terça-feira, janeiro 10, 2012

Uma imprevista história de amor, um apaixonado tango numa imprevista noite de Janeiro


O dia não foi fácil. Reuniões, muita exposição, sempre a ter que sorrir, sempre a ter que mostrar confiança, simpatia. Agora que conseguiu despachar a exigente agenda diária já é tarde. Podia estar cansado mas hoje, por acaso, não está.


Vem com uma irrequietude na alma e no corpo. Não lhe apeteceu ir jantar a casa. Parou na estação de serviço, comeu uma sopa, dois crepes, uma imperial, bem bom. Sentia-se incapaz de se ir enfiar no sofá, anestesiado, a saltar de canal para canal. Comentadores desportivos, comentadores políticos, telenovelas e sempre aquele ar provinciano, nada lhe interessava, nada o sossegaria.

Portanto, em vez de se dirigir a casa, seguiu outro caminho, conduziu até à zona antiga da cidade. Estacionou, guardou os óculos, e saíu do carro sem saber ao que ia, talvez apenas andar pela rua. Voltou atrás, foi buscar a pasta, esta zona não é segura e os documentos são demasiado importantes. Início de Janeiro, temperatura amena, uma vontade de primaverar, um certo ar precoce de flores a renascerem, um aroma de volúpia, qualquer coisa de invisível, de indefinido.

As luzes estão quase apagadas, a autarquia está a poupar na electricidade, pensaria que o ambiente está quase lúgubre não fosse esta pulsão pela descoberta de qualquer coisa, nem sabe o quê. Anda e parece que há uma leveza que o transporta. Sente perfume no ar, talvez alguma planta nos arbustos destas moradias antigas, talvez alguma mulher aqui tenha passado há pouco. Aspira, vai andando e, ao andar, vai aspirando, que cheiro tão bom. Pensa: se fosse há uns anos, talvez achasse normal procurar uma prostituta, que o corpo lhe está a pedir confronto. Ri-se sozinho. Uma mulher, coisa boa.

E segue. Adiante estão dois homens, cada um com seu cão, conversam, os cães brincam, estão praticamente às escuras. Olha-os com uma certa inveja; são hábitos de um quotidiano que lhe é estranho. Mais à frente passa por um carro que estaciona e de onde sai uma mulher. Repara que a mulher está amedrontada com a sua presença, olha em volta, atrasa-se para lhe dar tempo a passar, talvez receie que ele seja um ladrão, um traficante com a sua pastinha, um violador. Muda de passeio para que a mulher perca o medo e, ao fazê-lo, pensa: se fosse acompanhado, ninguém tinha medo, assim, cão sem dono, as mulheres têm medo de mim. A mulher era bonita, transportava uma mala com rodas, tinha um fato que parecia uma farda, talvez fosse hospedeira. Tem vontade de dar meia volta e ir atrás dela, sentir se o seu rasto é perfumado. Ainda hesita mas logo se detém: estás maluco ou quê?

E continua. A seguir ao pequeno jardim, há uma pequena rua, uns quantos prédios velhos, baixos, de dois ou três andares, alguns devolutos, andares vazios, zona a evitar, dizem que por ali param os sem-abrigo, drogados, não sabe. Avança um pouco na rua escura. Tomara não saia daqui algum que ainda me venha roubar, pensa. Mas segue, cauteloso. Por ali chega-se mais depressa ao rio, irá dar uma volta pelo cais.

E então, ao passar por um desses prédios antigos, ouve uma música suave, talvez uma valsa, uma música que parece vir de cima, sai talvez de uma janela. Afasta-se, espreita. As janelas do 1º andar têm as portadas abertas, uma luz amarela, quente, e uma música. Fica ali parado, envolvido, qualquer coisa de electrizante o paralisa. Quem será que ali, àquela hora, ouve aquela música?

A música pára, depois começa outra, agora parece salsa, é mais alegre. Ele ouve, olha a janela iluminada, parece ouvir uns passos, escuta com atenção, a música está baixa mas os passos agora ouvem-se distintamente, acompanham o ritmo. Sente-se arrepiado, uma emoção a crescer dentro dele, a música a invadir-lhe o corpo.

Sem pensar dirige-se à porta do prédio. É uma porta de madeira com um pequeno vidro, uma porta antiga, está apenas encostada. A medo, empurra-a, o prédio cheira a prédio antigo, as escadas são de madeira, e ele sobe, segue a música, está à porta do 1º andar de onde se soltam os acordes da salsa, uns passos, parece que apenas de uma única pessoa. Encosta-se mais, para ouvir melhor. Há luz por debaixo da porta. Treme. É receio, é apetência pelo risco, é um tremor que o empurra.

A música acaba. Uns passos soam. Tenta perceber os movimentos. E, então, movido pela curiosidade, pela vontade de qualquer coisa, encosta a mão à porta. Devagar. E devagar a porta vai-se abrindo, estava apenas encostada.

Fica com a respiração suspensa. Repara no chão que é de soalho, repara no tecto, o pé direito muito alto, uma luz coada, amarela, quente, suave, uma porta que divide esta sala de outra divisão em madeira e vidro, o ambiente é acolhedor, quase surreal atendendo ao sítio que é. E um cheiro a madeira, a cera, a flores, um cheiro a mulher.

E então, da porta de madeira e vidro, sai uma mulher, cabelo apanhado, corpo voluptuoso, ancas fartas, pernas torneadas - e ondula ao andar. Dirige-se ao leitor de cd’s, escolhe uma música, deixa-a começar. Ele está imóvel, não a quer assustar. Treme, o coração bate descompassado. A música começa, ela baixa o volume. Um tango. Deslizando, sensual, ela dirige-se ao centro da sala, vai dançar sozinha.

Sem se deter a pensar, ele despe o casaco e avança também, dirige-se também ao centro da sala. Curiosamente ela não parece estranhar, parece que vai acontecer uma coreografia previamente ensaiada. Como se fosse uma professora à espera do aluno, assertiva, ela diz-lhe que não fale, que não pense e ele pensa: mas eu não ia falar... e, à frente de um corpo destes, quem é consegue pensar...? Não consegue articular palavra, sente o sorriso preso no rosto. A confiança da vida diária sumiu-se. Agora é apenas um homem que apenas pressente que estás prestes a ser submerso. E entrega-se, pensando com a pouca malícia que lhe resta, tão sobressaltado está: seja feita a vossa vontade, minha senhora.

Nesse mesmo instante ele sente que é dela o cheiro, que é dela o cheiro que adivinhou na rua. Apetece-lhe chegar-se, cheirá-la. Chega-se a ela, enlaça-a, e ela faz o mesmo e então começam a dançar um imprevisto tango. E o calor que vem dos seus corpos, a luz coada, a música num sussurro, o cheiro dos seus corpos, a tensão dos músculos em entrega total, é tal que, aos poucos, a proximidade é irreprimível, ela luta, ele procura-a, ela afasta-se, ele afasta-se para logo a recuperar, rodopiam, ela ao colo dele, e, no final, sorriem, quase envergonhados, e a emoção é tão intensa que pensam ambos, sem o confessarem, que uma certeza assim acontece uma vez na vida.




Créditos

1. A ideia deste texto surgiu-me há pouco, a partir  do comentário e da informação do meu Caro Leitor Patrício Branco, no post anterior, a quem muito agradeço.

2. A última frase é uma fala de Clint Eastwood, como Robert, em As Pontes de Madison County, quando sai de casa e se despede de Meryl Streep, como Francesca.


^^^^^^


E, por hoje, é isto. Não me apeteceu falar do défice que parece que vai ser superior, da austeridade que parece que vai ter que aumentar - temas demasiadamente previsíveis.

Hoje apeteceu-me dançar (e quase me apetece escrever dansar, com s, como Sophia o fazia). Hoje apeteceu-se ser une danseuse, une danseuse com palavras voando à minha volta.

*

Aproveitem bem cada pequeno instante, gozem a vida, ouçam música, dancem a sério ou em pensamento.

E tenham uma boa terça-feira!

 

14 comentários:

patricio branco disse...

o defice, sim, a carnificina vai continuar, refiro-me a medidas adicionais a aplicar ao cidadão que estão na calha e já previstas, embora não anunciadas ainda. medina carreira referiu isso ontem no divertido programa feito em cumplicidade com judite de sousa.
Melhor ouvir musica "de la musique avant toute chose" ou dançar, cantar, quem canta seus males espanta.
Boa história que termina na dança, a contada hoje.

Anónimo disse...

Um grande filme! Mas, sobretudo, grandes momentos de dança.
Num outro, "Never Say Never Again", o último em que esse excelente actor (sim, actor e não ator), Sean Connery, desempenhou o papel de James Bond, talvez o melhor da saga, há um passo de dança, com um tango magnífico, em que ele, em vez do dinheiro ganho ao mauzão da fita (num jogo eletrificante, até mesmo no verdadeiro sentido da palavra), prefere dançar um tango com a sua (do mauzão) parceira, a boazinha da fita. Na ocasião, alguns críticos de então,de cá e lá de fora, consideraram essa cena de antologia.
Concedo que um tango bem dançado é de grande beleza estética.
Saber dança-lo bem, já é outra coisa!
P.Rufino

Maria disse...

Jeitinho, amiga
Cansada de uma madrugada a que não estou habituada (*1 exame), enrolada, ensonada, o seu texto fez-me "dansar" como a Sophia, mesmo parada, sem música, o tango voltou, o corpo tremeu e, na minha cabeça, voltou o "Volver", dançado um dia, com alguém,que não lembrava há muito. Tudo tão claro, tão sentido.
Obrigada pelo passeio que me proporcionou.
Beijinho
Maria

A Matéria dos Livros disse...

Bela história, com um desenrolar inesperado, mas muito bem articulado, até ao remate lindo, como esse filme de Clint Eastwood.
O tango também continua muito bem o texto.

Gostei muito

Um beijinho

Um Jeito Manso disse...

Caro Patrício Branco,

Tenho andado sem paciência para falar da desgraceira que é o estado deste País mas hoje estou capaz de voltar ao tema, tamanha a revolta que sinto.

Quanto à pequena história - eu não vi o filme; por isso, não sei quem era nem como ali chegou o homem interpretado por Richard Gere. Mas apeteceu-me inventar um homem que chegasse ali, disponível para o que quer que fosse, e desse de caras com uma mulher que se colocasse nos braços dele.

Às vezes apetece-me criar personagens, recriar situações, inventar pessoas com bons pensamentos e bons sentimentos.

Obrigada por me ter proporcionado a oportunidade, dando-me a dica.

Um Jeito Manso disse...

Caro P. Rufino,

Eu adoro ver dançar o tango e sempre desejei que alguém me conduzisse num belo tango. Já aqui referi que nunca tive essa sorte (mas também já aqui referi que prefiro um coração de ouro com pés de chumbo do que o inverso... por isso, fico-me com um coração de ouro e vou-me confortando vendo ou outros a dançarem o tango).

Não conheço também essa cena que refere do seu gémeo *(gémeo separado à nascença com algum desfasamento temporal) e vou ver se a descubro no youtube.

Há um tango fantástico, malandro, que já aqui coloquei uma vez e que hoje, se calhar vou pôr outra vez. É uma coisa bem ao meu gosto. A versão cantada pouco tem de dança mas gosto imenso da interpretação vocal.



(*- esta do gémeo vem do comentário do ost abaixo)

Um Jeito Manso disse...

Mariazinha,

Continua, então, com a sua maleita, coitada, que pena, estava a pensar que talvez isso já se tivesse resolvido, que chatice.

Ainda bem que 'dansou' um bocadinho, que se distraiu e abstraiu.

Tomara que se ponha boa depressa, coitada, que incomodada se deve estar a sentir.

As suas rápidas melhoras e um beijinho!

Um Jeito Manso disse...

Olá Leitora de A Matéria dos Livros,

Ainda bem que gostou. Eu estava a escrever sem saber como ia conduzir o bonitão do Richard Gere até aos braços da Jennifer Lopez pois estava capaz era de ficar eu com ele... Sempre o achei um giraço, tem um andar que é um gosto de ver.

E que bem que ele ali está, todo entregue ao tango. Que invejinha...

Um beijinho.

Anónimo disse...

Caríssima autora deste Blogue,

Infelizmente, não danço o Tango (o que já tentei não tem semelhança). Já tive quem me tentasse ensinar, mas não resultou. Temi, sinceramente, que pudesse suceder o mesmo a nós ambos (ela e eu) que ao casalinho japonês, dos contos diplomáticos de Lawrence Durrel, que, de tanto dançarem e rodopiarem, foram parar a uma fonte, algures no jardim do "host". Bem sei que naquele conto o parzinho estava algo embriegado, mas, como minha avó costumava, sabiamente, dizer: "menino, quando não sabes fazer uma coisa, é melhor não o tentares, pois o seguro morreu de velho!"
Quanto a conseguir chegar em boa forma, à idade do Sean Connery, concordo inteiramente consigo, a coisa "prepara-se" antes. Cá me vou esforçando!
Este seu Blogue é das coisas mais saudáveis que tenho lido! No meio deste lodaçal (ético) em que este país se vai afundando, devagarzinho, é sempre bom vir até aqui para recuperar energias!
P.Rufino

Um Jeito Manso disse...

Caro P. Rufino,

Então não se ajeita com o tango. Hélas. Mas, também, ninguém é perfeito...

Fico agradecida com as suas palavras. Fico contente quanto sinto que as minhas palavras são apreciadas. A gente quando está aqui a escrever, sem saber quem está do outro lado, corre sempre o risco de ser mal interpretada. Eu, por exemplo, tendo a ser irónica e, nesse exercício, posso dizer coisas que podem parecer a sério mas que, uma inflexão de voz, um meio sorriso, desmascaram e revelam que é apenas ironia. Mas, virtualmente, como sorrir pela metade, como fazer o requebro de voz, não é...?

Quanto á ética, aí, tendo a ser até 'quadrada' - não abro excepções, não me ajeito, guio-me pela minha consciência e pelos meus gostos pessoais. Não sigo partidos, clubes, grupos ou, sequer, religiões.

rosaamarela disse...

Caro P. Rufino, (perdoe-me UJM)

são as frases certas para este blog:

"...é sempre bom vir até aqui para recuperar energias!" ,

melhor ainda,

"Este seu Blogue é das coisas mais saudáveis que tenho lido!"


...

Um Jeito Manso disse...

Gracias, Rosita!

Un besito.

ERA UMA VEZ disse...

Anda definitivamente um ritmo de tango no ar...e já não é de agora...
A 4 de Setembro no Fio de Prumo, um inesperado tango...
Era a nossa Helena a provocar-nos...
E agora a Jeitinho.

Ou será, que perante o cinzentismo e a ameaça dos dias, despertamos especialmente para os "sentidos" e o prazer que nos provocam?

Já tinha passado por aqui. Escrevi uma coisa que me desapareceu debaixo de uma tecla errada.
Dei o assunto por arrumado...mas hoje apeteceu-me cá voltar.

Dois filmes que me tocaram e que antes e depois de tudo nos falam da rotina, dos perigos e das oportunidades.

O "das pontes" ainda hoje me deixa arrepiada.
Quando, debaixo de chuva, tudo se decide, quando aquela mulher adormecida se permite viver um amor tão intenso como inesperado, quando quase abre a porta da carrinha no último segundo do tempo do semáforo, e o sinal a desafiar, e ela a resistir, e a paixão a lutar com a fidelidade...também ali há ritmo de tango... e que tango.

Grande filme para ver, rever e pensar.
E se cada mulher madura,inteligente, fiel, consciente,se perguntasse:
"e se fosse comigo, o que faria?"(Ninguém está a salvo)

Um Jeito Manso disse...

Erinha,

Gostei de ler o que escreveu, relembrando as Pontes de Madison County, tocante história, belissimamente interpretada.

É daqueles filmes que ficam para sempre.

Quanto à pergunta que faz, todas nós assobiaremos para o lado... Como responder? São as circunstâncias, são os intervenientes, é tudo, porque por um lado há a tentação de um mundo por descobrir e, por outro, é a segurança do ninho.

Mas ando numa de tango, sim, de me divertir, de brincar.

A pena é quando acontecem coisas que me impedem. Mas é um dia. No dia seguinte já dei a volta.

Temos que enfrentar o que se está a passar com energia, muita energia positiva, muito humor.

Haja saúde!