quinta-feira, janeiro 23, 2014

A estupidez das praxes académicas violentas, humilhantes, arriscadas; a estupidez dos veteranos que as impõem aos caloiros; a estupidez dos caloiros que se sujeitam: a estupidez das escolas que as permitem; a estupidez da sociedade que as toleram. Isto a propósito do drama do Meco que vitimou seis elementos do Conselho Oficial da Praxe Académica da Lusófona e do qual o respectivo Dux saíu fisicamente ileso (mas, com certeza, psicologicamente marcado para o resto da vida). E nem quero pensar na dor das famílias. Tudo muito horroroso.


  • No post já aqui abaixo poderão ler um artigo brilhante escrito por uma mulher, Concha Caballera, um artigo que parece premonitório e que, lendo-o, percebemos como tem sido fácil a um punhado de humanóides (como lhes chama Hélia Correia), auxiliados por um bando de homens de mão, destruir uma construção laboriosamente concebida e alimentada ao longo de 30 anos. Não deixem de o ler, é o que vos peço.
  • Depois desse, tenho ainda um texto em que mostro como não é feito nenhum o défice de 2013 ficar abaixo de 5.5%. Todos os crimes que têm estado a ser cometidos contra nós eram em nome de um défice de 3% (e mostro-vos qual era o primeiro objectivo do acordo com a Troika). Será que não vai sendo tempo de nos rirmos na cara destes embusteiros? De os impedirmos de nos continuarem a intrujar?

Mas isso é depois deste texto aqui.

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Há assuntos sobre os quais falo com muitas reservas. Sempre que os assuntos envolvem mortes, doenças, sofrimento, em especial de jovens ou crianças, eu resguardo-me. No princípio do mês já toquei ao de leve nisto mas num acto de esforço imenso. Há uma dor que merece respeito e em que qualquer palavra em vão pode ser sal em cima de uma ferida aberta. Depois são momentos, acho eu, em que o silêncio é essencial. E eu temo não encontrar as palavras certas para revestir de silêncio aquilo que penso.

Na véspera de Natal, estávamos a jantar quando, sendo assunto recente, o drama do Meco veio à baila.

Um dos presentes disse: coisas de praxes, ritos iniciáticos, porcarias dessas, e correu mal. Na altura não se falava nisso e, achei que sendo estudantes, e indo calmos conforme os viram, ou seja, não aos tombos de alguma bebedeira maluca, não fazia sentido irem para a beira de água numa de praxes e só sete, as praxes costumam envolver mais gente e exposição pública, não uma coisa no Meco com aquelas ondas enormes, um sítio em que a areia afunda junto à linha de rebentação e, ainda por cima, perto da uma da manhã.

Achei mais que tivesse sido coisa de jovens que gostam de conversar até tarde, depois ir passear pela praia, peace and love, sem se darem conta do mau tempo e dos avisos, aquela coisa de são jovens, não pensam, qualquer coisa do género. Mas ele persistiu, Podem crer, foi isso, não são inéditos esses ritos iniciáticos a meio da noite na praia e as praxes têm porcarias dessas.

Achei aquilo tão improvável que pensei que ele estava a ficcionar e continuei na minha, a achar que tinha sido um acidente em que não havia ninguém a culpar e em que o sobrevivente, para sua infelicidade, iria carregar toda a vida a memória da noite horrível em que tinha perdido seis amigos.

Mas eis que aos poucos as notícias vão deixando saber pormenores: que sim, que era um fim de semana em que a comissão de praxes ia organizar as praxes para o próximo ano, que o sobrevivente era o chamado Dux (e eu nunca tinha ouvido a expressão, não fazia ideia de que toda uma estranha organização rodeia essa estupidez das praxes) e, que quando os familiares chegaram a casa que os jovens tinham alugado, já estava tudo arrumado e as coisas de cada um estavam guardadas nos respectivos sacos que tinham o nome de cada um, que os jovens todos - excepto o sobrevivente - tinham deixado o telemóvel em casa como se tivessem a intenção de ir à água, que uns dias depois alguém ligou para a senhora que se ocupa da limpeza da casa a perguntar por uma colher de pau em tamanho gigante que tinha ficado esquecida atrás da porta e com a qual tinham sido vistos a dançar no dia do acidente – pormenores que não parecem fazer grande sentido.

Ouvi agora que o assunto passou a estar em segredo de justiça e vai ser investigado pela Judiciária.

E depois, claro, com a imprensa toda em cima do assunto, já é difícil saber o que é mesmo verdade ou um diz-que-diz-que, mas leio que haverá um pacto de silêncio entre os estudantes porque há mesmo qualquer coisa de ritualizado e há também uma hierarquia nisto das praxes e eu fico perplexa, perturbada. Tantos mundos paralelos e estranhos que eu desconheço. 

Todos os anos me cruzo amiúde por altura do início do ano lectivo com grupos de estudantes, elas com as caras pintadas, penteados divertidos, eles também pintalgados, todos sorridentes e bem dispostos, em grupos ruidosos. Andam pelas ruas, invadem os centros comerciais.

É coisa que no meu tempo não havia e, se houvesse, teria sido coisa à qual me teria furtado. Tudo o que sejam estes movimentos de grupo, de comportamentos homogéneos e expectáveis, uma coisa de tipo rebanho, me causa repulsa. Já o disse aqui mil vezes: sinto-me intrinsecamente livre pelo que nunca fui e acho que nunca serei  filiada em coisa nenhuma, nem participo em cenas em que tenha que alinhar ordeiramente com outras pessoas (missas, comícios, jantares de curso, etc).

Por isso, voltando ao tema, não me imaginaria nunca a participar em peripécias nem como praxada nem como praxadora. Por natureza, isso causa-me um incómodo visceral e, por princípio, outro tanto incómodo me causa.





Felizmente, quando chegou a vez dos meus filhos, ela viu-se envolvida numa coisa como a que descrevi e lembro-me que apareceu em casa toda animada com totós, rosetas coradas, sardenta, toda ela relatando cenas engraçadas. E acho que tinham andado a passear assim e, do que me lembro, umas brincadeiras quaisquer num jardim e pouco mais. Sempre gostou de festas e divertimentos com amigos pelo que encarei como uma coisa natural. Do meu filho não tenho ideia de nada disso, é rapaz para se ter posto completamente à margem. E nenhum deles teve essa treta do traje académico até porque, felizmente, nenhum deles é dado a fardamentos (ele, então,  nem na escola infantil aceitou vestir bibe, tamanha era a rejeição que tiveram que abrir uma excepção para ele).

No entanto, se com os meus se passou o que vos contei, para minha estranheza, é cada vez mais frequente encontrar jovens de capa e batina ao longo de todo o ano por todo o lado, ou seja, já não é coisa que se circunscreva ao início do ano lectivo. 

Não é também raro, desde há alguns anos, ouvir-se falar de excessos absurdos ligados a praxes. Sabe-se, de vez em quando, de praxes que envolvem humilhações, maus tratos. Quando isso se sabe, alguém manda instaurar um processo e a coisa fica por aí.

O que intriga nisto é o que será que vai na cabeça destes jovens que aceitam ser humilhados e fisicamente mal tratados? E que estupidez e deformação mental é a dos jovens que se armam em chefes dessas tretas e, de forma organizada, se sentem com poder para poder sacrificar outros?

E, sendo isso assim mesmo, não deveriam os órgãos directivos das escolas onde isso se passa proibir e punir os jovens envolvidos em práticas que vão para além do mero divertimento?

É que uma coisa é organizar brincadeiras, festas, convívios, onde os mais jovens sejam integrados numa nova comunidade e outra, muito diferente, é, de forma pensada e, até, ensaiada, conceberem práticas arriscadas, punitivas, que envolvem dor, medo, vergonha por parte dos que deveriam ser integrados em festa?

Devo dizer que a actual mentalidade de parte dos jovens é algo que escapa à minha compreensão.

Conheço muitos que nem se recensearam pois acham que a política, em geral, é uma porcaria com a qual não querem ter nada a ver. Não querem mudar o que acham ser o status quo: querem, simplesmente, permanecer fora dele.

Como referi num dia em que estava no Porto, no fim de Outubro, em dia de manifestação, o passeio junto e em frente e a entrada do Coliseu estavam apinhados com jovens de capa e batina e, na manifestação, praticamente nenhum jovem (e seguramente nenhum de capa e batina). Não querem saber.

De forma geral, são desinteressados em relação ao que se passa, acham que é sempre mais do mesmo, jogadas espúrias, coisas a que se sentem alheios. Preocupam-se com arranjar trabalho, sabem que grande parte dos amigos e colegas foram para fora ou estão a pensar ir, sabem que os que cá estão ou não têm trabalho ou têm trabalho precário, mal pago, e que outros andam sempre ganzados ou cocaínados. E gostam sobretudo de conviver, de estar uns com os outros, conversar, estarem juntos. E isto é do que eu ouço à minha volta. E depois há os que andam pelos bares e discotecas até caírem para o lado. E já para não falar num outro vasto grupo que são os intelectualmente indigentes, que não estudam nem nunca estudaram, que não sabem nada de nada, que mal sabem falar e em que a maior ambição que têm é fazer presenças ou participar nas casas dos segredos.

Francamente, o que eu às vezes também sinto é que é melhor nem pensar nisto para não ficar ainda mais preocupada. É que não sei qual o futuro de um país em que o panorama com a juventude é o que descrevi e em que o governo faz de tudo para incentivar ainda mais estas práticas e estas mentalidades.

Que intervenção cívica ou que atitude crítica é de esperar de jovens que humilham outros ou que, passivamente, se deixam seviciar, que desconhecem o que se passa na sociedade, que se encontram totalmente alheados da política, que não lêem, que não se interessam por outra coisa que não a sua própria vida ou, na melhor das hipóteses, o convívio com amigos?

Raios partam isto. Como foi que deixámos que isto chegasse a este ponto?


NB: Para ler mais sobre este assunto e ver um vídeo sobre o assunto, por favor clique aqui.
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A primeira e a última fotografia provêm daqui. Em relação às outras não descobri a proveniência.

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Relembro: a seguir há mais dois posts, o primeiro com um texto fantástico de Concha Caballero que acho que não devem perder e, mais abaixo, um que mostra mais um dos embustes em curso. Somos dóceis e fáceis de enganar é o que é.

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Já estou com muito sono, mal me aguento. Não vou reler o que escrevi pelo que vos peço que me perdoem se o texto estiver cheio de gralhas.


Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quinta feira!


12 comentários:

Anónimo disse...

pois, mas condeno mais os cavardes, que não gostam disso, mas não mexem uma palha, para alterar a situação (se calhar é o reflexo da nossa sociedade).Refiro-me aos outros alunos (não caloiros).Caloiro que estivesse perto de mim, não era praxado, aconteceu algumas vezes de sermos praxados todos juntos, os dux também. o preço que paguei foi a ostracização (mesmo pelos caloiros, ninguém segue minorias, mesmo tendo razão), mas para quê socializar com este tipo de animais.acho que não perdi nada

Anónimo disse...

Sinto o mesmo relativamente ás praxes, rebanhos e pertença a grupos, etc. Igualmente, não era capaz de aderir a um Partido, só pelo facto de ter de aceitar a chamada “disciplina partidária”. No meu tempo, as únicas praxes que existiam e os únicos estudantes que usavam capa e batina eram os de Coimbra. Eu acabei por tirar o meu curso em Lisboa, já que tinhamos deixado o Porto uns anos antes e recordo-me de ter pedido a meu pai para ir para Coimbra, cursar Direito, o que ele me negou peremptoriamente, alegando que se calhar ali ainda me perdia e falhava o curso (quem sabe se não tinha razão!). E depois, ele nunca achou grande graça ás praxes (um tio nosso, que ali se licenciou em Medecina, decadas antes, contava-nos coisas desses seus tempos, de praxes e estudantada de capa e batina, a que meu pai nunca achou grande piada). Seja como for, naquela altura as coisas, apesar de tudo, eram menos violentas e algo diferentes (até, por vezes, politizadas, anti-regime). Hoje, é o que se sabe. Não segui com especial atenção esta história, mas começo a ver que afinal havia algo mais, o que é triste. E foi trágico.
Quanto a todos estes estudantes universitários, seria, talvez, melhor que para além de se concentrarem nos seus cursos, se interessassem pelo futuro do país, que estará na mão deles, muito em breve.
P.Rufino

Anónimo disse...

um regalo para os olhos - http://www.jeanbaptistechandelier.com/video/

jrd disse...

Como é que deixámos que isto chegasse a este ponto?
A razão é a mesma que vai deixar que isto continue.
Nada a fazer, os estudantes que cultivam estas prática são filhos do pais que temos.
As excepções não contam.

Anónimo disse...

são os mesmos não caloiros, que em adultos, habituados a ver (e não concordar) mas a não fazer nada, passam indiferentes aos outros - http://www.ionline.pt/artigos/portugal/albergaria-velha-homem-mata-se-frente-autarquia-desespero


continuo a dizer, os record de solidariedade do banco alimentar é para expiar o caganço.

Fernando Ribeiro disse...

Eu quase me sentia inclinado a dizer que existem praxes académicas desde que a Universidade de Coimbra foi fundada. Creio, por exemplo, que, no séc. XIX, Latino Coelho já referia no seu livro In Illo Tempore a existência de praxes em Coimbra. No caso das outras universidades, as praxes são coisa recente, posterior ao 25 de Abril. Aqui no Porto, por exemplo, antigamente só existiam praxes no Orfeão Universitário do Porto, do qual cheguei a fazer parte durante um ano, mas que tive que abandonar porque me roubava muito tempo aos estudos. Milagrosamente, escapei a ser praxado no Orfeão!

Não é fácil, muitas vezes, escapar às praxes, porque os "veteranos" costumam agir em manada e impõem-se aos caloiros pela força. Em Coimbra, as manadas de "veteranos" que andam à caça de caloiros para praxar são chamadas troupes. A palavra dux, por seu lado, é a forma abreviada de dux veteranorum. O dux veteranorum de uma universidade é o aluno mais antigo dessa mesma universidade. É, portanto, o aluno mais cábula ou o mais burro de todos os alunos dessa universidade. Ele é a autoridade máxima em tudo o que diz respeito às praxes e demais tradições académicas.

No meu tempo de tropa também havia praxes, que eram em tudo idênticas às praxes académicas e em que os recrutas eram vítimas de variados abusos. Também consegui escapar à praxe na tropa! Só entrei no tenebroso convento de Mafra às cinco para a meia-noite do dia marcado para me apresentar. Fi-lo de propósito. A essa hora, as praxes já tinham acabado...

Anónimo disse...

À semelhança do uso do argumento antiguidade para justificar as praxes, também se acena com os tempos imemoriais para a continuação de outros ritos primitivos, tais como as touradas.

Infelizmente, os cidadãos portugueses só parecem ter grande capacidade para se mobilizarem quando se trata de conservar costumes bárbaros, opondo-se àqueles que tentam impedir o desenrolar de uma destas actividades.

Anónimo disse...

Dux ?? gaijos repetentes e burros...
aí se algum destes gaijos viesse ter comigo ao berros a dar-me ordens .... vais valia emigrar para outro país até Trincava-o todo..
os ditos caloiros sao uns medricas, olha que a mim ninguem me toca. Ass. Vale46

Anónimo disse...

Houve 1x que meteram semen de cavalo na boca de um colega meu e eu nada pude fazer por ele eu chorei um animal e o meu amigo Ze Carlos chorou comigo e o meu amigo quando engolia semen de cavalo chorou ainda mais portanto se alguem puder fazer alguma coisa em questao a praxe este numero 924239589



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Anónimo disse...

Na verdade, a Universidade de Coimbra sempre praticou praxes académicas, que não tinham nada a ver com as praticadas em Lisboa. No fundo, - eu licenciei-me em Direito em Lisboa em 1978- até à década de 80 não havia práticas académicas em Lisboa. O problema foi a partir daí. Os estudantes, no fundo, quiseram "imitar" a Universidade com mais prestigio de Portugal: a de Coimbra. O aparecimento dos Politécnicos agravou a situação.
Concordo "in totum " com o comentário sob o título "Um Jeito Manso", e, na generalidade, com os outros. Total desrespeito pelo ser humano, comportamentos aviltantes, humilhantes, próprios de quem precisa de qualquer coisa para se afirmar e não tem qualquer respeito pelos outros. Puro fascismo!. E o mais grave disto é que parece que os desgraçados que foram para o Meco assinaram um termo de responsabilidade a aceitar o que lhes acontecesse!!! Será que as pessoas não sabem que há direitos indisponíveis, como o direito à vida? Tanta ignorância, tanto aproveitamento da necessidade que os jovens têm para se integrar nestes grupelhos...VERGONHA! VERGONHA! VERGONHA!

Um Jeito Manso disse...

A Todos,

Vejo pelas estatísticas do blogue, que este post à data de hoje (dia 27 de Janeiro) já foi visto quase 1000 vezes. O que eu penso é o que está lá expresso bem como no que escrevi depois (http://umjeitomanso.blogspot.pt/2014/01/quem-conhecia-selvajaria-estupidez.html).

Por isso não vou acrescentar mais nada.

Não me parece que devamos agora partir para uma caça às bruxas individualizada pois estamos a falar de uma prática cujos contornos grotescos e fascizantes eram conhecidos e tolerados por muita gente.

Acho sim que se deve, daqui para a frente, proibir as práticas humilhantes e que ponham em perigo a vida ou atentem contra a integridade e a dignidade - situações que estão bem enquadradas pela lei. Ou seja, quem as pratique está a infringir a lei e para isso há a respectiva moldura penal.

Penso que seria inteligente que os estudantes se unissem e vissem o que faz sentido fazer para integrar os caloiros (há mil coisas interessantes que podem ser feitas) e que se constituam em ambiente festivo, alegre, isento de humilhações, sofrimento, etc.

De resto, todas as situações aberrantes, nojentas, intimidatórias, atentatórias da dignidade devem ser denunciadas nos locais adequados para isso (tribunais, polícias, etc). Somos um Estado de direito e há que preservá-lo, respeitando a lei e, sobretudo, respeitando as pessoas.

E tenhamos cabeça fria e inteligência na forma de lidarmos com as situações.

Anónimo disse...

Sinto-me, como dizer, envergonhado que os meninos das universidades em Portugal venham em nome de "praxes" ou lá que inutilidade é esta dar sabor a actos desprezíveis e infundados. Acabem de uma vez por todas com este excremento nas universidades. Estudem e preparem-me para desenvolver o pais! É para isso que estão lá. Cambada de escroques.