domingo, janeiro 20, 2013

No Ginjal, as árvores que tombaram à fúria de um leão embravecido em noite de vendaval. E uma solitária mulher pássaro que enfrenta um Tejo revoltado. E a pele.





Toda a noite de sexta para sábado o vento rugiu, inclemente, senti-lhe as patas batendo com violência nas minhas janelas. De manhã a janela do meu quarto estava estragada, deve ter sido ele a tentar entrar, o vento desembestado. Eu, na minha cama quente, aconchegada e indefesa, e o bruto ali, respiração ofegante, impaciente, impetuoso.

De manhã, quando me levantei, fui espreitar a rua. Chovia muito, pouca gente na rua, e o vento ainda a rondar.

Mas só ao fim da tarde consegui ir até à beira do rio. Que não, que não, que não estava tempo para estar ali, tantas pedras que podiam rolar lá de cima, tanto frio, tanto vento. Mas lá fomos.

Podia lá eu deixar de ali estar num fim de dia assim? É que é em dias assim que eu tenho este lugar mais para mim e eu tenho esta forma de gostar, tenho o prazer da posse mesmo sabendo que não se consegue possuir o que não se consegue domar.

Percorri, pois, este lugar e éramos só nós dois, mais ninguém. Ninguém. Frio, frio. Passei a écharpe que levava à volta do pescoço pela cabeça. 

As casas abandonadas, destelhadas, desoladas. No entanto, numa delas parecia ver-se uma luz. Talvez fosse a luz do restaurante. Ou talvez no meio do abandono, uma luz sobreviva ainda, acesa, esperando que alguém volte a viver entre aquelas paredes.




E o vento tão gelado, o rio de longe quase parece cinzento, baço, batido, agitado, envolto numa neblina gelada. A mesma impaciência do vento, agora nas águas.

Lá em baixo, a desolação. Algumas árvores arrancadas, quebradas, por terra. O vento quando avança assim, se apanha as presas indefesas, faz-lhes isto, derruba-as, deixa-as sangrando por terra. Gozou, o malvado, e depois deixou-as, esventradas. Uma chacina.




Poderiam ser gazelas mortas, vítimas de uma noite de loucura, leões à solta, feras sem compaixão. As pessoas fogem de lugares assim, não gostam de testemunhar a fúria animalesca da natureza, temem-na.

Mas eu gosto, se calhar não sou uma pessoa muito normal.




Algumas das árvores estavam arrancadas de forma violenta, via-se que tinham dado luta; mas outras, como esta aqui acima, tombou, rendeu-se. Imagino-a a esvair-se, assustada, a desmaiar, donzela serena na rendição. Lisboa, do outro lado, é também uma donzela sereníssima, tombada rente ao rio, rendida também, bela no seu sossego.

Percorro os caminhos, sinto o cheiro frio da maresia, vejo se as árvores ainda de pé estão bem seguras.




A terra ensopada, os caminhos espelhados, tanta a humidade, um frio cortante, e o vento ainda soprando, já cansado dos destemperos da noite e da manhã mas ainda ali presente. O rugido, ah se ouvissem o rugido, ainda ele ali escondido atrás das árvores ou no fundo do mar, que o rugido parecia vir também do rio, um rugido, um rugido cavo, rouco. E que bem que eu me sinto em lugares assim, sem ninguém, a natureza à solta e eu, parte dela, pronta a sair voando.

Mas sempre, vamo-nos embora, não está tempo para estarmos aqui, não se consegue estar aqui, e, porque será que não há ninguém, já pensaste nisso?

Mas não estávamos sozinhos. No meio da erva molhada alguém me olhava, surpreso. Eu andava, falava com ele e ele de olhos fixos em mim.




Há muito tempo que não o via, o pequeno pássaro preto de bico amarelo. Ali estava ele, indiferente ao vento, ao frio, ao rugido do leão furioso. Tranquilo mas surpreso. Eu e ele, pequenos, olhando-nos nos olhos.

Depois viu que eu vinha em paz, reconheceu-me, somos ambos bichos destas paragens, e, então, levantou voo, partiu para a beira do rio. A vida continua, pensou ele e pensei eu. Novas árvores serão plantadas, a vida renasce porque nenhuma perda é definitiva. A vida continua.

E eu continuei, agora a caminho de me ir embora. 

Mas ia pensando: sentirão dor as árvores quando são agredidas assim? Uma perna decepada, o sangue ainda escorrendo, os ossos à vista, os nervos, as raízes cortadas, inúteis.




Mas então reparei. Ao fundo, lá ao fundo, na ponta do cais, confundindo-se com a árvore, um pequeno vulto. Mais ninguém, nem gatos, nem gaivotas, apenas nós, o pequeno pássaro preto de bico amarelo e agora aquele pequeno vulto.

Aproximei-me.




Um muito improvável vulto feminino, elegante, calças justas, botas altas, de tacão alto, uma capa amarela esvoaçando. Uma mulher pássaro, talvez. Uma mulher pescadora desafiando a impaciência do rio, desafiando o vento, o rugido do leão.

Olho-a. 

Lisboa começa a acender as suas luzes, o frio está irrespirável, a noite começa a aproximar-se. Durante todo o tempo que a olhei não puxou a linha, não lançou de novo, nada. Esperaria um peixe, esperaria que, do fundo do rio, saísse o monstro que rugia impiedoso?




Mesmo na ponta do cais, o rio impaciente, um vento que parecia quase levá-la, e ela ali, sozinha, capuz na cabeça, parecia ter um casaco de pelo com capuz por baixo da capa amarela, elegante e solitária.

Em dias assim, em que a pele pede excessos, em que os sentidos aceitam desmandos, loucuras, são as mulheres e os pequenos pássaros que saem à rua, que voam sobre as águas que correm, desafiando a sorte, os medos, os rugidos assustadores e invisíveis, que enfrentam a improbabilidade dos tempos.

*

Na superfície baça dos dias
à superfície esquiva do tempo
coalha-se a luz estranha, doce e agreste
de todos os poemas.
Ao vento, à chuva,

onde as memórias se apagam,
onde a areia cobre de tédio os olhares
ouve-se uma voz longínqua
do fundo raso do silêncio.
Aí encontramos a fonte,
o espaço primeiro
dos mármores interiores do vento,
capaz de escolher as palavras exactas
o caminho
que talvez,
quem sabe,
sempre tivéssemos procurado.


['Um poema para o misterioso vulto feminino de capa amarela' de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]




*

A música é 'A pele' e é interpretada por Márcia e JP Simões. 

*

E agora que a invernia acalmou, desejo-vos que tenham, meus Caros Leitores, um belo domingo.

12 comentários:

Anónimo disse...

Destemida Carangueja,

Obrigada pela coragem de sair em passeio e, sobretudo, por partilhá-lo connosco!

Ali mesmo à beirinha do precipício, sentindo a força do vento, o cheiro do rio e a beleza de Lisboa...

- Não fora a elegância da silhueta, diria que só pode ser a Antonieta!

Mas não, só lá estive em pensamento...

À tristeza das árvores perdidas sobrepõe-se a beleza do Tejo 'com carneirinhos', do passareto preto, da jovem solitária.

Aqui na Beira esteve assustador, ficámos 5 horas sem luz, sem net, sem rede móvel.
Hoje o dia amanheceu calmo, com o sol a querer espreitar, mas muiiiito frio!

Claro que lhe roubei a última foto, aquela em que 'estou' a olhar 'a minha aldeia'.

Beijinho e bom domingo!

Antonieta Peixes

JOAQUIM CASTILHO (QUIM) disse...

Olá UJM!

Um poema para o misterioso vulto feminino de capa amarela:

Na superfície baça dos dias
à superfície esquiva do tempo
coalha-se a luz estranha, doce e agreste
de todos os poemas.
Ao vento, à chuva,

onde as memórias se apagam,
onde a areia cobre de tédio os olhares
ouve-se uma voz longínqua
do fundo raso do silêncio.
Aí encontramos a fonte,
o espaço primeiro
dos mármores interiores do vento,
capaz de escolher as palavras exactas
o caminho
que talvez,
quem sabe,
sempre tivéssemos procurado.


Bom Domingo!

Tété disse...

Para se estar só não é necessário estar sozinho. No entanto, aquela imagem solitaria, num sítio daqueles num dia daqueles, deixa-me pensar que não é possível esbanjar felicidade e ter-se aquela postura. Uma atitude de liberdade dentro de alguma teia difícil de desembaraçar.
Mas deixe que lhe diga que é preciso também muita coragem para passear à beira rio nestes dis. É lindo mas um pouco aventureiro. E deixe-me dar os parabéns ao seu marido, porque se é coisa que eu até era capaz de fazer, fa-lo-ia sozinha porque até estou a ouvir o meu: estás maluquinha? sair com um dia destes?
Mas a verdade é só uma: cada um tem o que merece.
Que tenha(m) essa garra por muitos anos. Viver à séria é meio caminho andado para viver muito e bem.
Muitos beijinhos e boa semana.

irene alves disse...

Descreveu muito bem no seu post
a solidão e o reencontro com a
pescadora"que se atreveu" você
é o pássaro. Há sempre alguém
que se atreve, mesmo nas maiores
tempestades...Penso que as árvores
também sofrem.
Um excelente post sobre um "mau
tempo" que já provocou muitos
estragos e fez muitos portugueses
ficarem mais pobres. Mas o Inverno
tem destes dias.
Um beijinho.
Irene Alves

Anónimo disse...

Gostei muito de ler o seu texto e ver as fotos.A poesia da tempestade veio consigo.
Intrigante aquela personagem de capa amarela que parecia dialogar com a água turbulenta.Em diálogo com a tempestade porque,também ela,mulher,é habitada por uma tempestade?Ou,ao contrário,qual deusa,tentando pacificar a violência dos elementos da natureza.Ou...ou...
Interessante o pássaro que olha,desafiador e triunfante a objectiva.Ele é um vencedor.A mulher é o/um mistério.
Boa semana.
Maria Ana

jrd disse...

Gostei desta descrição do temporal e dos seus envolvimentos, mais ou menos, poéticos.
Aqui onde estou apenas o tédio me ocupou as horas.

Abraço

Um Jeito Manso disse...

Olá Antonieta,

Vi na televisão que a falta de electricidade foi quase geral. Cabos caídos forem 'mato'. Por aqui não falou a electricidade, nem houve nada desse género.

Mas hoje, estávamos no cinema, ligou-nos um vizinho a dizer que tinham estado à nossa espera mas que, como não tínhamos aparecido por aquelas mandas, tinha que nos avisar que, lá, in heaven, tinha caído um cipreste e que estava tombado na estrada e que até tinha partido um muro, na queda.

Por isso, estou aqui numa grande preocupação. Não sei se tombou e dá para o pôr direito ou se se partiu, se se perdeu. Estou de coração apertado. O vizinho vai lá amanhã ver o que se pode fazer mas o meu marido já lhe disse que, se não houvesse nada a fazer para o cortar. Que tristeza. Um cipreste tão alto, tão bonito, já com tantos anos. Tomara que não se tenha perdido.

Quanto à jovem solitária, não imagina o surpreendente que era. Sozinha, ali mesmo à beira do rio, com aquele vento e frio. E ela muito elegante de saltos altos. Incrível. Será que não era mesmo a Antonieta...?

Um beijinho, Antonieta peixe-voador de Plumagem Amarela!

Um Jeito Manso disse...

Olá Joaquim,

Hoje voltei lá. Mas fui de manhã. Ia na esperança de ainda a ver lá, ao vento, capa voando, elegante, mesmo à beira de um rio encapelado. Mas não, tinha desaparecido. Se eu não a tivesse fotografado pensaria que tinha sonhado. Não podia ser uma pescadora vestida daquela maneira, ali num dia de ventania, em que mais nenhum pescador se tinha afoitado.

Gostei do seu poema e gostava muito que ela o visse também. Mas não sei se ela existe mesmo...

Já lá coloquei o seu poema, junto a ela.

Um abraço e muito obrigada!

Um Jeito Manso disse...

Olá Teresa-Teté,

... e acha que ele não vai o tempo todo a reclamar...? E a recear apanhar com alguma coisa na cabeça? Havia de ver o chão... Caíram imensos bocados das paredes arruinadas, restos de telhado, pedras, troncos... já para não falar nas árvores.

Mas como não quer que eu vá sozinha, vem comigo, ou melhor, vai para puxar por mim, pois só queria que eu me viesse embora.

Mas somos inseparáveis, apesar de refilarmos um com o outro especialmente quando eu quero fazer estas minhas expedições e ele acha que com um tempo assim só se pode estar em casa. Por isso, arranjamos um meio termo. Vou - mas metade do tempo que queria.

Mas não é o casamento um permanente jogo de equilíbrio? Eu acho que sim, mas um jogo que se deve levar com boa disposição, na boa, sem dramas, sentindo que se está num permanente exercício de construção.

E a felicidade é isso, um somatório de pequenos e bons momentos. Eu, pelo menos, é o que acho.

Um beijinho, Teresa-Teté (e gostei muito de a rever por estas bandas).

Um Jeito Manso disse...

Olá Irene,

Sabe que hoje de manhã voltei lá? Não vi a mulher de saltos altos e capa amarela mas vi o pássaro de bico amarelo. Andei a brincar com ele, ele ia fugindo e eu atrás dele, e ele voava mais um pouco e olhava para mim. Tirei-lhe imensas fotografias. O meu marido já estava passado, quer andar e eu não saio do mesmo sítio, hoje era de roda do pássaro, não entende que graça vejo eu num pequeno pássaro que me leve a tirar-lhe tantas fotografias. Mas é que há uma leveza e uma graça naquele pequeno pássaro. As árvores ali tombadas, o rio tão bravo, e o passarinho todo brincalhão, como se nada se tivesse passado.

Mas tem razão ao lembrar as pessoas que ficaram mais pobres. Não vi muita televisão durante o fim de semana mas, do que vi, deu para perceber os estragos que empobreceram pessoas que, tantas elas, já não viviam no melhor dos mundos.

A natureza tem destes excessos que têm tanto de belos como de assustadores.

Um beijinho!

Um Jeito Manso disse...

Maria Ana,

Que belas palavras as suas. Tem razão na análise que faz, nas análises ou nas hipóteses que levanta. A mulher, pelo seu porte, fazia lembrar aquelas amazonas, fortes, destemidas. Que personagem misteriosa. Eu a pensar que não havia mais ninguém por ali, estava tudo deserto, um vento frio que não imagina, as árvores derrubadas, a terra ensopada e, imagine a surpresa, quando reparamos naquele vulto ali mesmo, mesmo à beira do cais, dava ideia que um golpe de vento mais forte a atiraria à água...

E o pássaro, a olhar-me com muita atenção, eu a andar na direcção dele e ele a olhar-me fixamente...! Ficou encantada com estas coisas.

Se calhar não sou muito boa da cabeça...

Gostei muito de ler o que escreveu. Muito obrigada.

Desejo-lhe também uma boa semana, Maria Ana!

Um Jeito Manso disse...

Olá jrd,

Contra o tédio nada como um belo temporal... Desde que não faça estragos, claro.

Aqui em casa estragou a persiana do meu quarto e, in heaven, como escrevi numa resposta lá mais acima, derrubou-me um cipreste. Mas, enfim, danos menores quando comparados com outros mais gravosos.

Gosto muito de percorrer a beira do rio e, para isso, talvez prefira os dias de inclemência aos de doçura.

Um abraço, jrd!