Música, por favor
Ryuichi Sakamoto - Solitude
As palavras parecem-me excessivas. Tanto ruído. Cansam-me. Tantas palavras escorrendo fel pelo canto das sílabas. E tanto floreado inútil. Tanto ruído, tanto, tanto. E tanta vacuidade. Um vazio ignominioso, fútil, cinzento, amargo, baço, pequenino, vulgar.
Apetece-me o silêncio. Quanto muito algumas palavras muito simples, contidas, essenciais.
Ou, de preferência, palavras abstractas. Ou dissolvidas. Palavras abstractas em solução aquosa.
E, então, penso que mergulho.
Fecho os olhos. Fecho os olhos e sinto-me a respirar. Tomo consciência do meu corpo que respira. Devagar. A superfície do meu corpo respira, silenciosa, e, aos poucos, começo a deslizar dentro de mim própria. Como se mergulhasse. Devagar, em silêncio, atravesso a superfície do meu corpo e deixo-me descer, desço, desço lentamente.
Estou agora dentro de um líquido. Pode ser um qualquer líquido. Talvez água.
Estou agora dentro de um líquido. Pode ser um qualquer líquido. Talvez água.
O cabelo sobe, prolonga a minha presença na água, sobe como uma medusa silenciosa. E eu desço, de olhos fechados, e a frescura da água começa a invadir o meu corpo. Devagar, a superfície da água abre-se para me acolher. Depois, já quase no fundo, abro os olhos e vejo a água que me envolve, límpida, azul, tão fresca que é quase verde, e vejo o meu corpo que flutua, lento, na água.
Elevo-me um pouco para me aproximar mais da superfície. Vejo então a luz que se funde com a água, e quase toco com as mãos essa mistura feliz, água e luz. Há, então, uma doçura fluida e o meu vestido solto adquire movimentos e subtilezas que só eu e outros seres marinhos tais como eu podemos testemunhar.
Faço lentos movimentos e é como se o tecido branco, macio e leve que flutua à minha volta fosse o meu par de dança e eu sinto-me acariciada com desvelada ternura e rodo e, rodando, sou abraçada com uma leveza apenas sonhada, uma etérea carícia, um afago invisível que me envolve lenta, lentamente.
Em minha volta flutuam palavras soltas, palavras que vêm do princípio dos tempos, intocadas, e ouço a voz silenciosa das águas e fecho os olhos para as sentir, para sentir essa fala abstracta bem junto à minha pele.
Reparo, então, com um assombro quase humano que, no recanto mais profundo, onde o silêncio é mais absoluto, onde a luz ficou retida pelas sombras, onde a água é quase esmeralda, um homem escreve poemas, imparavelmente. E, enquanto o poeta escreve, a sua voz também quase humana, vai dizendo, devagar - quase um murmúrio, numa leve, quase silenciosa toada - palavras puríssimas, bondosas, soltas.
by Jason Taylor |
E são essas palavras que eu vejo junto a mim, enfeitando os meus cabelos, beijando os meus seios, sorrindo junto aos meus lábios, flutuando entre as minhas pernas permissivas.
Sinto, então, que os meus cabelos flutuam, soltos, as minhas vestes quase se soltam do meu corpo e em minha volta, como pássaros iniciais, e as palavras envolvem-me, tocam-me, livres, livres eu e as palavras e as águas em que mergulho.
by Zenna Holloway |
Não há diferença, então, entre esta sensação de liberdade e doçura e a de voar num espaço aberto, sobre os montes, sobre os rios, juntamente com outros pássaros. Não há peias, não há pesos e a água que me envolve é limpa, transparente, suave. Não há corações intranquilos, não há olhares duros, não há mãos fechadas: há apenas uma leveza absoluta, uma luz fluida e sedutora, o som silencioso das palavras que voam nestas águas abstractas.
by Alix Malka |
Depois, quando o meu corpo e a minha alma se encontram limpos, saciados, livres, começo a desprender-me das águas, solto as vestes, despeço-me da limpidez, da pureza inocente e primordial e, lenta, lenta, lentamente, regresso à superfície.
Depois, com educada paciência, volto a vestir-me.
by Alix Malka |
Passado pouco tempo já me poderão ver, de novo, camuflada, protegida, envolta em correntes e raízes, apta a enfrentar a selva de palavras ruidosas, amargas, baças, vulgares. Pronta, portanto, para mais um dia.
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Reflections in Pink - Iara Mandyn
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Hoje, lá no meu Ginjal e Lisboa escrevi um texto que tem muito a ver com este e que me deu, também, muito prazer a escrever. As minhas palavras, por lá, deslizam num veleiro em volta de um poema de José-Alberto Marques. Acompanha com um dueto fabuloso, Renée Fleming e Cecilia Bartoli, e, claro, é ainda Mozart, desta vez As Bodas de Figaro. Se estiverem para isso, gostaria muito de vos ter também por lá.
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E, por hoje, é isto. Tenham, meus Caros Leitores, uma bela terça feira.
Bons mergulhos!
8 comentários:
Que bonito este reino da fantasia, leve e etério para onde nos transportou.
O bailado é simplesmente fenomenal, que bonito.
Tudo muito bom, dum enorme bom gosto.
Beijinho Ana
Amiga:
Depois deste banho lustral, a que me juntei, sem licença, a minha cabeça, sempre tão inquieta, ficou calma, limpa, lúcida.
A música ajudou muito. As suas palavras, foram repetidas e quase, me esqueci do mundo.
Os quadros, dois da Alix Malka, Jason
Taylor, Zenna Holloway e de novo, Alix Malka, limparam-me os olhos.
Não conhecia nenhum deles. Vou saber mais.
A última música, terminou o meu tratamento de beleza interior.
Como eu a entendo, Amiga!
Abraço
Mary
Cautelosamente, saltando de letra em letra sem magoar as palavras, e de nota em nota sem quebrar a pauta, mergulhei nas águas do seu belíssimo “post” e deixei-me vogar nas aquosas e límpidas sonoridades. Realmente belos, cara UJM, os sons e as palavras. Isto é poesia em movimento musical, quase uma viagem subconsciente ao nosso embrionário mundo amniótico. A sentida memória das origens e da vida que, sem água, nunca o seria.Um hino à purificação do corpo e do espírito.
Olá Ana,
Obrigada. Mas percebeu que foi ontem, quando lhe estava a responder, que se formou a ideia de escrever isto. Contrariar a inquietação com um mergulho no silêncio, totalmente isolados da inquietação dos dias, é tudo o que por vezes me apetece.
Gostei muito de escrever, foi como se estivesse mesmo a sentir aquele mergulho em águas frescas. Por isso, ainda mais me agrada saber que também gostou de ler e ver.
Obrigada, uma vez mais.
Um beijinho, Ana.
Olá Mary,
O que eu gostei da expressão 'banho lustral' aplicado a este texto... Fiquei a pensar e acho que é mesmo isso, um banho de limpeza total, o lustre puxado, sairmos do banho limpos e novos.
Fico muito contente que a leitura do texto tenha tido esse efeito tranquilizante. A mim também me tranquilizou ao escrever.
Gostei que tivesse referido as fotografias como quadros porque o são, autênticas pinturas, arte underwater. Gente que inova na arte de fotografar.
No conjunto, texto, imagens, música, bailado, apeteceu-me fazer uma espécie de spa...
Obrigada pela compreensão, Mary e um abraço também para si.
Olá Caro DBO,
Sabe que quando comecei a escrever sobre o mergulho, antes de ter escrito que estava a mergulhar num líquido qualquer, talvez água, eu escrevi antes que tinha mergulhado num leito cálido que seria, talvez, feito de líquido amniótico. Mas depois temi que depois tivesse dificuldade em 'encaixar' as fotografias que fui escolhendo.
Mas foi muito nesse mundo interior (em que um ser nada no mundo interior de um corpo humano) que estava a pensar. Um longo exercício de meditação, de recolhimento, de abstracção e silêncio.
Acho que a expressão da Mary, do banho lustral, também se aplica. Relaxamento, meditação, fantasia, recolhimento, limpeza de alma, sons muito puros - eu ia escrevendo e sentindo e desejando que os leitores também sentissem essa calma límpida, muito longe da poluição (emocional, cultural, etc, etc) do dia a dia.
Muito obrigada, mesmo, pelas suas palavras, como de costume muito saborosas de ler.
Que belíssimas imagens! E a música é excepcional. Tenho a do Ryuichi Sakamoto, mas não conhecia a Iara Mandyn. E aqui fiquei também mergulhado no silêncio...apenas acompanhado desta escolha musical magnífica!
Que Post bonito!
P.Rufino
Olá, P.Rufino,
Fico contente que tenha tido oportunidade de aqui vir dar uma espreitadela. Já o disse nas respostas anteriores mas digo-lhe também a si. Deu-me uma tranquilidade enorme, também a mim, escrever estas palavras e conjugá-las com as imagens, com a música, com o bailado dentro de água. Acabei tardíssimo (como de costume...) mas acabei com uma serenidade incrível, parecia eu que tinha estado a fazer meditação num templo budista...
Muito obrigada P. Rufino e permita que o convide a deslocar-se até ao meu blogue Ginjal pois verá qual o trecho de Mozart que hoje lá figura. Claro que lhe estou muito agradecida pois, não fosse a sua dica, eu não chegaria lá. Aliás é o que estive a ouvir o tempo todo que estive a escolher o poema e a fotografia e, depois, escrever o meu texto lá no Ginjal. Que maravilha.
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