Continuo a transcrever de O Chalet da Memória de Tony Judt.
Referindo uma descoberta de Milosz num 'romance obscuro' de 1927 de um tal Witkiewicz, Judt relata: 'Os habitantes da Europa Central que estão perante a hipótese de serem subjugados por hordas asiáticas, não identificadas, tomam um comprimido, o comprimido de Murti-Bing, que lhes tira o medo e a ansiedade; encorajados pelos seus efeitos, não só aceitam os seus novos governantes como estão contentíssimos por recebê-los.'
A seguir, continua Judt, voltando a referir uma outra descoberta de Milosz, desta vez num livro de Gobineau, que descrevia um fenómeno: 'Os que interiorizaram o modo de vida designado por Ketman podem viver com as contradições de dizer uma coisa e acreditar noutra, adaptando-se à vontade a cada novo requisito das suas regras, ao mesmo tempo que creem ter preservado em si mesmos a autonomia dos livres pensadores - ou, pelo menos, um pensador que escolheu livremente subordinar-se às ideias e imposições de terceiros.'
Desta forma, Judt retrata o que ele designa por 'cínicos servidores', os que vivem em estado de 'servidão', os que comodamente afirmam que 'não há alternativa'.
Referindo os que defendem cegamente 'os mercados', ou os que defendem cegamente 'a austeridade', Judt estabelece uma comparação: 'Foi precisamente nestes termos que o comunismo foi apresentado aos seus beneficiários após a II guerra Mundial; e foi por a História não apresentar alternativa aparente ao comunismo que muitos dos admiradores estrangeiros de Estaline foram arrebatados para um cativeiro intelectual'.
Antes, Judt tinha dito: 'A nossa fé contemporânea no 'mercado' segue os mesmíssimos trilhos da sua sósia radical oitocentista - a crença cega na necessidade, no progresso e na História. Tal como o infeliz chanceler trabalhista britânico entre 1929-1931, Philip Snowden, desistiu perante a Depressão e declarou que não valia a pena contrariar as leis inelutáveis do capitalismo, assim os dirigentes da Europa de hoje se refugiam à pressa em medidas de austeridade orçamental para acalmar 'os mercados'.
[Hoje não transcrevo mais para não vos maçar mas há muito mais passagens que gostaria de aqui vos trazer. Talvez amanhã ou outro dia]
Tony Judt nasceu em Londres em 1948 e morreu, o ano passado, em Nova Iorque (no início de 2008, tinha-lhe sido diagnosticada esclerose lateral amiotrófica; um ano e tal depois perdeu os movimentos do pescoço para baixo; daí até à sua morte, prisioneiro dentro do seu corpo, passou a ditar as suas ideias e memórias pois já não conseguia efectuar qualquer movimento). Historiador, especialista em História Europeia, Tony Judt foi professor universitário em várias instituições (Cambridge, Oxford, Berkeley, Nova Iorque), fundador do Instituto Erich Marie Remarque, foi ensaista, investigador, foi galardoado em 2007 com o Prémio Hannah Arendt, em 2008 com o Prémio do Livro Europeu, em 2009 com um Special Prémio Orwell for Lifetime Achievement. Foi até ao fim uma mente livre, uma voz lúcida, um inteligente intérprete da realidade.
7 comentários:
Bom dia e bom domingo,
Trabalha numa empresa pública ou privada? (não responda p.f. foi uma maneira como outra qualquer de começar...) eu trabalho numa privada, grande e familiar.
Empresa onde muito antes do 25 de abril já se respeitavam os direitos dos trabalhadores e onde já existia a estado social...
O patrão agora é neto dos primitivos tal como eu, e acaba de anular via mail a reunião anual dos diretores porque segundo ele no estado em que estão milhares de portugueses não há lugar a viagens de avião através da Europa para um almoço...
Todavia, os quadros superiores da empresa que deviam ser os mais responsáveis, os que deviam ter uma atitude firme perante a situação atual, estão de cabeça perdida e a tomar atitudes totalmente impensáveis há uns meses atrás....
Dê-me um abraço por favor PRECISO MUITO.
Rosa Amarela,
Nestas alturas não é difícil ficar-se de cabeça perdida. O dinheiro escasseia nas empresas, a tesouraria passa por momentos de estrangulamento e os bancos já não estão lá para ajudar tão facilmente como antes.
As empresas, algumas pelo menos, estavam habituadas a uma gestão 'flauteada', podiam investir facilmente, podiam dar-se 'ao luxo' de despesas com as quais hoje dificilmente podem arcar.
Não é fácil, de um momento para o outro, dar a volta à maneira de estar, tornar-se austero. Uns conseguem-no, outros nem fazem ideia do que isso é. São alturas, estas, de alguma perturbação.
O que aconteceu na sua empresa, de cancelarem o encontro anual, está a acontecer um pouco por todo o lado, não se admire.
O que temos que esperar (e ajudar nesse sentido) é que quem tem a responsabilidade de tomar decisões, as tome em consciência e com as contas bem feitas, que consiga aguentar o embate e que, ao mesmo tempo, consiga tranquilizar as pessoas.
Haveremos de sair desta, Rosa Amarela!
Um abraço e um beijinho. E vá sorrindo que, com alegria e boa disposição, os maus momentos atravessam-se melhor.
Cara Rosa Amarela
Faço consultoria económica e financeira, entre muitas outras coisas que também faço.
Levanto-me todos os dias às 7h da manhã e às oito quando não tenho aulas, radio ou televisão, estou sentada em frente do computador. Deito-me por volta da uma e meia.
Trabalho desde os 13 anos - data em que comecei a dar explicações - e até hoje não parei mais, apesar de ter mais que direito a descansar.
No entanto, acho que tenho o dever de trabalhar.
E garanto-lhe que todos os dias oiço palavras semelhantes às suas nas empresas que assisto e tenho a certeza que só com muito trabalho é que vamos sair desta e não com paninhos quentes. Vamos mesmo ter que voltar a perder direitos que nos foram dados, sem que produzíssemos o que seria necessário para os receber.
Já passámos historicamente períodos muito graves, e aguentámos. Vamos sair deste também, acredite!
Helena,
Que contente fiquei por ler este seu apoio solidário à Rosa Amarela, fiquei mesmo contente, não imagina.
É que há uma coisa que é certa: podemos, uns e outros não ter a mesma visão sobre as causas dos problemas e sobre as curas, podemos não estar todos alinhados no rumo, mas não duvidemos - quem ama o país com alma e coração não verga nos momentos difíceis.
Há uma crise brava, ninguém o nega, mas que ninguém desanime, que ninguém baixe os braços. A hora é de nos apoiarmos uns aos outros, de trabalharmos, de termos coragem, de termos ânimo.
Eu, aqui, mil vezes me atiro contra aquilo com que não concordo, refilo, invectivo, quase praguejo.
Mas para a frente é que é caminho e se o que defendemos é a sobrevivência das empresas e do país, então tenhamos a moral em cima, tenhamos vigor, tenhamos resistência, paciência, e vamos em frente, trabalhemos, lutemos, sempre, até sairmos desta.
O seu exemplo e as suas palavras são um incentivo e a Rosa Amarela senti-las-á certamente como o forte abraço que pediu.
Muito obrigada por este seu gesto, Helena.
Mt obg às duas.
Sinto-me abraçada.
De nada, Yellow Rose. Um beijinho!
Creia Rosa que a abraço ternamente e, confesso-lhe, depois das rosas purpuras da paixão, as amarelas são as que mais gosto!
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