quinta-feira, maio 24, 2012

O encantamento das palavras. A última miséria, a solidão mais absoluta. A nossa vida sexual coincide com o melhor do que somos. O médico de palavras. As nalgas e o osso da rabadilha. E, para acompanhar, o redondo vocábulo de Zeca Afonso e a louca inocência de Paul Klee


Música, por favor

José Afonso - Era um redondo vocábulo


.1.




Doutor, pode ser a qualquer hora, onde quer que esteja, com quem quer que seja. Olho para uma coisa e, sem  querer, começo a retirar-lhe uma a uma todas as ligações que ela tem com as outras coisas até ela acabar por se sumir. Uma pessoa está a falar comigo e, de repente, deixo de a entender porque fico encantado pelas palavras, sem cuidar do que dizem. Ou então estou a pensar numa coisa e começo a pensar no que será isso de pensar numa coisa e esqueço-me do que estava pensar. Coisas assim.


.2.




Aqui, pensou o médico, desagua a última miséria, a solidão absoluta, o que em nós próprios não aguentamos suportar, os mais escondidos e vergonhosos dos nossos sentimentos, o que nos outros chamamos de loucura que é afinal a nossa e da qual nos protegemos a etiquetá-la, a comprimi-la de grades, a alimentá-la de pastilhas e de gotas para que continue existindo, a conceder-lhe licença de saída ao fim de semana e a encaminhá-la na direcção de uma 'normalidade' que provavelmente consiste apenas no empalhar em vida. 

(...) Os que os procuram para se procurarem e arrastam de consultório em consultório a ansiedade da sua tristeza, como um coxo transporta a perna manca de endireita em endireita, em busca de um milagre impossível. Vestir as pessoas de diagnósticos, ouvi-las sem as escutar, ficar de fora delas como à beira de um rio de que se desconhecem os as correntes, os peixes e o côncavo de rocha de que nasce.


.3.




Estar doente é descobrir a existência autónoma do corpo, essa nossa outra identidade esquecida que anda connosco. Não somos donos da nossa mente, tão-pouco o somos do resto. Sim, o corpo escapa-nos tanto ou mais do que a memória, que também envelhece à nossa revelia: o corpo, esses, aguenta, reage, resiste, ou não, ele lá sabe! E nós assistimos, espectadores meio contrafeitos, a esta realidade situada fora de nós, embora sempre ao nosso lado. Que de nós, afinal, é indissociável. Estranha coisa.

Porque o nosso corpo, terra incognita, somos nós e não o somos, mas se ele morrer, morremos com ele. Pertencemos-lhe pois, mesmo contra nossa vontade.

Estar doente é passar a coexistir com um intruso. Um intruso vingativo.

A nossa vida sexual coincide com o melhor do que somos. É a expressão de uma sempre antiga fidelidade, íntimo júbilo reencontrado. De uma presença, em suma.

Ao invés, a doença é o pior do que somos, reflexo de uma íntima traição. Pior do que uma ausência, um esvaizamento.


.4.




Qual a sua profissão? perguntou um escritor a um crítico. Eu, sou médico de palavras. Médico de palavras? Tinha ido cortar o cabelo e achava-se desprovido de argumentos.


.5.



E ali fiquei, humilde, embrutecido, perante a comadre escura que me vigiava. Os olhos dela, vorazes, eram mais temíveis do que esse ventre desgastado de esforços vãos, do que a bacia estreita que se opunha à vida. Esperei minutos, horas, para me dispor àquilo que desde logo me pareceu indicado: uma intervenção com os medonhos ferros que são o pesadelo das parturientes e das famílias aldeãs. Até que a comadre, não suportando já as minhas hesitações, levou à frente das palavras um dedo sujo, antes que eu pudesse simular uma reacção, e enfiou-o nesse abismo insondável. E disse sem meias-tintas:

- Se quer fazer alguma coisa, Sr. Doutor, saiba que a criança está nas nalgas. Está presa presa no osso da rabadilha.

Aquela frase ficou inteira nas minhas recordações, ainda hoje me assusta os ouvidos.



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A. Os autores dos textos são respectivamente:

1. Pedro Paixão

2. António Lobo Antunes

3. Marcello Duarte Mathias

4. Ana Hatherly

5. Fernando Namora


e são parte de textos maiores contidos no livro, já aqui referido,  'A caneta que escreve e a que prescreve' organizado por Clara Crabbé Rocha.


B. As imagens são pinturas de Paul Klee, pintor suiço naturalizado alemão (1879 - 1940) que é cá dos meus.

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Se estiverem para isso, gostaria de vos ver lá pelo meu outro canto, o Ginjal e Lisboa. Hoje as minhas palavras mergulham em volta de um poema de Casimiro de Brito. Acompanham com vozes maravilhosas que continuam a semana Verdi.

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E tenham meus Caros uma belíssima quinta feira!

6 comentários:

Maria disse...

Amiga
Isto hoje não dá para brincar.
Logo que vi, que o assunto era médicos e doentes, veio-me à ideia uma frase de Torga, que decorei há muitos anos e, que me serve de muleta, muitas vezes. Diz o mestre: Órgão que se sente, é órgão doente.
Não sei porque me lembrei logo disto.
Li a 1ª, li a 2ª, li a 3ª, li a 4ª e, percebi que, eram pedaços de livros, de vidas, escritas por médicos.
Quando comecei a ler a última, parei, fechei os olhos e, contei a história a mim mesma.
Retalhos da vida de um médico, Fernando Namora.
Só depois reli a 2ª e reconheci Lobo Antunes.
Pensar que todos eram médicos, foi errado. O Pedro Paixão está cá.
Não pensei, que ver, ou ser doente, também dá uma dimensão diferente, da vida, da morte, do que é um corpo.
Tenho de comprar o livro da Clara Rocha.
Hoje não brinquei, Amiga. Não porque esteja triste. O assunto médicos, doentes, corpo, sexo, é muito sério para mim.
Gostei de ouvir o Zeca.
Não gostava de ter em casa um Paul Klee, mas acho-lhe graça.
Resumindo: Mais uma boa cronica.
Beijinho
Mary

A Matéria dos Livros disse...

Que paz! Em contraste absoluto com a entrada de ontem; para compensar os horrores e baixezas do quotidiano...

Também gosto muito de Paul Klee. Combina com Kandinsky, Miró ou Chgall, não? (No seu próprio estilo e época, claro.) "Casa" muito bem com a palavra, tanto cantada por Zeca Afonso, como escrita pelos poetas e escritores citados.

Respondendo ao seu reparo, lá em baixo, é verdade que tenho andado muito ocupada com trabalho e solicitações familiares, mas hoje tirei a tarde para "acarinhar" um pouco o blogue e os seus eventuais leitores, apesar de as entradas serem um pouco centradas no Eu...

Um beijinho

Isabel disse...

Gostei muito de ler os excertos.
Adorei as pinturas.

Um beijinho

Um Jeito Manso disse...

Olá Amiga Mary,

Este livro tem excertos de textos escritos por médicos, memórias, tem excertos de textos escritos por doentes, coisas ficcionadas que envolvem qualquer das facetas, poemas. É muito interessante e tem uma bela encadernação.

O Pedro Paixão aparece na qualidade de 'doente' pois escreve muitas vezes descrevendo episódios assim e, aliás, já o disse um público, é bipolar e tem tido inúmeras depressões. O Marcelo Mathias tem aqui um excerto muito impressionante que eu não coloquei aqui porque é um bocado dramático e eu fujo um bocado disso.

O de António Lobo Antunes é como médico embora haja crónicas dele, muito impressionantes e muito bem escritas em que fala como doente, quando teve o cancro nos intestinos.

Conheço essa expressão de que fala e no outro dia pensei nela. Vinha no carro (local em que, como é sabido, passo uma parte considerável da minha vida...) e senti a garganta. Não me doía mas senti-a. Lembrei-me dessa frase. E não é que nessa noite já me doía mesmo? E agora ando aqui a automedicar-me (como é costume), tomando maxilases e pastilhas e já estou melhor mas, quando vinha no carro, já ela estava a dar sinal.

O nosso corpo é mesmo uma coisa que parece que é independente de nós, que não controlamos, que tem vontade própria, que nos esconde, por vezes, a verdade - somos nós mas é um mistério. Não dá para brincar com isto, lá isso não.

Os textos do Miguel Torga, aqui neste livro, são impressionantes pois mostram-no quer como médico que faz de tudo para combater a doença e a morte dos seus pacientes, quer como, depois, ele próprio, doente, no meio dos doentes.

Enfim. A ver se hoje me dá para falar de alguma coisa mais animada.

Eu gosto do Paul Klee - mas isso não admira pois já se sabe que tenho gostos assim. O que é óbvio atrai-me menos do que o que é misterioso, estranho, maluco.

Um beijinho, Mary.

Um Jeito Manso disse...

Olá Leitora de A Matéria dos Livros,

Concordo com a associações. É um pouco deixar a imaginação fazer o que quer. E é uma imaginação que tem doçura, inocência, romantismo, um olhar suave sobre as coisas. E então desenham-se figuras abstractas, símbolos, cores, objectos suspensos, céus de várias cores. Gosto muito.

E aos símbolos e figuras e cores quentes e brandas da pintura apeteceu-me juntar os redondos vocábulos, também suaves. E, claro, as palavras pacíficas de médicos, doentes, escritores que reflectem sobre o corpo, aquele corpo plural de que fala lá no seu canto. Já lá estive e gostei muito, são sempre 'entradas' (como lhes chama) muito cuidadas e interessantes.

Um beijinho, Leitora.

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Obrigada. Gostei de as escolher e de as conjugar e fico contente que tenha gostado.

(Tal como gostei da Espera de Sophia que, de tanto esperar, fez com que a Flaming June, lá no seu canto, caísse a dormir)

Um beijinho, Isabel.