segunda-feira, novembro 18, 2013

Esquivas raposas, jogos de palavras, atraentes abismos, mulheres silenciosas, cúmplices nocturnos, distantes pontos de luz







Atravesso o tempo sem me deter a pensar. A vida assoma de longe ou abeira-se, o tempo foge umas vezes, ou suspende-se outras, e eu aqui, serenamente vivendo, caminhando, buscando os meus sonhos, sem pressa, degustando cada passo, cada olhar, cada palavra. O que é meu a mim virá. Os meus olhos percorrem as pequenas flores que renascem, as folhas que caem, as palavras que despontam, e sinto que este é o meu tempo - e tudo acaricio com o olhar.

O tempo é suave quando estamos em paz.

Estou aqui, escrevendo, e uma vez mais percorro o caminho que as palavras desenham. 

Quem de longe me espreita? Quem de longe me espera?

Não sei. Recebo um a um os que me visitam, e a todos estendo as minhas mãos. Venham, sentem-se aqui comigo, deixem-se ficar.

Vamos inventar um jogo. Chamemos-lhe o jogo das palavras. Começa um de vós. Uma palavra. Qualquer. Pode ser uma palavra qualquer. E depois outro inventa uma frase onde entre essa palavra. E depois outro diz uma frase onde entre uma das palavras que o anterior disse. E assim sucessivamente. Simples.

Vá, vamos brincar.

Vou dar um exemplo: eu podia dizer 'raposa'.

E depois um de vocês dizia uma frase que podia ser assim: eu ia num bosque e vi a espreitar atrás de uma árvore uma raposa de fulva pelagem e olhar arisco como o de uma mulher perigosa.

E uma de vós prosseguia, voz quase ciciada: Eu sou essa mulher perigosa que, quando a noite cai, atrai os solitários que atravessam florestas silenciosas.

E outro podia continuar, ar de quem conhece os alçapões da vida: A solidão é um abismo onde caem aqueles que fogem das mulheres silenciosas.

E outro ainda, ar de pensador, podia dizer: Ah, os abismos atraentes onde todos os amantes interditos querem mergulhar.

E outro, com voz cava, de quem sabe do que fala, dizia: As noites são perigosos abismos onde se escondem os que temem o fogo das palavras.

E aí interromper-se-ia esse ciclo porque a última pessoa  teria repetido uma palavra de ligação.

Como castigo teria que lançar outra semente. Por exemplo, poderia dizer: 'poeta'. E outro pegaria na semente e fá-la-ia florir no meio de uma frase.

Poderíamos ficar, assim, a noite toda, a desafiar-nos mutuamente, brincando com palavras, simulando a vida mas sabendo que estaríamos apenas a brincar com palavras.

Por fim, já estaríamos meio adormecidos, falando como se sonhássemos, as palavras já suaves como carícias, e o sono a chegar, um tule quase invisível, e um diria poemas, tanto que eu gosto de adormecer a ouvir poemas, e outro diria outros poemas macios como uma seda na minha pele, e outro diria apenas palavras soltas, sílabas, sons, pétalas soltas.

Quando a manhã começasse a raiar, um de vós pegar-me-ia ao colo e levar-me-ia já a dormir até à minha cama. Depois, um a um, pé ante pé, sairiam devagarinho até vossas casas. Na noite seguinte cá nos reuniríamos de novo.

Cúmplices, doidos, sereníssimos amantes das palavras.


E, se um dia, por acaso, nos encontrássemos por aí - talvez num bosque cerrado ou numa livraria, numa labiríntica livraria, talvez junto a infinitas estantes, perto de faunos voadores, rodeados de seres inventados daqueles que vivem dentro de livros - talvez nem nos reconhecêssemos.

Sim, não nos reconheceríamos de certeza porque eu sou uma mulher inventada, cubro-me com mil véus, saibam que com mil véus mesmo, e quando pensam que me conhecem, logo eu me escondo, porque quero ser apenas um sopro, um gesto, um ramo de palavras como se fora um ramo de violetas, uma mulher imaginária, uma esquiva raposa que se esconde no fundo de atraentes abismos.

E vocês, meus ternos cúmplices, são para mim apenas distantes pontos de luz. Mas nunca me faltem, por favor. Todas as noites aqui estarei, esperando por vós.


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Na escuridão da noite vos beijo e vos espero...

sou a raposa que se esconde
que se esquiva nos abismos
cubro-me de mil véus
(insisto nos mil véus)
porque apenas um sopro, um gesto um ramo de palavras me revela

sou a sedução e a espera
(o poema por assumir)
a fêmea imaginária
onde

apenas a mulher raposa se revela



['POEMA NÃO IMAGINÁRIO DE UM JEITO MANSO' da autoria de Era uma Vez em comentário aqui abaixo]


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  • A música é Tchaikovsky, Romance para piano 
As fotografias são respectivamente:

  • Merida [Iris van Berne fotografada por Tom Allen para a Harper’s Bazaar U.K.]
  • Editorial de moda: vestido Vera Wang, capa de pele de Basia Zarzycka, coroa de VV Rouleaux.
  • Karen Elson fotografada por Tim Walker para a Vogue UK de Dezembro de 2013
  • Campanha Chanel 1997

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Se descerem um pouco mais, poderão encontrar já a seguir o meu desabafo depois de uma ida a um posto da GNR para participar o roubo de umas coisas in heaven. A situação de penúria a que as forças de segurança estão a chegar é qualquer coisa que a todos nós deveria inquietar.

*

Muito gostaria ainda de vos convidar a irem até ao meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa, onde por lá hoje tenho o Jorge Palma com o Pierre Aderne cantando uma canção de amor e onde recebo uma vez mais Herberto Helder, o Poeta. Pelas palavras dele vou eu, exprimindo alguma melancolia - mas uma melancolia ardente.

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E por hoje já chega, não é? 
Resta-me desejar-vos, meus Caros leitores, uma bela semana, a começar já por esta segunda feira. 

4 comentários:

ERA UMA VEZ disse...

POEMA NÃO IMAGINÁRIO DE UM JEITO MANSO

"Na escuridão da noite vos beijo e vos espero...

sou a raposa que se esconde
que se esquiva nos abismos
cubro-me de mil véus
(insisto nos mil véus)
porque apenas um sopro, um gesto um ramo de palavras me revela

sou a sedução e a espera
(o poema por assumir)
a fêmea imaginária
onde
apenas a mulher raposa se revela "

Um Jeito Manso disse...

Erinha,

Lindo o seu poema. Revejo-me muito a UJM (mulher inventada, não eu) nas palavras deste poema. Vou colocá-lo junto ao texto.

Mil vezes obrigada!

PS: Espero que um poema tão bonito seja prova de que há bem estar físico.

ERA UMA VEZ disse...

POEMA MEU???
Como, se todas as palavras são suas?Faça favor de conferir lá mais acima e verá.

Apenas as configurei.
Há muito que andava para lhe fazer esta partida...

Quanto ao resto, lá vou amanhã.

Como diz a canção dos "Deolinda" "já que tem de ser pois que seja agora"...

Um Jeito Manso disse...

Erinha,

Pois é... as palavras são flores soltas à espera que alguém as saiba conjugar num bouquet em que elas brilhem, não é?

Fiquei encantada. Os poetas têm mesmo magia.

Espero que, quando ler estas palavras, esteja a sentir-se já bem mais aliviada. Boa sorte!