terça-feira, maio 15, 2012

A paz interrompida de Ana


Música, por favor

Maria Bethânia - Casinha Branca


Aos poucos, a transformação que se vinha operando na vila começou a ser notada. O progresso crescia, novas lojas abriam, o dono da residencial expandiu o edifício, o número de restaurantes duplicou, as pastelarias aumentaram e vinham já pessoas de fora para passear, ver as bordadeiras e comprar os doces regionais

O presidente do município organizou uma série de conferências, tendo convidado Ana para explicar qual tinha sido o seu papel, dado que era unanimemente reconhecido como determinante.




Ana, com simplicidade, explicou que se limitou a aplicar um dos princípios empíricos da economia e que consiste em que o que é necessário é pôr a máquina em movimento, restituindo a confiança aos consumidores e investidores. Uma vez isso acontecendo, as coisas correm por si. O dinheiro em circulação até pode ser o mesmo mas muda de mãos, gerando sustentabilidade. Explicou ainda que se o dinheiro em circulação for o mesmo mas mudar de mãos já não é mau, pois mau mesmo é haver retracção, uma vez que isso conduz à paralisia da actividade, à saída de cena dos agentes mais fracos, ao desemprego e, logo, ao empobrecimento. Mas que bom mesmo é entrar dinheiro de fora pois havendo mais dinheiro em circulação, isso significará crescimento. Explicou que foi isso que aconteceu na vila pois, ao passar a haver produtos inovadores e amplamente divulgados, começaram a acontecer vendas superiores a clientes de fora, o que acrescido da vinda de pessoas em turismo - mesmo que apenas para gastar em restaurantes - significava mais dinheiro livre entre as pessoas da vila, que o aplicavam em poupanças, em consumo ou em investimento.

Alguns ainda se interrogavam como é que uma bordadeira falava assim mas a maioria já se tinha habituado a conviver com a estranheza da situação.

E Ana sorria, agradecida por ver o fruto da sua iniciativa. Ana sorria porque sentia que as pessoas se queriam unir, queriam progredir, apostavam na juventude, apostavam na troca de experiências e saber entre novos e velhos.

A melhoria de rendimento escolar e a empregabilidade dos estudantes da vila começou a aumentar e essa era a maior alegria e a maior recompensa que Ana poderia desejar.



Ana andava feliz.

Na sua casa, no rés-do-chão forrado a estantes, com sofás, mesas, com as paredes decoradas com fotografias, pinturas, havia sempre jovens a ler, mulheres das oficinas que vinham praticar informática com os jovens, havia gente que tirava dúvidas aos miúdos, lia-se poesia, ouvia-se música. Era um local de tertúlia, de aprendizagem, de partilha.

A sua pequena casa com um pinheiro e uma pequena horta, as suas pequenas divisões muito claras, cheias de luz, muito simples, a alegria que ali reinava, enchiam-na de orgulho. 

Mas não há paz que sempre dure.

*

Música, de novo, por favor

Nat & Natalie Cole - Unforgettable



Um dia, quando Ana se levantou e, como sempre fazia, abriu as janelas do piso de cima, apercebeu-se de algumas vizinhas espreitando a rua, por detrás das cortinas. Estranhou e, então, espreitou ela também.

Ia-lhe dando uma coisa. O primeiro impulso foi fechar a janela e esconder-se. Com o coração descompassado, sentou-se. Ficou assim sentada, como se tivesse levado uma pancada na cabeça, por largos instantes, sem saber o que fazer.

Aos poucos foi vindo a si. ‘Estupor!’, ‘raios o partam!’, ‘estou feita!’, ‘o que é que eu faço agora à minha vida?’, ‘mas como e que o estúpido me descobriu, senhores!?’, ia ela dizendo num desespero, num lamento ,enquanto girava pela casa, sem saber o que fazer.

Voltou a espreitar mas agora com muito cuidado, não fosse o estupor vê-la. Devia estar metido dentro do carro porque não se via. Mas o carro, o carrão, estava mesmo encostado à porta, seria impossível sair sem ser vista.

Então foi tomar banho e, aos poucos, foi serenando. As feras encaram-se de frente e assim o faria.

Arranjou-se com cuidado como há algum tempo não o fazia, cuidou dos pormenores, perfumou-se, e foi à luta.

Ele devia estar atento pois, mal sentiu a porta a abrir-se, saltou do carro e colocou-se em frente dela com um ramo de rosas na mão. Sorria a medo mas o ar de galã tímido era o mesmo de sempre.

Ana reparou que as rosas estavam quase murchas, estava mesmo a ver-se que devia ter comprado as flores na véspera e deixado ficar no carro. Mas fez de conta que não tinha notado.

Ana aguentou firme : 'O que é isto?! Não deixei bem claro na carta que enviei há tempos atrás?!’

Ele não disse nada, Ana sabia que devia estar um pouco nervoso. Continuou a barafustar, ar de zangada: 'E vires para aqui neste espalhafato, pores-te aqui assim à minha porta com esse carro... e não percebes que as pessoas te conhecem? E olha essa figura de flores na mão...! Estás habituado a dar espectáculo, não é? Não perdes uma oportunidade... Ridículo.'

Ele nada, nem uma palavra. Com a habitual falta de perspicácia masculina, ainda não tinha percebido no que aquilo ia dar.

Ana continuou, mas quem a conhecesse pressentiria que, na escolha das palavras, estava já um indício e cedência: ‘Posso saber o porquê deste acto de desobediência civil?!

Ele arriscou: ‘Admiti que o castigo para a desobediência valesse o risco… Admiti mal...?’ e, olhando-a nos olhos, pressentiu que a coisa estava a ficar bem encaminhada. E, então, sorriu, sorria, com o sorriso de quem pede indulgência intuindo, à partida, que já a tem.

Ana, ainda simulando ar de má: ‘E as flores são para ficares aí, nessa figura triste, plantado no meio da rua com elas na mão, para as vizinhas todas te poderem tirar uma fotografia com o telemóvel, ou serão para eu as ir colocar numa jarra?’ mas já se ria, e ele conhecia bem esse sorriso.




Riu-se também: ‘Não te quero dar trabalho. Diz-me onde está a jarra que eu trato disso’ e entrou dentro de casa, atrás dela.

Mal a porta se fechou, agarrou-a pela cintura e dobrou-a, um verdadeiro beijo à Hollywood. Depois ela deu-lhe uma palmada no peito, como se estivesse zangada: “Mas isso faz-se? És mesmo um estupor!”.

A seguir, levou-o pela mão a ver a casa. E, pela primeira vez, chegou atrasada à oficina.




Cinema, por favor: it's Hollywood time

Richard Gere e Julia Roberts, o beijo do reencontro - Pretty Woman
*

Recordo, de novo, que, se quiserem ler a história de Ana desde o início, poderão procurar nas etiquetas aí ao lado, em baixo, 'Ana muda de vida'.

E, de resto, hoje no meu Ginjal e Lisboa as minhas palavras voam em volta de um belíssimo poema de  Manuel António Pina. A música é maravilhosa, Donizetti claro. Se estiverem para isso, eu gostaria de vos receber lá.

***

E tenham, meus Caros, uma terça feira cheia de beijos (reais, imaginados, consentidos, roubados... como queiram). E divirtam-se à grande, está bem?

8 comentários:

Maria disse...

Amiga:
Passei por aqui. Tentei ler com atenção, mas ainda estou KO. Só lhe vou dar um beijinho grande.
Vou voltar e lerei a história toda. Depois comento. Agora, seria só conversa. Gosto de saber o que comento e hoje, não saberia muito bem.
Os dias vão passando, a saudade é muito grande, encontro o meu Nabão, em cada canto.
Desculpe. Eu sei que me entende.
Beijinho
Mary

A Matéria dos Livros disse...

Mas que Ana tão empreendedora! É realmente uma inspiração. Até pelo "estupor" charmoso...
Se Ana é tão decidida e criativa, por que razão quis mudar de vida, e por que motivo abre a porta a alguém que queria (?) fora da sua vida? O mistério apimenta-se...

Um beijinho

Boa 4ª feira

Isabel disse...

Ontem estive aqui, mas estava cansada e acabei por não ler bem.Hoje já li tudo.
Eu acho que os nossos políticos deviam ler a sua lição de economia...

Bem, quem é ele? E como ficará agora a Ana? Volta? Continua onde está?
Gosto da casa dela e da atmosfera tão amigável que lá se respira.
Vamos esperar para ver a continuação...
Um beijinho

Um Jeito Manso disse...

Maryzinha, gaivota ainda de asa caída,

Vamos já a arejar essas asas, a levantar a cabeça, vamos lá mas é a preparar para novos voos.

Sei muito bem o que sente, são olhares longos os que pousaram em nós, são olhares que duram anos, sei bem porque ainda sinto o olhar confiante e triste da minha linda cadelinha. Mas a vida continua e não se pode desperdiçar.

Vou ficar aqui à espera das suas palavras arrebitadas, sempre com a resposta na ponta da língua (i.e., dos dedos) ou das suas palavras poéticas, todas cheias de sensibilidade.

Espero que o seu marido já esteja melhor e que a ajude também a sair do luto.

Anime-se Mary, faz-nos aqui falta a Mary do costume.

Um beijinho e não demore, vá lá...

Um Jeito Manso disse...

Leitora de A Matéria dos Livros,

... imaginei que ia gostar do 'estupor'..!

Ana é uma mulher que é the captain of her soul, of her live, of her heart (não sei se ouviu a canção da Rita Redshoes que aqui coloquei no outro dia).

Ana é também criativa e empreendedora, lá isso é, e também queria o 'estupor' fora da sua vida, também é um facto. Mas, enfim, Leitora, seja indulgente: Ana é uma mulher de carne e osso, tem as suas fraquezas, tem os seus momentos (e, nunca esqueça, Leitora, que todas as glórias do mundo não valem uma noite de amor... Aqui não foi uma noite, foi uma manhã mas vai dar ao mesmo). Por isso, eu ainda não sei bem o que se passou - juro! - mas sou levada a crer que foi uma recaída sem exemplo, uma excepção, uma saudadinha que bateu com força, qualquer coisa assim.

PS: Cheguei mesmo há bocado a casa (e agora já são 23:30) pelo que nem sei se hoje vou conseguir escrever alguma coisa. Vamos ver.

Um beijinho, Leitora (e obrigada).

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Ontem fiquei mesmo contente com a gentileza do presente da sua aluna. É bom ter alunos assim, tão queridos. Mas eles também sabem com quem são queridos, não é?

Ele, eu acho que isso já sei quem é. Agora não sei se ele a convence a deixar-se de coisas e a voltar, nãosei se Ana depois de ter posto tudo a mexer vai continuar a gostar de lá estar. Ainda não sei.

Se quer que lhe diga, quando leio os vossos comentários fico logo 'em pulgas' para desatar a escrever, especialmente porque também fico curiosa para descobrir o que vai acontecer.

E não pense que estou a 'fazer género' porque não estou.

Obrigada pelo incentivo.

Um beijinho, Isabel.

Isabel disse...

Tinha escrito um comentário e não sei se seguiu, parece-me que não.
Vou escrever outra vez.

Já li o texto de hoje e a história parece complicar-se. Haverá romance com o carpinteiro? (Ele parece interessante...)
E será que a Ana quer mudar de vida, ou fez apenas um intervalo?
Também não se muda assim de repente, pois não?

Estou curiosa...

Obrigada pelas suas palavras em relação à minha aluna.

A Maria Bethânia era uma das cantoras que adorava ver ao vivo, mas ainda não tive oportunidade.

Um beijinho

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Como escrevi na resposta ao comentário da Leanor no post seguinte, eu conheço um carpinteiro que é muito assim, inspiro-me nele ao escrever. Talvez por eu simpatizar e apreciar muito o trabalho dele, estou a trazer Ana ao seu convívio.

Não sei se entre eles vai haver mais que amizade, não sei. Ana ficou perturbada com o aparecimento daquele amigo de quem queria distância. Ao vê-lo ali em frente de casa não teve como fugir e teve, ao que parece, uma recaída. Situações que ela queria evitar, parece querer, sobretudo, paz de espírito.

Não sei, vamos ver o que se vai passar.

Um beijinho e obrigada, Isabel.