Este calor derrete-me. Estou agora aqui na minha mesa encostada à janela que deita para o rio, com a visão do rio a toda a volta, e sinto uma leve aragem que sobe de lá. Mas não é ainda o suficiente para me refrescar.
Chego a esta altura do ano cansada e se calha estar um calor assim fico sem energia.
Por esta altura, há um ano, estava eu recém chegada do hospital, acabada de operar aos dois joelhos, com meniscos a menos, cartilagens raspadas, ossos picados e sei lá que mais. Anos de andar com crianças ao colo, anos de andar a carregar pedras de um lado para o outro, a fazer muros e murinhos, uma queda antiga em que tinha voado para aterrar de joelhos, e sei lá que mais - e os danos acumulados andavam nos últimos tempos a causar-me incómodos e, mais recentemente, inflamações que se estavam a tornar incapacitantes.
Agora acho que o ortopedista se precipitou. Afinal tive apenas duas ou três inflamações quase de seguida, no mês anterior à operação. Era uma queixa antiga, quase com 10 anos, mas podiam passar anos sem ter queixa nenhuma, depois se abusava demais, lá vinha uma inflamaçãozeca que eu já auto-tratava com anti-inflamatórios. Mas, com as inflamações daquele mês, o ortopedista achou que o melhor era abrir, para perceber o que se passava e para limpar, dizia ele. Dizia que era simples, uns furinhos, coisa sem história. Optimista e despassarada como sou, nem cuidei de ponderar melhor a coisa. Apenas me preocupei em saber se, quando nascesse o bebé cujo nascimento estava por dias, já eu poderia ir vê-lo ao hospital. Ele disse-me que talvez e eu achei que, então, estava bem.
E, com a ligeireza que me caracteriza, sem medir bem as consequências, na desportiva, lá fui. Claro que na véspera, quando todos me diziam que, sendo os dois joelhos ao mesmo tempo, não tinha onde me apoiar pelo que não estavam a ver como, por exemplo, poderia ir à casa de banho, comecei a vacilar. Só nessa altura me apercebi que a coisa poderia ser mais aborrecida do que estava a imaginar. Mas lá fui, a operação tinha sido marcada de urgência para evitar nova inflamação e para eu estar operacional para o nascimento do bebé.
Mas, de facto, tinha subvalorizado a coisa. Foi horrível. Saí de lá com os joelhos inchadíssimos, dores terríveis, quase sem poder pôr os pés no chão. Para subir uns degraus, tiveram o meu marido e o meu filho que fazer uma cadeirinha para me levantarem. Horrível. Nunca tinha imaginado. Se fosse só um joelho, poderia usar o outro, a outra perna, com a ajuda das canadianas. Mas, assim, não tinha hipótese.
Além disso ficava em casa sozinha. Tive alta num sábado pelo que nesse fim de semana tive companhia. Mas depois o meu marido foi trabalhar, nunca tínhamos imaginado que a incapacidade fosse tanta. Ele deixava-me o pequeno almoço, água, gelo, os medicamentos, depois vinha a casa à hora de almoço, deixava-me a ração, depois finalmente lá regressava ao fim da tarde. Eu dizia que ele vinha dar a comida ao gato.
Estava um calor horrível. Não me apetecia ler nem fazer nada. A televisão de tarde é uma coisa inenarrável. Com calor, então, ainda pior me parecia.
Um amigo meu ligou-me num desses dias e eu contei-lhe que estava reclinada num sofá, com as pernas levantadas, sobre almofadas, e que, de vez em quando, me levantava e dava uns passinhos. Ele riu-se, 'Ok, percebi, não precisas de usar fraldas'. Fartei-me de rir. De facto, os meus percursos limitavam-se quase a ir à casa de banho ou em ir, a custo, até à janela. Uma vitória. Nem nunca deixei de tomar banho sozinha, com mil cuidados para entrar e sair da banheira, sentada na beira, rodando. Só visto.
Como a minha casa tem uma escada pelo meio, durante umas duas semanas vivi no andar de cima pois, embora desse uns passinhos, não conseguia descer e subir as escadas.
Quando fiz anos, festança, e eu a querer não me armar em doente, participei e movimentei-me como pude. Nessa noite e no dia seguinte, quase não me podia mexer. Dores de cabeça, joelhos muito mais inchados, dores e mais dores.
Não foi a única asneira. Farta de me sentir menos válida, fiz muitas asneiras pelas quais sofri sempre as consequências.
Vim da operação com dores terríveis de cabeça e na primeira ida ao hospital para a revisão, parecia que a cabeça ia rebentar, fiquei sem forças, sem voz, vomitei imenso, tiveram que me colocar numa cadeira de rodas e levar pelos corredores a toda a velocidade para as urgências. Talvez fosse ainda da anestesia ou uma reacção vagal ou já nem me lembro bem de quê. Não tinha energia nem para falar, nem para explicar o que tinha. Via-me a ser transportada a correr pelo corredor do hospital e era como se nem fosse eu. Depois puseram-me numa maca, fizeram-me análises, e já nem sei bem o quê. Vim para casa e só me lembro que bebia água, muita água. Nos dias seguintes bebi litros de água e tive que estar quase sempre deitada, com pouca luz, quase sem me conseguir mexer, enjoada, estranha.
Uns dias depois, já o meu marido estava de férias nessa altura, e já eu conseguia dar os meus passinhos, embora ainda com as canadianas, comecei a sentir dores numa perna a que não liguei pois doíam-me era os joelhos. Depois senti um alto onde nem podia tocar, como se fosse uma nódoa negra. Pensei que seriam sequelas da operação, que talvez me tivessem atado as pernas, sabia lá eu.
Mas aquilo foi crescendo, já parecia uma ameixa negra, inchada, dolorosa. Ao falar com a minha filha, ela assustou-me pelo que nesse dia falámos para o cirurgião que estava longe. Ele disse que eu deveria ir com urgência ao hospital. Foi um susto. Pensou-se que podia ser uma tromboflebite. Tive que fazer novos exames e levar durante uma semana umas injecções na barriga, anticoagulantes. Felizmente não era o que se temeu: era um coágulo que se deve ter soltado ou formado aquando da operação. Mas novo contratempo, novo descanso forçado.
Aquando da operação, o médico disse que tinha encontrado os joelhos cheios de cristais, que tinha raspado enquando pôde, mas que se tirasse os cristais todos me deixava sem joelhos. Que achava que eram cristais de ácido úrico. No entanto, as análises nunca acusaram ácido úrico. Por isso, fizeram-me cinquenta mil análises para perceber se seriam cristais de outra coisa qualquer. Nada. Mas como persistia alguma inflamação mesmo depois da operação, não queriam desistir de procurar a causa do desgaste das articulações e das inflamações. Não têm conta os exames e as análises a tudo e mais alguma coisa que fiz nesses meses. Tudo negativo, felizmente.
No início de Setembro fui trabalhar. O médico estava reticente, achava que deveria manter-me em repouso. Mas eu já não me aguentava mais em casa, naquela enfadonha indolência. Claro que ao longo de todo o tempo, respondia aos mails, atendia telefonemas, despachava encomendas, visava facturas, enfim, tentava minimamente manter o serviço a rodar. Mas não era a mesma coisa.
Apesar de conduzir com algum esforço, lá fui. Por essa altura, convencida que já estava praticamente boa, dado que não tinha tido férias a não ser as forçadas e tinha estragado as do meu marido, fomos fazer um fim de semana alargado ao Algarve Andei na praia, na areia e fartei-me de nadar, de mergulhar. Soube-me maravilhosamente. Mas, quando cheguei, um dos joelhos estava muito inchado e fiquei quase sem andar. Tiveram que me tirar outra vez líquido, que é das coisas horríveis desta vida. Mas a análise do líquido revelou apenas inflamação, tinha sido uma reacção ao esforço pois os joelhos ainda estavam longe de estar cicatrizados por dentro. Novo retrocesso, mais descanso.
Depois de terem suspeitado de doenças auto-imunes e outras tretas, foi tudo descartado. O veredicto foi que se tratava de artrose talvez provocada por esforço continuado e por inflamações mal tratadas, e os cristais deviam ser resultantes justamente das inflamações anteriores.
Mas, por altura do Natal, achando eu que já estava restabelecida, ao carregar coisas pesadas, acho que era uma caixa com uma máquina de café e uns sacos de supermercado, nova inflamação, nova incapacidade. Veredicto: mais uma vez tinha abusado, a cicatrização ainda não estava concluída.
Tratamento: fisioterapia. E, agora que acabou, caminhadas. E um pó para misturar na água para beber ao almoço, para reforçar as articulações. Ainda sinto um bocado falta dos meniscos que foram quase todos à vida mas, de resto, já ando outra vez com a criançada ao colo, já não páro, faço caminhadas esforçadas na boa e, a maior parte do tempo, já nem me lembro bem da carga de trabalhos pela qual passei. Penso que agora, ao fim de um ano, já estou quase completamente recuperada. Mas ainda não completamente. Se estou muitos horas sentada, quando me levanto sinto os joelhos um bocado presos. Mas dou-lhes um jeito, uma leve flexão, eles estalam, vão ao sítio.
Acho que foi um disparate enorme ter sido operada aos dois joelhos no mesmo dia. A recuperação teria sido infinitamente mais fácil de tivesse sido operada a um de cada vez (isto admitindo que precisava mesmo de ser operada a um deles; ou aos dois, neste momento nem sei bem).
Durante esse período chatíssimo só não escrevi aqui na noite da operação, em que estive internada, pois estava mesmo KO, com drenos nos joelhos, sacos de sangue pendurados, uma cena tétrica, e estava meio pedrada. Mas quer na véspera, quer nos dias seguintes, escrevi sempre e estou em crer que não me mostrei muito abalada. Não estava. Não falei dos desconfortos, dos incómodos de toda a espécie, nem exactamente do que tinha, pois não gosto de 'curtir' doenças, não queria que me fizessem muitas recomendações, até porque, sobretudo, estava sem paciência para as cumprir. É que o pior de tudo - pior ainda que as dores, pior que ter os joelhos inchados e que depois não dobravam, e depois não conseguia esticar as pernas e o médico queria que eu forçasse, se necessário até às lágrimas - era a indolência, o estar em casa sem nada que fazer, o calor, a moleza. À distância de um ano, é do calor horrível e da falta de vontade de fazer o que quer que fosse, que mais me lembro.
Pensava que aquela minha disposição era um disparate, um desperdício de oportunidade, que devia aproveitar para ler, para escrever com vagar - mas nada. Uma indolência, um calor, uma coisa que me tolhia os movimentos, que me derretia a vontade. Só à noite é que me dava vontade de ler ou escrever.
Mas, enfim, isso já lá vai. O calor é que voltou de novo.
Parece que vai começar a refrescar e ainda bem. Gosto de verão mas estes calores excessivos cansam-me. Só penso em água, em ir para a beira do rio, para dentro do mar.
**
Hoje não consegui escrever nada no Ginjal. Vou escrever, isso sim, aqui, no Um Jeito Manso, sobre a missa do Papa Francisco em Lampedusa. Fiquei impressionada com isso.
**
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa terça feira. Saúde e alegria é o que vos desejo.
7 comentários:
Só uma pessoa FORTE conseguia fazer a sua vida normal sem deixar transparecer o desconforto em que estava no pós-operatório!!
Parabéns!
Lembro-me de a ter lido nessa altura, e apenas referir uma intervenção cirúrgica à qual não deu grande importância...
Mulher Forte!
Olá UJM,
Na altura apercebi-me que tinha feito uma intervenção cirúrgica, não sabia é que a mesma tinha sido tão incapacitante e dolorosa...os dois joelhos ao mesmo tempo, não deve ter sido nada fácil!!
Ai esse seu "jeitinho" de querer sempre ajudar os outros e não transmitir as suas fraquezas...
Espero que o pior já tenha passado por completo e que o único termo de comparação com este ano, seja mesmo este calor insuportável.
Bons passeios de fim de tarde...mais fresquinhos!!
Beijinhos.
MCP
Cara UJM
Que coragem! E que descrição. Deu-me a impressão de que estava a acompanhar o seu pós operatório.
Já passei por essa da doença auto imune. E continuo.
Quando altero esta serenidade que ainda me vai acompanhando, faço inflamações oculares. Nada a fazer que não seja conviver com o mal. E corticoides, quando a coisa se agrava...
Lembro-me de cada passo. Lembro-me de ter dito: Veja lá...se puder evitar a cirurgia...Sabia do que falava.
Lembro-me também de uma aventura para encontrar uma farmácia que ninguém sabia dizer onde ficava...
Porque o sofrimento físico como qualquer outro...une.
Hoje foi mais um dia de cão.As dores impedem planos, tiram o brilho aos projectos. Hoje às seis da manhã, cansada de uma noite sem fechar os olhos...sentei-me no terraço a ver nascer o sol. Há tantos anos...Lindo, foi o único momento lindo do dia.
As dores tomaram conta de mim.Um dia atrás do outro. Por isso lembro( como lembro) cada detalhe do seu Verão passado.
Perdoe o desabafo
Um beijo manso.
A todas,
Não sou forte, sou é um bocado maluca.
E tenho para mim que não vale a pena a gente pré-ocupar-se. Quando chegar a hora, logo se vê se vale a pena a gente ficar mesmo ralada. Muitas vezes, na hora, as coisas resolvem-se.
Além disso sou muito primária. Parece que me esqueço do que não me agrada. Posso estar cheia de ralações, coisas que me incomodam a sério, quer física, quer espiritualmente e, no entanto, ponho para trás das costas. Não é que as coisas me passem mas consigo intervalar, deixar de pensar.
E também não gosto que os outros se preocupem comigo. O meu pai não chegou a saber que eu fui operada. Não fui lá a casa nas duas semanas a seguir mas a minha mãe disse apenas que eu estava doente dos joelhos. E ele disse: 'Ela que não vá na conversa dos médicos e não seja operada porque operações aos joelhos é do pior para recuperar'. Depois, quando mal andava ainda, fui mas ele pensou que eu estava com uma crise inflamatória. Além disso, disfarcei, fui de calças, ele nem se apercebeu bem.
Quanto à doença auto-imune, felizmente não a tenho. Já pensavam em artrite reumatóide ou mesmo lúpus. Felizmente não era. A semana passada soube de um menino, neto de uma colega, a quem foi agora diagnosticado uma artrite tramada, auto-imune. São coisas chatas que nunca se curam. Mas conhecendo-se o que se tem, controla-se, trata-te, torna-se suportável.
Erinha: tem boa memória. De facto, quando foi aquilo do coágulo e fui ao hospital, tive que ir comprar as injecções e já passava da meia noite. E não encontrávamos a farmácia (em Torres Novas) nem por mais uma... E o enfermeiro, quando finalmente lá voltei com as injecções, ensinou-me a dar uma injecção a mim mesma mas eu, nos dias seguintes, não consegui. Então ensinei o meu marido e ele não queria, não queria, mas lá o convenci. É que as injecções eram de 24 em 24 horas e como a primeira foi levada à 1 da manhã, não dava jeito ir a um posto médico a meio da noite (se é que, por ali, os havia abertos de noite). Fiquei com a barriga cheia de nódoas negras. Ele ao princípio quase tomava balanço para espetar a seringa e eu, mal o via de seringa em punho, só não fugia porque estava com as pernas inchadas, com sacos de gelo à volta dos joelhos, e quase sem poder andar.
Mas lembro-me bem dos seus conselhos. De cada vez que sofria as sequelas da porcaria da operação bem pensava nos seus conselhos.
Agora pior são as suas dores. Custa-me saber que nem consegue dormir. Mas não consegue evitar essas dores que lhe tiram a alegria? Amanhã a ver se lhe escrevo.
Um abraço a todas!!!!!
Olá de novo Jeitinho.
Como me lembro da saga que a fechou em casa e, mesmo sem querer, a obrigou a estar muito mais quieta que o desejado.
Foram dias difíceis e o calor não ajudou. Pelo meu lado lembro-me de lhe sugerir uma almofada por baixo da curva das pernas para não dar ter um desconforto maior.
Os amigos, mesmo virtuais, estão presentes quando sentem que são precisos.
Grande beijinho
Cara UJM
Felizmente que, de auto imune, só tenho o controle pessoal em relação ao que me não agrada.
Mas fiz uma carga de exames para ver se descobriam o que me provocava os "olhos secos" e respectivas consequências.
Estava tudo normal.
A única anomalia que tenho é a de não explodir quando me aliviasse faze-lo.
Mas aprendi à minha custa que a paz exige mais esforço do que a guerra.
Assim, há 30 anos, tornei-me uma mulher serena...como o povo do qual faço parte!
:-))
Enviar um comentário