quinta-feira, dezembro 05, 2013

Duarte - a queda do belo albatroz






De quantos espantos, de quantos sustos, de quantos medos, de quantas desilusões precisa alguém para se fortalecer?

Pode alguém querer andar ao vento, sobre as ondas, deslizar e correr sobre as águas, sentir-se envolvido pelas asas das grandes gaivotas brancas e não conseguir senão andar em terra, entre corredores e paredes, entre disfarces, alcatifas e conversas de salão?

Pode. Pode. Uma vida inteira a ser-se quem não se é? Pode-se muito bem. 

Aquele que voando se sentiria rei dos mares, em terra sente-se desajeitado, um pobre palhaço sempre no dever de fazer rir os outros para disfarçar a sua condição, um albatroz de asas colossais arrastando-se por terra tal como Baudelaire tão bem o descreveu.

Habitua-se assim o nobre albatroz a ser o bobo da corte, o primo dilecto, o bem sucedido executivo, o divertido e charmoso donjuan. Habitua-se a levantar-se e ver-se no espelho já nem estranhado que aquele que o olha seja outro e que, depois, caminhe todos os dias não como se fosse para o cadafalso mas para um redil, um entre outros seres selvagens que a vida aprisionou. 

E os anos vão passando e os sonhos vão ficando caídos cada vez lá mais para trás, esquecidos, esboços que o tempo não completou, ténues sombras no passado, quase apenas uma longínqua imaginação.

Mas algo se vai quebrando por dentro.

Por vezes nunca se chega a ser suficientemente forte.

Até que um dia.

Até que um dia uma vontade súbita de voltar a sonhar.

E depois outro. Voltar a sentir o gosto da maresia na pele tisnada.

E mais outro. Voltar a sentir a alegria dos grandes espaços.

E de novo. Velejar, trepar pelas ondas, desafiar tempestades, atravessar o pôr do sol.

Mesmo que se esteja sozinho, fechado entre quatro paredes.

E, aos poucos, já uma necessidade. Não passar sem esse suplemento de ânimo.

E já todos os dias.

E já não conseguir suportar o vazio dos dias iguais sem essa euforia do voo do albatroz sobre mar encapelado. Ou ser o forte albatroz de longas asas no meio de suaves gaivotas rasgando as nuvens. Fantásticos devaneios. Tão bons. Tão bons.  

E depois já mais que uma vez por dia.

E aos poucos uma vergonha. E depois, cada vez mais, também o não ser capaz de suportar a vergonha. Fraco, fraco, tão fraco. Precisar de ajuda para não se lembrar da penosa vergonha.

E a dificuldade em adormecer. E ajuda para adormecer.

E uma ajuda para se manter acordado.

E uma ajuda para não pensar no que está a acontecer.

E a necessidade cada vez mais frequente, mais premente. 

Pó branco como uma nuvem bondosa. E comprimidos como inócuas guloseimas. 

E dinheiro.

E cada vez mais dinheiro. 

E esconder. E esconder. E esconder sempre. De todos.

Quando quiser, vai parar. 

Mas esse dia não chega, nunca mais chega. Só mais hoje, só mais esta vez. Muitas, muitas vezes. 

E as pontas começam a ficar soltas. E como voltar a agarrá-las? Quando? Como? Tão espalhadas elas já estão.

E os novos amigos. E a vergonha. Escondê-los. Esconder-se. 

Tudo tão frágil.

E a pressão. O dinheiro, as ausências, os não resultados, a impossibilidade das justificações, a alergia, não: é rinite, a insónia, o sono, a impaciência, a agitação. E sempre a disfarçar, a negar, a esconder, a mentir. Tantas mentiras, tantas, tantas mentiras. E tanta vergonha.

E o desespero. Viver assim para quê?

Mas e o desgosto causado aos outros se isto acabar já?

E a vergonha se descobrem?

Labirintos escorregadios, alucinações, pesadelos.

- Calem-se todos. Desapareçam. Deixem-me entrar dentro do mar, deixem-me voar pelas escarpas, perder-me nas altas vagas, deixem-me, deixem-me.

Quantas vezes à beira das imensas fragas, acabar, voar, morrer a voar. Ou entrar no mar, mergulhar, procurar o fundo mais fundo do mar. E lá ficar. Tantas vezes essa vontade.

Tomara um colo quente, o abraço morno da mãe, os joelhos do pai, a tia: indo eu, indo eu, a caminho de viseu, encontrei o meu amor, ai jesus que lá vou eu, e a avó, dá cá um xi-coração Duarte, gosto tanto do teu xi. Tomara um colo, tomara o perdão. 

Desculpem, desculpem-me todos.

Dentro do carro em frente ao mar, Duarte sente-se vazio.

Depois dobra-se sobre o volante, rosto escondido.

Desaparecer. Sem deixar rasto.

Então, num impulso, sem pensar, liga a Leonor. ‘Preciso de ajuda’. Leonor ouve um choro convulso, quase parece um menino que chora.

Quando vai responder, Leonor repara que a chamada caíu.


*
L'Albatros 
Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers. 
À peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux. 
Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait! 
Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher. 
— Charles Baudelaire

Em português, por exemplo AQUI

***

A música é Nocturne de Claude Debussy.

***

Este episódio vem na sequência do que ontem escrevi, Leonor e Duarte - uma conversa muito difícil, episódio que já era seguimento de vários outros, sempre assinalados.

Abaixo poderão conhecer os meus últimos livros de poesia e, se quiserem esclarecer-me, estejam à vontade: porque é que algumas pessoas não gostam de poesia?

Abaixo desse post da poesia há um outro sobre 'Uma Agenda para Portugal', talvez a bomba que vai detonar o PSD passista.

No que se refere ao Ginjal e Lisboa hoje temos uma Metade bem especial e mais não digo pois acho que é coisa que merece ser vista/ouvida.

De facto, como temia, não consigo responder aos comentários, é tarde demais. Mas saibam que muito os agradeço [e aqui deixo uma pergunta ao Comentador-Poeta: para quando um poema daqueles especiais de que eu tanto gostava...? Tenho saudades...!

***

E, por hoje, por aqui me fico. Desejo-vos, meus Caros Leitores uma bela quinta feira.

5 comentários:

JOAQUIM CASTILHO disse...

Olá UJM!

Um belíssimo naco de prosa!!!!
Como sempre!
Um abraço

jrd disse...

A minha intuição é um desastre. Pensei em Blackjack e afinal era white powder...
Enfim, o que por aí mais há são executivos a snifar.

Um Jeito Manso disse...

Olá, Joaquim,

Muito obrigada. Gosto de escrever e se esse gosto transparece fico toda contente.

Um abraço!

Um Jeito Manso disse...

Olá jrd,

Pois, percebi que, por si, seria mesmo jogo e deixou-me balançada porque também podia ser jogo, sim e até poderei voltar ao tema do jogo pois assisti de muito perto a um caso de grande vício com o que isso implicou de muito grave. Mas, de facto, aqui comecei a inclinar-me para o snifanço que é uma realidade concreta.

Há, de facto, uma pressão que por vezes se soma a ilusão de invencibilidade, ou a ilusões e sonhos que vão ficando para trás, e uma exigência difícil de aguentar. é até difícil de imaginar, vendo de fora, mas é um facto. Aliás é sabido que a 'malta' do sector financeiro de Wall Street faziam o que faziam (e, fazem o que fazem) muitas vezes completamente 'high'.

E uma coisa que me incomoda é como hábitos destes conseguem ser ocultados da família e amigos durante anos. E isto também é um facto.

Factos tristes.

Por isso acabei de escrever a história e acabei-a de forma feliz porque já basta de tristezas.

Obrigada pela sua atenção, pela sua inspiração... e pela Agnes Obel.

Um abraço!

Olinda Melo disse...


'A Queda de um Anjo! personificada na 'Queda do belo albatroz', uma prosa belíssima e tocante. Tantos e tantos Duartes poderíamos encontrar neste mundo de pressões de toda a ordem.A Leonor irá a tempo de o ajudar?

Cá vou eu, nesta minha caminhada rumo ao desfecho deste conto que, penso, terá um final feliz, segundo o que li no comentário da UJM...


Bj

Olinda