sexta-feira, junho 29, 2012

Sobre etiqueta à mesa...? Não, claro que não! Um americano, dois marroquinos e um holandês no Japão: três breves e irrelevantes histórias num dia verão


Música, por favor

Banda sonora de Miss Potter

*


Chegam os calores de verão e, apesar da Europa estar cada vez mais próxima do colapso, apesar da agonia que são estas repetitivas cimeiras em que se empatam uns aos outros, apesar da derrota da Alemanha no Euro,  apesar de tanto tema escaldante, só me apetece frescura.

Por isso, cá vou então, uma vez mais, deslocar-me por uma vereda tranquila, resguardando-me de calores e de escaldões. 



Mesa posta com um certo requinte



Hoje o tema tem a ver com momentos à mesa. Mas não sou especialista em etiqueta à mesa. Não sou especialista, aliás, em etiquetas de espécie alguma. Para ser, até, mais precisa, acho que nem especialista sou no que quer que seja.

Por isso, não é, pois, de etiqueta à mesa que vou falar pois é tema que, para falar francamente, não me desperta especial interesse. Prefiro uma mesa agradável, gente em sintonia, uma conversa agradável, do que gente muito composta mas com frieza, arrogância ou distanciamento na atitude.


De resto, são coisas que têm, essencialmente que ver com a cultura e com as circunstâncias. Vou antes falar de duas ou três situações que agora, preguiçosamente escapando-me do putativo programa de desenvolvimento que para lá andam a embrulhar na cimeira, me ocorreram.


. 1 .

Uma vez recebemos para almoço um consultor americano, com uma posição de topo na respectiva empresa, uma grande multinacional.

Tinham-me falado na informalidade dos americanos à mesa pelo que não estranhei. A mesa estava posta com os devidos preceitos. Pessoa com muito mundo, resolveu as coisas à sua maneira.



O típico americano à mesa


Começou por usar a artilharia ao lado dos pratos com todo o preceito europeu (digamos assim) mas, depois, à medida que o ambiente se ia descontraindo, com elegância a naturalidade foi deixando de usar a faca - até porque a refeição facilmente a dispensava – usando apenas o garfo, conversando animadamente, todo ele apoiado na mesa, quase debruçado sobre o prato (violando vários mandamentos: nunca apoiar os cotovelos na mesa, levar a comida à boca e não o contrário, etc).

Perante aquela informalidade, difícil, difícil foi, para os restantes, prosseguirem de cotovelos no ar.


. 2 .

Outra vez, na empresa, para últimos acertos negociais e fecho de contrato, recebemos uns marroquinos, um vice-presidente e um director comercial. Um era primo do rei (o rei tem muitos primos, acho eu). Tratando-se de negócio importante, todo o dia foi preparado com cuidado, incluindo almoço no último piso no restaurante da empresa. O restaurante tinha uma vista espectacular e era, à data, considerado um dos sítios de Lisboa onde melhor se almoçava. Todas as etiquetas possíveis e imaginárias eram ali seguidas à risca e devidamente adaptadas a cada circunstância.



Mesa posta num ambiente mais formal


Falei com a governanta que fazia do funcionamento daquele pequeno e privado restaurante a sua verdadeira existência, coordenando com eficiência e gentileza a cozinha e o serviço de mesa. Informei-a pessoalmente da proveniência dos convidados e dos cuidados a ter. Tranquilizou-me, colocando a mão no meu braço e dizendo que não era a primeira vez que lá tinha marroquinos. Sugeriu-me uma ementa, dizendo-me que o prato de carne podia ser arroz de pato, que era opção que, pela banalidade, geralmente não era servida mas que, dados os constrangimentos, talvez fosse uma opção segura. Pareceu-me bem.

No dia aprazado lá tivemos a reunião, ofereceram-me uma capa para documentos, em pele gravada a dourado e a verde, que ainda hoje, muitos anos depois, cheira a animal mas que é lindíssima.

À hora de almoço lá subimos, os marroquinos simpatiquíssimos, um deles verdadeiramente charmoso, tendo vivido muitos anos na Europa onde se tinha formado.



Encontrei a fotografia deste senhor na internet, acho que é presidente de uma empresa no Dubai
 mas, os que aqui refiro, eram bem este género



Falavam ambos muito baixinho, tínhamos que estar sempre muito atentos, insinuantes na negociação, afáveis, matreiros.

Tudo ia correndo na perfeição até que chegou a senhora que segurava na bandeja com o arroz de pato para que cada um, à vez, se servisse. Qualquer coisa no gesto do primeiro marroquino me fez perceber que algo de constrangedor se passava. Mas o outro continuava a falar e havia que dar atenção à conversa. Quando chegou a vez desse, percebi também o olhar hesitante.

Mas serviram-se. No entanto olhavam para o prato e, com os talheres quase como pinças, afastavam com muito cuidado, qualquer coisa. Então percebi. Era bacon! Porco, portanto. Ia-me caindo o coração aos pés. Pedi imensa desculpa e disse que ia pedir para recolher. Corteses, disseram que não. Tinham afastado os bocados de bacon sem lhes tocarem, arrastando grandes bocados de arroz. E lá petiscaram ao de leve, sorridentes e afáveis até ao fim.

Quando perguntei à governanta que distracção tinha sido aquela, ficou também para morrer. Tinha sido a ajudante cozinheira que, antes de colocar a travessa no forno, tinha achado que alguém se tinha esquecido do bacon e, então, por sua alta recriação, tinha tido a iniciativa, à última, de enfeitar o tabuleiro com tiras de bacon. E do forno seguiu para a mesa, enquanto a governante acompanhava a preparação da taça do doce e a fruta.

Lá expliquei aos senhores para que percebessem que não tinha sido falta de respeito ou desleixo. Com muita compreensão, disseram que não me preocupasse mais. Felizmente fechámos negócio.


.  3  .

Agora é muito frequente haver restaurantes de comida japonesa. Desde as melhores (Estado Líquido, Bica do Sapato, etc) até às mais populares, passando pelo take.away, comida japonesa é o que não falta. Mas há uma dúzia de anos ou mais não era usual.

Em tempos trabalhei durante algum tempo com um consultor holandês simpatiquíssimo. Era solteiro e gostava de conhecer destinos longínquos pelo que, antes de estar em Lisboa, tinha estado na Argentina, nos Estados Unidos, etc, e vários anos antes, no Japão.

E gostava de aceitar trabalhos que lhe permitiam viver um ou dois anos em cada local para ficar a conhecer razoavelmente o país.

Contava histórias engraçadas, variadas, era uma pessoa interessante, um contador de histórias.

Mas agora, como estou numa de histórias à mesa, conto o que ele contou que lhe aconteceu, quando chegou ao Japão.

Chegou lá e começou a trabalhar com um japonês, homem novo, simpático que, para o ajudar na integração no País, o convidou a ir almoçar a casa dele para conhecer a família.

Quando ele lá chegou estava a família inteira à espera dele, a mulher, irmãos, primos, pais e até o filho bebé. Todos sorridentes à espera do grande holandês louro e bem disposto. Uma hospitalidade que ele não esperava.


Claro que esta não é a família aqui referida, esta é imperialmente conhecida
mas, presumo, o espírito seria o mesmo


Depois foram para a mesa, aquele ritual conhecido. E ele viu-se perante uma mesa cheia de tacinhas, tacinhas com coisinhas, rolinhos, montinhos de uma coisa que lhe pareceu peixe cru, rodelinhas que pareciam flores e nem percebia se aquilo era para comer, ou como é que se comia, ou se devia servir-se de uma coisinha de cada. Não sabia. E a família inteira olhava para ele, sorridente, expectante.



Comida japonesa
(adoro!)


Então viu uma tacinha com uma coisa que lhe pareceu mais segura e foi a essa que, corajosamente, deitou a mão.

Gargalhada geral: era a papa do bebé.


**

Bem. Se não estão ainda cheios de fome e estiverem para isso, gostaria de vos convidar a visitar-me também lá no meu Ginjal e Lisboa, a love affair. Hoje as minhas palavras despem-se, quase obscenas, junto à Torre de Belém junto de um poema do novíssimo livro de Nuno Júdice, Fórmulas de uma luz inexplicável - ao som, claro, de Heitor Villa-Lobos.

**

E, meus Caros Leitores, tenham um belo dia. É sexta feira!

6 comentários:

A Matéria dos Livros disse...

Belas histórias. A etiqueta à mesa sempre me intrigou, pelo que o humor e a boa vontade parecem ser sempre a melhor atitude...

Passei rapidadamente só para lhe desejar as melhoras e a passagem rápida por essa terapia pouco evasiva, mas eficaz.

Um beijinho

ERA UMA VEZ disse...

Olá Jeitinho. O que já me ri hoje com as suas histórias.

Amanhã espero ir uns diazitos até ao Sul.
Antes disso, faço sempre umas arrumações obrigatórias e fui dar com um texto com vários anos mas que me apeteceu mandar-lhe.

Foi escrito a pedido de uma professora quando os meus filhos eram pequenos e permita-me que lho ofereça a si, querida amiga. Dedico-o também se me permite a um tal velho livreiro que costuma visitá-la...porque
ontem, como hoje, acho que os versos, às vezes, têm vida própria.

Até breve e cuide de si, ok?
Abraço!


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História de um menino verso
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Estava com pressa
tinha sido convidada
pediram-me um poema
e eu não podia recusar

já de saída e atarantada
reli o que escrevera
e senti que faltava uma ideia
pequena
indefinida

voltei atrás
espreitei a folha dobrada
no canto
na margem
no bloco
na estante
corri a casa toda
e exausta fui dar com ele
esse menino verso que faltava

Estava escondido
aconchegado junto de um soneto antigo
conhecido...apreciado
num livro empoeirado e já esquecido

Entre soluços lamentava...como lamentava...
dizia fazer parte de um poema encomendado
pois que não era espontâneo
verdadeiro
que não nascera inspirado sentido
desejado inteiro

e o velho soneto com ternura
esquecendo os anos e o cansaço
explicava docemente
que um poema...assim...oferecido
às vezes é um carinho
e toma a forma de um abraço

mas o verso rebelde
não se convencia
............................
então
não esperei mais
arrastei-o por uma sílaba
ameacei com a métrica
e prendi-o, algemado
entre duas frases de respeito
e (UF) ali FICOU

(mas tão...tão revoltado
que nunca mais rimou)

Isabel disse...

Gostei imenso das histórias e da forma como foram contadas.
Um beijinho e bom fim-de-semana

Um Jeito Manso disse...

Olá Leitora Andarilha de A Matéria dos Livros,


Muito obrigada pelos seus votos de melhoras. Estou melhorando, aos poucos, mas começo a convencer-me que, de facto, isto está a precisar de uma 'limpeza'. A ver vamos...

Quanto a estas histórias verídicas que guardo nas minhas lembranças (que, sem eu dar por isso, se vão constituindo), são algumas das muitas que decorrem da convivência com pessoas de proveniências diversas. A diversidade da vida percebe-se melhor quando podemos constatar como são plurais as atitudes, as culturas, as circunstâncias das pessoas.

Quanto a estar à mesa, a minha opinião é que o melhor é sempre a espontaneidade, o não recear expressar as dúvidas, o encarar com leveza e boa disposição o que vai acontecendo.

Um beijinho e um bom sábado.

PS: Belos poemas para a rentrée, depois de uma semanita de ausência.

Um Jeito Manso disse...

Olá Querida Erinha,

Que alegria me traz com essa leveza própria de quem ruma a sul.

E que alegria receber um presente tão bonito e que me honra ao deixá-lo aqui para ser partilhado com o tal 'velho livreiro'. Tomara que ele venha aqui e o veja.

Tão bonito o poema, sempre aquela musicalidade que lhe escorre das mãos, as palavras desenhando uma toada enquanto contam uma história.

Muito obrigada pela parte que me toca e só lhe desejo que descanse, que apanhe sol, que mate saudades, que se divirta, que seja feliz!

Um beijinho, Era uma Vez!

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Embora não seja saudosista, isso não significa que seja desmemoriada.

Não penso nunca que dantes é que era bom pois acho que é sempre bom e que o meu tempo é aquele em que vivo. Mas tenho boa memória e gosto também de recordar as muitas situações que tenho vivido ou as histórias que tenho ouvido. E gosto de partilhar isso.

Fico contente que seja agradável de ler (ou ouvir).

Obrigada Isabel, um beijinho e bom sábado.