Para ouvir enquanto se desliza devagarinho pelo texto abaixo.
Depois, por favor, voltar cá para ver.
(Pode, é claro, inverter-se a ordem dos factores)
Depois, por favor, voltar cá para ver.
(Pode, é claro, inverter-se a ordem dos factores)
Grupo Corpo
Coreografia Rodrigo Pederneiras, Música Ernesto Lecuona
. . |
Respira. Um corpo horizontal,
tangível, respira.
Um corpo nu, divino,
respira, ondula, infatigável.
Amorosamente toco o que resta dos deuses.
As mãos seguem a inclinação
do peito e tremem,
pesadas de desejo.
Um rio interior aguarda.
Aguarda um relâmpago,
um raio de sol,
outro corpo.
Se encosto o ouvido à sua nudez,
uma música sobe,
ergue-se do sangue,
prolonga outra música.
Um novo corpo nasce,
nasce dessa música que não cessa,
desse bosque rumoroso de luz,
debaixo do meu corpo desvelado.
. . |
Há um tempo para estar só
há um tempo para estar nu
há um tempo que falta para ser
o bastante uma coisa e outra
há uma ponte em direcção ao tu
que é necessário atravessar e que
é necessário, coragem, minar
e há um ponto sem chão
nem ponte em que só é preciso
abrir os braços e voar
. . |
Teu rosto de desastres e tormentas
e risos lágrimas e sol e vento
teu rosto de marés e vagas lentas
em que o prazer é quase sofrimento
e o sofrimento é como rosa roxa
florindo devagar em tua boca
se a minha mão te chicoteia a coxa
e no teu corpo há uma égua louca.
Começam então as tuas doces queixas
e vais para um país onde desmaias
quando o sol no teu rosto acende flechas.
E eu temo que te percas e não saias
do abismo em que te abres e te fechas
de cada vez que te levanto as saias.
. . |
Acicato o meu desejo
traço em volta
a vã lisura
Dedos leves na cintura
despido o fato e o fio
tecido pela fissura
Nos lábios resta o sabor
a sal de gosto aberto
na pele cujo suor tem o odor do incerto
Quebro a cela
do meu corpo
ao golpe da tua anca
Derramo o prazer
na boca
onde a sede se desmancha
. . |
Avançar desfazendo
os nós dos nomes
aceitando a oferta nua
na sua abolição
Passa uma ave de sombra
entre as virilhas do sol
e sob a cálida abóbada
a duração redonda
nos seus anéis de pólen
flui sem ecos
A amêndoa do estio
consagra
a lentidão clara
do sossegado desejo
de não ser nada
: : :
Na serena encantação as paredes resplandecem
e na realeza do instante o espaço doura-se
**
[As fotografias são da autoria de James Hickey que, para o caso de estarem interessados, tem estúdio nos Estados Unidos.
Os poemas são respectivamente de Eugénio de Andrade (título: 'Apenas um Corpo'), Rui Caeiro (sem título), Manuel Alegre (sem título), Maria Teresa Horta (título: 'Cela') e António Ramos Rosa (títulos: 'Passa uma Ave de Sombra' e parte final de 'Decantação da Casa')]
**
A partir de mais uma noite quente, vos envio, Caros Leitores, os meus votos de um belo dia.
(E agora toca a refrescar...!)
11 comentários:
Boa noite, UJM
Isto é de ler e chorar por mais...
Diria que os poemas são do mesmo autor, pela cadência, pelas palavras, pelo sabor que imprime em nós...
Mas não, ali estão eles, um grupo incomparável - nesta noite quente em que os corpos falam - trazido pela sua sensibilidade, numa selecção perfeita.
As fotos com que ilustra o post são lindíssimas.
Mas falta-me um elemento deste conjunto feliz: o video. Voltarei por ele...
Beijinhos
Olinda
Amiga:
Depois de mais uma noite mal dormida, a música e as poesias, deram-me força para mais um dia.
Agora, vou até à varanda. Gosto da frescura da manhã, de ver o sol aparecer por trás das casas, da luz difusa que vai clareando o dia. Ouço uma porta a bater, uns pés que correm para o autocarro, uma luz que se acende na janela, o choro de um bebé, um cão ladrando. E, estupidamente, sinto que é o momento mais belo do dia.
Abraço
Mary
Após um post refrescante, brinda-nos com um novo, escaldante, quer no vídeo, como no texto poético e ainda (sobretudo) nas imagens.
;)
E agora? Quem não pode dar um salto à praia e quem como eu ainda se encontra a trabalhar e sem chuveiro para se poder refrescar, como vai apagar estas chamas abrasadoras que o post acendeu???
;))
Penso que nem a santa inquisição se lembrou algum dia de infligir aos condenados, tão duras torturas...
;)))
Olá, UJM
Bom dia
Já sabia que o video prometia, pois não é a primeira vez que aqui nos traz o Grupo Corpo, não é?
E que vejo eu? Dois corpos, máquina perfeita, precisão, sensualidade, arte...
Mas voltarei para ler uns textos lindos que aqui vejo e, entre eles, um que fala sobre a melhor forma de limpar tapetes de Arraiolos, entre outras coisas. :)
Desejo-lhe a continuação de uma boa convalescença. É certo que essa permanência em casa cansa, mas agora é ter paciência até que tudo volte à normalidade, sim?
Bjs
Olinda
"O nu contra o nu"! Que poesia esta, que se lê em voz alta e se relê, silenciosamente, na suave quietude que se lhe segue.
Admirável.
Abraço
Um post bastante sensual (escolhi a palavra certa?)e bonito.
Gostei muito da música - e do bailado.
Um beijinho
Olá Olinda,
Ontem à noite, com um calor tão grande, só me ocorreu escolher fotografias assim, com mulheres 'à fresca' que não há outra maneira de se suportar tão elevadas temperaturas. E, para acompanhar, tive que escolher poesia a condizer com as imagens. E depois ocorreu-me escolher uma música também 'caliente' com uma coreografia na mesma onda e, claro, lembrei-me logo do Grupo Corpo que dançam magistralmente e têm coreografias lindíssimas, coreografias que homenageiam o corpo.
Gosto imenso quando me ocorre uma ideia que me leva a pegar em livros e escolher fragmentos que vão corpo àquilo em que estou a pensar.
Tal como a Olinda diz, também me parecia que quase podia ter sido o mesmo poeta a escrever tudo aquilo e, no entanto, que nomes diferentes eles são. É a magia da poesia, Olinda, é o dom dos grandes poetas.
Quanto à minha recuperação, penso que estou na recta final. Impaciente, impaciente... e este calor ainda 'torra' mais a pouca paciência que tenho. Mas, enfim, penso que está quase.
Obrigada pela visita, pelas palavras, por tudo. Um beijinho, Olinda... e muitos livros por sorrisos!
Olá Mary,
Cá está a nossa amiga Mary com as suas belas palavras! Que bom! Que contente fiquei!
Quanto à maravilha das manhãzinhas cedo... tenho ouvido dizer que sim e quando o pratico também gosto. Mas eu sou toda virada para a noite, bicho noctívago mesmo.
Quando estou a trabalhar e me levanto cedo, despacho-me a correr, meto-me no carro e lá vou, sem me dar tempo a apreciar as maravilhas do despertar cedo. Quando estou de férias ou, como estou agora, em recuperação (na recta final!), levanto-me mais tarde.
É que o que eu gosto mesmo é do silêncio da noite, são os sons da noite, as luzes da noite. E o que eu gosto de escrever noite dentro... Aliás de dia não me dá para escrever, já viu o disparate?
Mas o que lhe desejo é que as noites sejam bem dormidas e que, mesmo quando o não são, que os despertares sejam sempre assim, abertos para a vida, cheios de ânimo para falar connosco.
Um beijinho, Mary, e dias muito felizes!
Ora, ora Bartolomeu...,
A Santa Inquisição pretendia punir e levar à expiação de obscuras culpas.
Eu sou o oposto: ignoro o que seja a culpa, sou contra punições. Sou toda a favor da vida, da alegria de viver, não acho que se devam virar as costas aos prazeres inocentes da vida e do corpo.
E que prazer o de uma bela poesia... E que prazer o de ver dois corpos enlaçando-se numa bela coreografia, e que prazer o de ouvir uma música que alegra todas as nossas células e nos dá vontade de voar. E que prazer o da fotografia quando é feita com arte, com beleza, sem vulgaridade. E que prazer quando várias artes se conjugam...
Santa Inquisição? Pecado? Culpa? Ná... isso são conceitos que, por estas bandas, não existem.
Resumindo: fartei-me de rir com o seu comentário. Deu-me logo vontade de, na brincadeira, colocar um vídeo com um duche gelado, com umas mangueiradas, um mergulho numa praia gelada, uma coisa assim... Mas contive-me.
Obrigada pelas suas palavras tão bem dispostas (e tenha uma noite caliente ou um dia fresco, conforme possa e queira)!
Olá jrd,
Sabe que eu, ontem, quando escolhi os poetas e, depois, os poemas, escrevi-os e depois, enquanto ouvia a música, li-os eu em voz alta (mas não muito alta, em voz baixa mesmo) e parecia-me, tal como a Olinda acima referiu, que havia uma toada única, uma leveza sensual, uma só voz. Gostei. Depois li, como diz, sem voz, e apetecia-me ter aqui os poetas ou algum diseur ou diseuse que enchesse o espaço com a luz das palavras ditas.
A poesia descontextualiza-se e recontextualiza-se, ganhando novos significados, conforme a magia dos momentos, não é?
Obrigada pelas suas palavras, gostei de as ler.
Um abraço, jrd.
Isabel, olá,
Fez-me sorrir com a sua pergunta. Acho que sim, que é um post sensual. A sensualidade é algo que me é muito próximo e refiro-me até à sensualidade em sentido mais alargado.
Os cheiros, as cores, os sabores, as texturas, os sons, ou seja, tudo o que tenha a ver com sentidos, me seduz. Há tempos, uma amiga minha que é artista, ao ver-se passar as mãos pelas árvores, pelas folhas, pegar nas ramadas dos pinheiros para os cheirar, disse-me isso mesmo 'tu és mesmo uma pessoa toda virada para os sentidos'. E sou.
Talvez por isso, goste tanto de fazer postas assim, em que várias componentes se misturam, imagens, palavras, músicas, danças.
Ainda bem que gostou, Isabel, fico muito contente.
Um beijinho, Isabel e um belo dia de amanhã!
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