como se entre os protestantes e o poder não houvesse trajecto, não houvesse natureza contínua. Duvido até que conseguissem procriar se a carne de uns e de outros se encontrasse. Respiram ares diferentes e não faz sentido algum que certa retórica da esquerda os desafie a que experimentem a pobreza, a que tentem viver com o salário que destinaram para os indefesos. Provavelmente viveriam bem porque não se alimentam como nós. Nem dormem como nós. Talvez nem morram. A verdade é que pouco pensamento nós conseguimos produzir sobre eles. A desumanidade é um mistério.
II
Por que aceitamos que se fale, por exemplo, nas “gorduras do Estado”? O Estado não tem metabolismo. Tem excesso de despesas, muitas delas em mordomias e em disparates.Um Estado não “emagrece”: corta nos gastos, e a escolha para os cortes tem critérios, e os critérios não se aplicam ao acaso. Aquilo que se chama ideologia, a moldura mental com que um comum destino se interpreta e planeia, decide a escolha. E escolhe-se cortar naquilo que é empecilho ao projecto, no que se quer extinguir ou, pelo menos, fazer partir para onde não se torne visível. Com a metáfora sobre o corpo obeso dá-se a volta ao assunto, transformando-o em algo humanizado e censurável. Fica fora do alcance da razão — nos labirintos do imaginário, naquilo que culturalmente assimilámos a ponto de esquecer — a simpatia pela causa. Dentro de nós, a ideia do descuido, da glutonice, da preguiça, enfim, do Sul, facilmente coabita com a ideia de punição e de dieta rigorosa. Tomar medidas para emagrecer é justo e bom. Se implica sacrifícios, são sacrifícios de ginásio, desses que conferem certa estética ao suor. Só um bulímico se recusa a entender e a estimar um regime que assegura saúde e elegância a quem o siga. Alcança longe, a manha da metáfora.
(...)
Se hoje as pessoas continuam a marchar é porque, à força de repetição, os sapatos estão enfeitiçados. Não é de dança, mas de espasmo, o movimento. O grito que invectiva já não faz estremecer o seu destinatário. O seu destinatário olha para “aquilo”, chama-lhe “aquilo”, e vai à sua vida. Mostra um grande talento para apoucar. Nós que talento revelamos? O da fé? O da brava teimosia? Repetimos os nossos argumentos… “até à náusea”: assim acaba a frase que herdámos da retórica latina. Não é possível refazer a língua? É, sim.
III
(...)
Por que usam a palavra “austeridade”? Porque há nela uma certa ressonância de coisa justa, de atitude respeitável. Alexandre Herculano foi austero. Sóbrio, frugal, um tanto seco na expressão, honesto, incorruptível — isso mesmo. A austeridade é um estádio a que se chega num percurso moral muito esforçado. É um modo de vida, uma atitude pela qual alguém opta, numa escolha inteiramente pessoal, quando recusa render-se ao luxuoso e ao supérfluo. Classificar alguém de “austero” significa que lhe atribuímos qualidades pouco usuais no cidadão vulgar. Ouvimos a palavra e logo o nosso dicionário subconsciente nos assinala que é para respeitar, acatar e temer. Se há uma “austeridade” que castiga é porque andámos na dissipação. Pressupõe-se que nós baixemos a cabeça sob o pecado que a palavra implica.
Na verdade, não há “austeridade” aqui. Há alguém empurrado para a miséria. É um processo involuntário, imposto por uma força superior, neste sentido de que não pode desobedecer-se. E imposto, no sentido, também, da inocência. Estamos a pagar o quê, porquê? Em que momento é que prevaricámos? Foi a comprar mais um televisor, foi a escolhermos uma sala com lareira? Nós aprendemos, no devido tempo, que não podemos alegar ignorância da lei se a violámos, mas havia uma lei contra o conforto? Havia alguma lei que proibisse os filhos de viverem como tinham vivido os patrões dos seus pais? Devo dizer aqui que o consumismo me desperta uma viva repugnância, que admiro e sigo, porque quero, a vida “austera”. Mas, porque eu ando de transportes públicos, entenderei que a compra de um automóvel deve entregar o cidadão ao agiota? Estou a falar de pequeninas coisas, de minúsculas coisas que não chegam para lançar uma pessoa no inferno. O grande gasto, o gasto vil, onde se oculta?
Na verdade, não há “austeridade” aqui. Há alguém empurrado para a miséria. É um processo involuntário, imposto por uma força superior, neste sentido de que não pode desobedecer-se. E imposto, no sentido, também, da inocência. Estamos a pagar o quê, porquê? Em que momento é que prevaricámos? Foi a comprar mais um televisor, foi a escolhermos uma sala com lareira? Nós aprendemos, no devido tempo, que não podemos alegar ignorância da lei se a violámos, mas havia uma lei contra o conforto? Havia alguma lei que proibisse os filhos de viverem como tinham vivido os patrões dos seus pais? Devo dizer aqui que o consumismo me desperta uma viva repugnância, que admiro e sigo, porque quero, a vida “austera”. Mas, porque eu ando de transportes públicos, entenderei que a compra de um automóvel deve entregar o cidadão ao agiota? Estou a falar de pequeninas coisas, de minúsculas coisas que não chegam para lançar uma pessoa no inferno. O grande gasto, o gasto vil, onde se oculta?
Não, não nos pedem a “austeridade”. Eles exigem a pobreza e as suas consequências. Não, não fizemos mal. O que fizemos foi por fraqueza de desprevenidos ante a perversidade dos banqueiros. Não nos aliciavam com empréstimos? A bruxa má não estava a oferecer maçãs? Ficaremos agora deitados no caixão, narcolépticos, à espera de algum príncipe?
Vamos de história em história, adormentados.
Uma palavra envenenada estraga o mundo. Basta atentarmos em “democracia”, palavra vinda de tão longe, trabalhada, moldada, experimentada tanta vez. Parece ter sofrido uma anquilose, uma patologia da velhice que a transformou numa entidade rígida. E o conceito que lhe corresponde imobiliza, prende, como num propósito de teia. Diz-se: o eleitor votou em liberdade. E essa liberdade manietou-o. Mais não pode fazer do que esperar pelo próximo processo eleitoral. E censuramos os abstinentes que nos respondem que “não vale a pena” — quando os factos lhes dão toda a razão. Porque a democracia está disforme, ainda que insistamos em louvá-la.
Se olharmos sem a ilusão veremos quão irreconhecível se tornou. Veremos como finda o seu processo ali onde devia ter início. Melhor dizendo: finda o que, em rigor, é perene. A palavra “escrutínio” significa, para nós, simplesmente, a contagem dos votos. Mas escrutínio não é apenas isso: é vigilância. É observação continuada, é um exame de comportamentos. Por alguma razão os ingleses, experientes neste assunto, ainda aplicam a expressão under scrutiny aos governantes. O sustentáculo da democracia está na possibilidade e na probabilidade de cada cidadão vir a ser eleito e, uma vez eleito, prestar contas. Essa é a superioridade da República e a sua beleza. O voto é só um expediente técnico que o espaçamento temporal vicia.
Como se leva isso à prática não sei. Mas sei como se leva ao pensamento. E sei que o pensamento é o que faz levantar a cabeça. Estamos num tempo novo, rodeados por luz e escuridão para as quais não temos nem mapa nem farol. Temos modelos tão inspiradores como remotos. Certo é que a palavra é a obra do humano e a palavra não cessa de existir. Com palavras se fazem os fascismos, e Magnas Cartas e as Constituições. Cultivá-las, estudá-las, não nos salva talvez. Mas dignifica-nos. E se podemos aprender algo com o passado, antes de o perdermos completamente de vista, é que a dignidade se conquista e que a indignação a isso ajuda.
* * *
Relembro: não deixem, por favor, de ler o texto na sua versão integral.
Relembro também: se quiserem saber das minhas compras nos saldos ou se aquele tal deputado do PSD é gay, então vão de encontro ao meu lado 'pipoca mais doce' e desçam, por favor, até aos dois posts seguintes.
* * *
E, assim sendo, por agora fico-me por aqui.
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta feira.
E que as sábias e belas palavras de Hélia Correia vos acompanhem.
7 comentários:
http://lifestyle.publico.pt/artigo/329736_com-respeito-as-palavras#.UtwrQPC9yqc.facebook
um dia passam cá - http://filmspot.pt/artigo/benefits-street-o-programa-de-televisao-que-escandalizou-a-gra-bretanha-4320/
http://www.ionline.pt/artigos/portugal/manuel-alegre-apela-trasladacao-salgueiro-maia-panteao-nacional
é mais fácil passar 2 camelos pelo buraco de uma agulha, mas vale pela coragem de o pedir.vamos ver se outros pedem o mesmo.
e que tal um monitor destes lá no trabalho - https://www.youtube.com/watch?v=zL_HAmWQTgA
este tipo dá, dá ,dá, e mesmo assim ainda consegue ser o mais rico, que dure muitos anos - http://annualletter.gatesfoundation.org/?cid=bg_yt_ll0_012018/#section=home
ou aqui 3 mitos- https://www.youtube.com/watch?v=UL4zoo8xijc
Que grande artigo! Inspirado! E excepcionalmente bem escrito. Há muito que não lia algo assim! Gostei. Bastante.
Dá-nos que pensar. Naturalmente, a quem pensa. Os do governo não pensam. Têm trampa na cabeçorra. Uma chatice que se reflecte nas maldades que praticam sobre todos nós.
P.Rufino
Olá jeitinho,
Excelente!!!
Beijinhos Ana
Enviar um comentário