sexta-feira, março 08, 2013

"O Camões é o malandro maior da literatura portuguesa. (...) A barca é fálica e a água é a coisa feminina", palavras de Helder Macedo na entrevista de Ana Sousa Dias na Revista Ler de Março de 2013. E ainda Camões segundo Júlio Pomar e José Rodrigues e 'Raquel e Lia' segundo Theodor Rehbenitz. E 'Erros Meus' por Amália. E, como extra, porque hoje é Dia da Mulher, as mulheres segundo os mesmos Helder Macedo e Júlio Pomar.




Luís Vaz de Camões segundo José de Guimarães


(...) A maneira como ele descreve a vida de Lisboa, com uma crítica social acérrima, e não apenas quando fala da vida boémia dos prostíbulos que ele frequentava activamente, chamando aliás às prostitutas, porque estavam à janela, as 'ninfas de água doce'.

E muita da poesia lírica, mesmo nos sonetos mas sobretudo nas redondilhas, há poemas que, se descodificamos, são profundamente obscenos.

Há um exemplo extraordinário que parece a coisa mais inocente do mundo. Orgulho-me de ter sido a primeira pessoa que entendeu o significado da redondilha: o mote é 'Quem disser que a barca pende, dir-lhe-ei, mana, que mente. E as voltas - 'esta barca é de carreira, tem seus aparelhos novos, boa de leme e veleira'.

MOTE

Quem disser que a barca pende,
dir-lhe-ei, mana, que mente.

VOLTA

Se vos quereis embarcar
e para isso estais no cais,
entrai logo; que tardais?
Olhai que está preiamar!
E se outrem, por vos fretar,
vos disser que esta que pende,
dir-lhe-ei, mana, que mente.

Esta barca é de carreira,
tem seus aparelhos novos;
não há como ela outra em Povos,
boa de leme e veleira.
Mas, se por ser a primeira,
aos disser alguém que pende,
dir-lhe-ei, mana, que mente.


Quando descodificamos, a barca é fálica e a água é a coisa feminina. É um poema de alta propaganda da sua virilidade. Traduzindo isto em linguagem corrente, é obsceno em extremo e, assim, é lindo.

Num poema feito por ele, é uma obscenidade radiosa e nada negativa. Traduzido em linguagem de rua, aí os pudicos e as pudicas ofendiam-se muito. Assim, dizem 'cena misteriosa à beira de um rio'. 



São aqueles exegetas tradicionais do Camões, aqueles que podem não entender que possa ser irónico que depois de servir sete anos ele fica com uma e depois quer também a outra.



Raquel e Lia, Theodor Rehbenitz


O soneto tem uma ironia muito camoniana (... ele fica com as duas...). O Camões é o malandro maior da literatura portuguesa.


Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: — Mais servira, se não fora
Pera tão longo amor tão curta a vida!




Camões, Júlio Pomar


A escrita da poesia é, em linguagem, o que aspira a ser mais parecido com música, no sentido em que é capaz de dar simultaneidade de significações. Em ópera, especialmente, nós conseguimos ter, através da música e das vozes das personagens, sentimentos contraditórios a serem expressos pelas mesmas notas que estamos a ouvir. Só em música isso se consegue cabalmente.

Há poetas extraordinários, como o Camões que mencionámos há bocado, que consegue dizer coisas desse género. Quando o Camões escreve aquele achado incrível, por exemplo: 'Errei todo o discurso de meus anos', isto explode para todos os lados, porque é o decurso, é a fala, é o discurso poético, errar é deambular e cometer erro, quer dizer, com esta meia dúzia de palavras vai-se por aí, por aí. São raros os poetas que conseguem isso.

Se há um propósito em poesia, é precisamente a possibilidade de dar a nossa complexidade de uma forma tão condensada quanto possível.


Erros meus, má Fortuna, Amor ardente 
Em minha perdição se conjuraram; 
Os erros e a Fortuna sobejaram, 
Que para mim bastava Amor somente. 

Tudo passei; mas tenho tão presente 
A grande dor das cousas que passaram, 
Que já as frequências suas me ensinaram 
A desejos deixar de ser contente. 

Errei todo o discurso de meus anos; 
Dei causa a que a Fortuna castigasse 
As minhas mal fundadas esperanças. 

De Amor não vi senão breves enganos. 
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse 
Este meu duro Génio de vinganças!



Camões, Júlio Pomar

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Os textos em itálico são excertos, por ordem diferente, da entrevista de Helder Macedo, o gentleman marginal, a Ana Sousa Dias na Revista Ler, Nº 122, de Março de 2013.

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Mulher de Júlio Pomar


Não tem que ver com Camões mas com o facto de ser Dia da Mulher (e eu não sou dada a 'dias de' e, se fosse, preferia o 'Dia do Homem' para as mulheres poderem dizer mal deles à vontade. Estou a brincar. Se houvesse seria para dizer bem, são uns queridos, uns fofos. Adiante que, com o adiantado da hora, a censura interna começa a escassear): transcrevo um pequeno excerto da mesma entrevista. Diz Helder Macedo:

Tenho um fascínio pelo feminino. O que aliás não entendo que não possa haver. Todos nós somos filhos de mulher. As mulheres ensinaram-me tudo. Essa intimidade com o feminino é a base da minha personalidade de homem, de macho.


Ora bem. Assim mesmo é que é.



Salomé por Júlio Pomar

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Se me permitem, muito gostaria de vos ter hoje no meu Ginjal em dia de bolinha vermelha no canto do écran. Vasco Graça Moura levou-me pela mão ao atelier de José Rodrigues e eu deitei-me numa cama feita de palavras. A música é uma maravilhosa interpretação de Schumann a cargo de Martha Argerich e Mischa Maisky.

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E nada mais. Apenas desejar-vos uma bela sexta feira com poesia, música, beleza e muita malandrice.


8 comentários:

Bartolomeu disse...

Olha minha Amiga, sou da mesma opinião (quero dizer; partilho metade da tua opinião), até acho que definir um dia só e dedica-lo às mulheres, acaba por ser depreciativo de um valor tão grande que o Divino ofereceu ao Homem. Está bem, concordo, o homem precisou abdicar para isso, de uma costela mas, eu aposto que muitos de nós (homens) daríamos metade do esqueleto se preciso fosse.
Eu, desejo às mulheres que todos, não este somente, lhes sejam dias maravilhosos. Que todos os dias das suas vidas, sejam dias de alegria, de realizações muitas e de paixão imensa por tudo o que as rodeia, inclusivé os homens.

E agora, para finalizar o início, vou tentar "dar uma" de Camões:

Almas minhas gentis que chegais,
Vindas de um mundo encantado.
Sede bem-vindas à dida destes mortais.
Que toda a vida por vós têm esperado.

E se de alguma coisa servir
O osso que temos para vos dar.
Não esqueçais o amor sempre a sobir,
Que em nós cresce só por respirar o vosso ar.

Vinde partilhar o mundo, belas flores.
Ninfas, que das frescas fontes brotais.
Vinde, dar-nos a beber vossos amores.
E tornar-nos a todos, homens, imortais.

;)))

jrd disse...

Camoniana é um substantivo feminino e poucos como Camões cantaram a mulher.
Abraço

Mar Arável disse...


Todos os dias
há uma mulher em flor

Unidos contra muros e amos

Olinda Melo disse...


Olá, UJM

Muito obrigada pela sua visita e pelas palavras gentis. Desejo que o seu dia esteja a ser muito feliz, junto aos seus. O meu foi um bocado cansativo mas bom.
Gostei destas interpretações camonianas. Diferentes, pelo menos, das tradicionais. Curiosa esta: 'A barca é fálica e a água é a coisa feminina'.

Beijinhos

Olinda

Um Jeito Manso disse...

Olá Bartolomeu!

Que inspiração e que empatia com o espírito de Camões de que aqui se falava. Gostei, sim senhor. Mesmo uma 'de Camões'!

Se há coisa que aprecio num homem é ver como ele gosta de mulheres e, em especial, como ele sabe gostar de mulheres. É que a forma como se gosta faz toda a diferença. Gostar sem jeito, sem graça, é uma sensaboria. Mas gostar sabendo expressá-lo é uma arte. Por isso, os meus parabéns!

E que venham mais poemas destes ou de outros!

Muito obrigada.

Um bom sábado, Bartolomeu!

Um Jeito Manso disse...

Olá jrd,

É bem verdade. Lirismo, erotização, mestria na escolha das palavras, saber contar uma história e, claro, o prazer de cantar a mulher: Camões é talvez o maior na forma como tudo se conjuga.

Um abraço e um bom sábado, jrd!

Um Jeito Manso disse...

Olá Eufrázio Filipe,

Eu gosto de ser mulher e acho que, de facto, há muito de flor numa mulher. E há algumas mulheres que de tão frágeis flores não têm como não ter amos ou não viverem cercadas por muros.

Mas, em minha opinião, grande parte da conscencialização que ainda há a fazer é perceber que as mulheres não são tão frágeis assim. Se forem vistas de igual para igual, grande parte dos problemas deixam de existir. E isto aplica-se em especial às mulheres pois, muitas, ainda se vêem um degrau abaixo dos homens.

Um bom sábado apesar de, com o tempo assim, o mar estar mais encapelado do que arável...

Um Jeito Manso disse...

Olá Olinda,

Gosto tanto de poesia e coloco tanta poesia nos meus blogues e, depois, nem sei porquê, acabo por me esquecer de Camões. Talvez isso aconteça pois no liceu aquilo era um quebra-cabeças, aquelas orações que se espalhavam de verso em verso. Na altura, toda a beleza da poesia de Camões foi esquartejada sem dó nem piedade e, sem querer, ainda tendo a esquecer-me da sua beleza imensa. De vez em quando agora pego em Camões, deleito-me, mas, depois, quando vou escolher acabo a preferir os recentes. Tenho que ver se reparo esta falta.

Obrigada pelas suas palavras.

Um beijinho e bom fim de semana, Olinda!