sábado, julho 14, 2012

A sensualidade da geometria


Música, por favor

Katherine Whalen - Yesterdays

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Já deve ter dado para perceber: gosto de geometria - triângulos isósceles, escalenos, ângulos rasos, senos, cossenos, hipérboles, tangentes e secantes, sistemas de eixos cartesianos e respectivas coordenadas, topologias múltiplas, a pureza das formas, a inequívoca posição no espaço, enfim, coisas assim. 

No entanto, estou longe de poder ser considerada uma geómetra, mesmo muito longe disso. Um geómetra é um purista e eu deixo-me facilmente contaminar. A imperfeição tenta-me. A sombra e os segredos que abrigam tentam-me, os enleios, as meias palavras, as abstrações insensatas seduzem-me. 

Deito-me ao sol, território sagrado dos geómetras, observo a luz e a linearidade dos seus raios mas, mal os olhares se desviam, deslizo como uma gata indecente e busco as pregas da sombra. Uma geómetra estudaria a queda da luz, a amplitude do ângulo com a linha de terra, as projecções esperadas. Eu não, eu, se sou atraída pela linha pura que estabelece o contraste entre a luz e a sombra, logo me desinteresso de explicações cartesianas ou euclidianas e me entrego à fantasia do movimento, à descoberta dos sorrisos descarados que se escondem atrás dos muros, esqueço os axiomas e invento sonhos.





Mas, no fundo de mim, conservo aquele classicismo que é próprio dos geómetras puros: o espírito recto, a exigência de clareza, a verticalidade das linhas de carácter. No entanto, que interesse me despertam as linhas curvas, ver a suavidade com que deslizam, com que se desvendam, para logo percebermos que, a seguir, se vão ocultar...

Mas hoje, arranjei-me para desafiar as diagonais, para comprovar que, em certos triângulos, o quadrado das hipotenusas iguala a soma do quadrado dos catetos. Nos sapatos, na carteira, na quase invisível tanguinha, no underbra, toda eu homenageei Pitágoras. O decote, esse já não, esse traça uma paralela com a saia. E com a linha da cintura. Aí começarei, mais tarde, o seu movimento descendente. Pelas pernas farei, pois, deslizar a saia, fazendo-a, nesse langoroso movimento descendente, traçar perfeitas linhas paralelas, daquelas que, supostamente,  jamais se encontrarão.

Perfumei-me, Nº5 claro, sou uma mulher de números. O nº 5 foi cuidadosamente colocado em pontos bem identificados. Com dois pontos se define uma recta, com três um plano. Um ponto por detrás de cada lóbulo, o terceiro na linha de intersecção dos seios. Os mais hábeis, com esses três pontos traçariam um plano. Mas eu não facilito e junto um quarto e, aí, só alguém mais sábio poderá rapidamente imaginar um espaço de actuação. Geometria pura. Poderia complicar mas não o farei, gosto de quem, quando não é o caso, não se perca em efabulações teóricas.

Mais à frente, no entanto, ao subir a rua, observei a geometria na sua forma mais sólida. Alguém mais distraído poderia pensar que se trata de um simples degrau sob uma parede na qual a luz se reflecte em ângulo recto. Mas não.





Voltei atrás, despi-me de interiores desnecessários e escolhi um vestido simples, um círculo em movimento como saia, um gracioso cilindro aberto como corpo. Prata pura na qual a luz se refecte deixando nele claros e escuros em projecções caóticas e macias. Os sapatos são agora muito simples, a carteira ainda mais. O meu cabelo e a ondulação da saia em círculo, em cuja coroa central entrará o meu tronco, chegam como geometria em movimento. De resto, tudo deverá ser sóbrio e simples. A entropia é inimiga da geometria.

E, então, chamarei o mais subversivo dos geómetras e dir-lhe-ei que me fale, mas com uma voz nova, de Thales, de Euler, até, se quiser, da curva de Gauss, que me fale de superfícies e volumes, pedir-lhe-ei que descubra qual a hora em que o meu corpo, ao sol, deitado sobre o paralelepípedo puro que é o degrau, receberá a luz sem mácula de sombra, e pedir-lhe-ei que use todas as regras da trigonometria para equacionar o movimento que deve imprimir ao seu próprio corpo para que a sua sombra cubra, como uma segunda pele, o meu corpo. E, se não tiver a resposta pronta e me vier com conversas de cálculo integral, diferencial que seja, dir-lhe-ei que não é o momento para teorias, que é hora, sim, de geometria aplicada. Aí, espero que os números, as equações, os teoremas se evaporem porque eu, de geómetra, em determinadas alturas, tenho muito pouco. Pode, se quiser, invocar Descartes mas, então, que seja para me sussurrar, ao ouvido, baixinho, dúvidas existenciais, magníficas conjecturas e esplendorosos raciocínios, enfim, filosofias que me levem até a um espaço multidimensional.

É que, se não puder ser assim, então a coisa muda de figura. Esqueço a geometria, quiçá até a filosofia e, se é para falar de teorias maçadoras que metam, no fim, um irritante quod erat demonstrandum, ou homeomorfismos, homotopias ou mesmo mitologias, então vou vestir um robezinho romântico e vou esperar sentada.




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As fotografias são do fotógrafo Mario Sorrenti, nascido em Itália em 1971, que vive actualmente nos Estados Unidos. Já teve os seus trabalhos expostos em vários museus, nomeadamente em Londres, Paris, Nova Iorque.

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Num registo muito diferente, as minhas palavras de hoje que se projectam em volta do Incêndio de Al Berto lá no meu Ginjal e Lisboa, no qual gostaria muito de receber a vossa visita. A música, maravilhosa, é Salieri que se despede.

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E é isto, meus Caros. Tenham um belo sábado e aproveitem bem a vida.

4 comentários:

Isabel disse...

Muito interessante.
Um belo texto em volta da geometria...ou a geometria às voltas com um belo texto.

(Nunca ouvi falar em senos e cossenos, pelo menos que me lembre. Já vou ver ao dicionário).

Um beijinho, boas melhoras e um excelente sábado

Olinda Melo disse...

Minha amiga

O seu texto é um autêntico um Compêndio de Geometria nas suas linhas mais puras, Geometria espacial, Geometria aplicada, aliás, aplicadíssima, provocante e cheia de curvas... Até eu, temerosa de longa data de tudo o que cheire a Geometria não me importaria nada de seguir esse trilho.

Devo dizer, em abono da verdade, que houve uma altura de pura inspiração em que os senos,os cossenos e os seus comparsas desceram dos seus tamancos e tivemos uma conversa de igual para igual...penso que passaram a ter respeitinho. :)

Belo texto, com uma dinâmica arrebatadora!

Parabéns.

Beijos.

Olinda

Um Jeito Manso disse...

Isabel, olá!

Muito obrigada. Às vezes dá-me para isto...

Olhe se eu ainda fosse professora de matemática... (já fui, em tempos). Já viu se para ilustrar os conceitos da geometria me ocorriam ideias peregrinas deste género. Em boa hora mudei de ramo!

Senos, cossenos e afins são funções trigonométricas muito úteis pois relacionam comprimentos com ângulos. No entanto, pode viver-se bem sem isso, asseguro-lhe (a menos que fosse arquitecta, engenheira civil, designer ou coisa do género, o que não é o seu caso).

Obrigada pelos votos de melhoras e de um bom sábado: estou, de facto, melhor e foi, de facto, um sábado tranquilo.

Um beijinho, Isabel, e um excelente domingo!

Um Jeito Manso disse...

Olá Olinda,

Já me ri com o que escreveu. É o que escrevi acima, na resposta à Isabel: a bem da sanidade dos estudantes, ainda bem que já não sou professora de matemática, não lhe parece?

No entanto, acho que, para que se goste de uma matéria e se percebam, na prática, os conceitos, nada como uma ilustração com exemplos práticos (embora não forçosamente com os que usei...)

Hoje estive a ler em voz alta ao meu marido o que tinha escrito (ele não quis ir buscar os óculos...) e ele, quando acabei, não disse nada. Perguntei-lhe o que tinha achado e ele respondeu 'Nem sei o que diga'. Insisti 'Mas gostas ou não?'. Disse que sim, que gostava, mas que ficava sempre espantado com as coisas que eu escrevia.

Eu também fico um bocado espantada mas, enfim, fazer o quê...?

Mas uma coisa é certa: divirto-me imenso a escrever. E fico contente se, quem me lê, gostar.

Muito obrigada, pois, pelas suas palavras.

Um beijinho e bom domingo, Olinda!