terça-feira, outubro 25, 2011

Hoje não tenho paciência para esta crise que nos corrói a alma e, por isso, ao som de Let it Rain pela Tracy Chapman, os meus últimos livros posam para mim, as mulheres posam para Richard Avedon e desfilam numa fantástica metamorfose em Women in Art ao som de Bach


De vez em quando, dá-me uma neura contra esta gente toda que ao longo de décadas deu cabo do país e que para aí anda, armada em moralista, enquanto recebe na conta bancária a subvençãozinha ou que parqueia as suas empresas em offshores ou em países em que a carga fiscal é mais favorável, contra estes rapazolas todos que para aí andam nas televisões e nos blogues a alardear sound bites sem saber do que falam, sem terem quaisquer conhecimentos sobre dados básicos que são essenciais para formar opinião. Uma poluição mental que me enerva.

Já se admite que não faltam nem 20 anos para que não haja dinheiro para reformas, toda a gente já dá como adquirido que, na administração pública, subsídio de férias e natal, viste-los; fazem-se as contas e vê-se que o dinheiro da troika não vai chegar e que, no final do programa, com esta austeridade que vai sugar a sociedade portuguesa até ao tutano, estaremos piores do que estávamos antes. Empobrecemos um pouco mais todos os dias e o pior está para vir. E eu, que pensava que andava a trabalhar para garantir o meu futuro e que estava tranquila quanto ao futuro de filhos e netos, vejo agora, com aflição, que afinal o mundo em que eu pensava que vivia, ruíu - e parece não haver quem perceba que a trajectória que está a ser seguida é ruinosa, trágica.

Mas hoje não quero maçar ninguém com isto.

Nem quero maçar-me a mim própria.


Música! maestro.



E, vai daí, peguei nalguns dos meus últimos livros comprados, pu-los em pose para a fotografia e eis que aqui estão eles, todos aprumadinhos para as visitas.

Os meus mais recentes livros e - desculpem lá a parvoíce - as minhas últimas écharpes
[O que é que as écharpes estão ali a fazer? - perguntarão vocês
Não faço ideia, mas gosto muito de livros (e de écharpes também)]


Passo então a relatar-vos, mostrando-vos um bocadinho da primeira página. No caso do poema, escolhi o poema 'Fotografia do Porto' para mandar um abraço aos meus leitores desta bela cidade:


Barbara Kingsolver - Lacuna  (Vencedor do Orange Prize 2010, Finalista do Pen/Faulkner Award)

'No princípio eram os uivadores. Começavam sempre os seus bramidos às primeiras horas da manhã, quando o horizonte começava a clarear. (...) Tal como era no início, assim é todas as manhãs do mundo.


Ali Smith - Amor Livre e outras histórias (Prémio Saltire para o Primeiro Livro em 1995)

'A primeira vez na vida que fui para a cama com alguém foi com uma prostituta em Amesterdão. Eu tinha dezoito anos e ela chamava-se Suzi, suponho que não era muito mais velha que eu. (...) Eu tinha andado a pedalar toda a tarde, sempre sozinha.'


Italo Calvino - Os amores difíceis

'No compartimento do comboio, ao lado do soldado de infantaria Tomagra, veio sentar-se uma senhora alta e formosa. Uma viúva provinciana, é o que devia ser, a julgar pelo vestido e pelo véu: o vestido era de seda preta, apropriado para um luto prolongado, mas com guarnições e laços inúteis, e o véu passava-lhe em volta do rosto caindo-lhe de um pesado chapéu de tipo antiquado. Havia mais lugares livres no compartimento, notou o soldado de infantaria Tomagra; e pensou que a viúva iria escolher um deles; afinal, apesar da rude vizinhança dele, soldado, ela veio sentar-se ali mesmo.


Penelope Fitzgerald - A Livraria (Vencedora do Booker Prize)

'Em 1959, Florence Green passava de vez em quando uma noite em que não sabia com toda a certeza se dormira ou não. Tal devia-se às suas preocupações sobre se devia comprar a Old House, uma pequena propriedade com armazém próprio na primeira linha de praia para abrir a única livraria de Hardborough.


Rita Ferro - A menina é filha de quem? (romance autobiográfico)

'(...) Fui a única a nascer de parto natural. Como resultado esterilizei a minha mãe. Talvez tenha sido uma benção para ela. Talvez tenha sido o meu primeiro estigma. Na vida é tudo talvez e por isso me mantenho em prova. tudo o que escrevo neste livro é verdade e o que for também o é. Foi assim que fui habituada: a acreditar em mentiras. Boas, magníficas mentiras.'


Alice Vieira - Os Profetas

'O que ides ler não é invenção de espírito cansado ou desejoso de vingança. Não guardo rancor a ninguém. Juro que tudo o que aqui deixo escrito é a mais verdadeira das verdades. Nada inventei, nada conto por me terem contado - a não ser o que ouvi da boca de homens sábios. Não conspirei, não denunciei, não testemunhei falso, não entreguei ninguém às fogueiras da Inquisição. De nada me arrependo. E agradeço com igual fervor aos que me fizeram descer aos infernos como aos que me ajudaram a vislumbrar as portas do paraíso.


José Saramago - Clarabóia

'Por entre os véus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir rumores de loiça mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos véus. Ia aborrecer-se, mas percebeu, de repente, que estava acordando. (...) Tinha o tronco forte, os braços grossos e duros, as omoplatas revestidas de músculos encordoados. Precisava desses músculos para o seu ofício de sapateiro. As mãos, tinha-as como petrificadas, a pele das palmas tão espessa que podia passar-se nela, sem sangrar, uma agulha enfiada.'


Julian Barnes - Arthur & George (Finalista do Booker Prize 2005 e do International IMPAC Dublin literary Award 2007)

'Uma criança quer ver. Começa sempre assim, e então começou assim. A criança queria ver. Já andava e conseguia chegar ao puxador da porta. fazia-o sem qualquer tipo de finalidade, era o mero instinto turístico da infância. Havia uma porta para empurrar; ele entrava, parava, olhava. Não havia ninguém a observá-lo; voltava-se e saía, fechando cuidadosamente a porta atrás de si. O que ali viu tornou-se a sua primeira memória. (...) Quando a descreveu publicamente, sessenta anos haviam passado.'


Dulce Maria Cardoso - O Retorno (...e uma bela encadernação)

Mas na metrópole há cerejas. cerejas grandes e luzidias que as raparigas põem nas orelhas a fazer de brincos. Raparigas bonitas como só as da metrópole podem ser. As raparigas daqui não sabem como são as cerejas, dizem que são como as pitangas. Ainda que sejam, nunca as vi com brincos de pitangas a rirem-se umas com as outras como as raparigas da metrópole fazem nas fotografias. A mãe insiste para que o pai se sirva da carne assada. A comida vai estragar-se, diz, este calor dá cabo de tudo, (...)'


Ines de Fressange - La Parisienne (...e uma bela, elegante encadernação)

'Il n'est pas nécessaire d'être née à Paris pour avoir le style de la Parisienne. J'en suis le meilleur example: j'ai vu le jour à Saint-Tropez! Avoir l'attitude made in Paris est plus un état d'esprit. Être rock et jamais bourgeoise par example. La parisienne ne tombe jamais dans la piège des tendances: les laisser infuser et s'en servir à bon escient, voilà sa recette secrète! Et garder toujours un objectif: s'amuser avec la mode. elle suit quelques règles, mais aime bien les transgresser aussi, ça fait partie du style.'


José Luís Peixoto - Gaveta de Papéis (Prémio Daniel Faria 2008)

O Porto é uma menina a falar-me de outra idade.
Quando olho para o Porto sinto que já não sou capaz
de entender a sua voz delicada e, só por ouvir, sou
um monstro que destrói. Mas os meus dedos são capazes
de tocar-lhe nos ombros, de afastar-lhe os cabelos.
Entre mim e o Porto, existem milímetros que são
muito maiores do que quilómetros, mesmo quando
os nossos lábios se tocam, sobretudo quando os nossos
lábios se tocam. De que poderíamos falar, eu e o Porto,
deitados na cama, a respirar, transpirados e nus?
Eis uma pergunta que nunca terá responta.

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E agora, em homenagem às bravas mulheres que lutam diariamente para sobreviver, para tomar conta da casa e da família, que conseguem progredir profissionalmente e que não abdicam da sua feminilidade, aqui vos deixo uma fotografia e um pequeno clip.


by Richard Avedon

<>

E agora para todos os homens que gostam de mulheres e, em especial, para todas as mulheres que, tal como eu, adoram ser mulheres, uma fantástica sucessão de rostos de mulheres na arte de todos os tempos.





Tenham um belo dia!

 

9 comentários:

packard disse...

Na política antes fosse também o "talvez" da Rita Ferro q cita, agora é mais q certo a procissão ainda ir no adro.
Um dia feliz!

Tété disse...

Obrigada por tudo o que reparte connosco.
Lê-la é um gosto porque consegue sempre transmitir nas suas palavras os seus pensamentos e sentires.
Também me dá uma grande neura os acontecimentos deste país mas ao mesmo tempo e quanto ao futuro embora devamos ser sensatos, estou a ver se me convenço a não me preocupar em demasia ou ainda corro o risco de me dar um "fanico" e depois já nem sei se estou cá ou não.
E eu que gostava tanto de ter sanidade mental para ver crescer o meu neto .
Grande abraço.

ERA UMA VEZ disse...

Só não me digam que também tenho culpa

apenas porque sonhei diferente
apenas porque empoleirei a minha filha num carro de combate
oferecendo um cravo a um soldado
ali na nossa frente
também ele sorrindo
também ele feliz
vestido cor de azeitona
tão igual ao homem que esperei
e abraçei no cais
cansado de guerra

Só não me digam que também tenho culpa

apenas porque cantei com lágrimas nos olhos
cantares de amigo
apenas porque quis, como quis
ser parte dessa multidão ansiosa por um outro país

só não me digam que também tenho culpa

porque entendi o Zeca
e a sua pureza
porque me desencantei com quase todos
porque não aceitei os excessos
porque não entendi
quando se dizimou tudo a troco
de dinheiro
quando ele passou a abafar ideais e emoções
quando voltou a estar primeiro

não não tive culpa
porque tudo o que construí a dois
foi trabalho, foi suor, algumas lágrimas
porque tenho as contas todas feitas
porque trabalhei fora e dentro
e quando foi preciso carreguei a minha cruz...

não não sonhei demais
porque tudo o que tenho e não é muito
é a minha gente e o meu ninho
onde vivo
e amo
e escrevo e aparo as buganvílias

onde só eles
os desavindos
todos os corruptos
de todas as cores
de todas as décadas
de todos os enganos
não são bem vindos

só não me digam que também tenho culpa

Um Jeito Manso disse...

Packard,

Vamos empobrecendo já o Primeiro assume e gostava de ser câmara (antes câmara que mosca, não é?) para ver o que aquelas almas há tanto tempo discutem no Conselho de Estado... Que chatice tudo isto, não é?

Obrigada pelos votos de dia feliz. Gosto de me desejem isso.

Um Jeito Manso disse...

Olá Teresa-Teté,

Sempre tão simpática nas suas palavras. São um incentivo.

Concordo que devemos ser lúcidos (e, portanto, preocupar-nos) mas deixando sempre de fora o que, em nós, é essencial para a nossa qualidade de vida, sobretudo a nível de sanidade mental.

Por isso é que eu, volta e meia fujo do diabo da crise e me viro para a dança, os livros, a fotografia, para coisas que me descontraem, me 'elevam', me levam para longe destes dias de chumbo e incerteza.

Também eu me quero manter jovem de espírito e bem disposta para acompanhar os meus (já - ou ainda...?) três pequeninos que adoro.

Um abraço para si, Teresa-Teté.

Um Jeito Manso disse...

Era uma Vez,

Fico emocionada com as suas palavras e com a sua generosidade e talento. Muito obrigada por tão inspiradamente enriquecer o Um Jeito Manso com as suas sentidas palavras.

Percebo-a tão bem.

Trabalhamos, tentamos fazer tudo bem feito, pensamos que está tudo bem, que o futuro será o corolário de um passado e presente correcto, sem mácula, de trabalho e bom comportamente cívico e, quando damos por ela, o mundo virou-se do avesso e, de repente, somos tratados como gente pouco dada ao trabalho que merece ser castigada.

Não sei bem como manter a serenidade e a confiança que sempre deram forma à minha maneira de ser, não sei bem o que aconselhar aos mais novos, acho que não sei bem como chegámos a este ponto.

Mas sei, isso também sei, que eu não tenho culpa de nada disto.

De resto, as buganvílias agora estão floridas e que belas cores emprestam a este outono, não é?

Agradeço-lhe uma vez mais as suas visitas e os presentes que me traz.

Um beijinho.

ERA UMA VEZ disse...

Obrigada pelo seu carinho.
E o que eu gosto de écharpes...

Helena Sacadura Cabral disse...

Jeitinho Manso
Nestas andanças da blogosfera descobri Mulheres. Apraz-me destacar hoje a Jeito Manso, a Isabel BP, a Tété, a Isabel Seixas, a Maggie Pereira, a Ivone Costa, a Helena Oneto, a Julia Macias- Vallet. Noutro dia destacaria mais outras.
Mas estas têm um fio condutor que as faz desaguar num mesmo rio.
O post de hoje e os comentários honrar-me-iam muito se fossem meus. Por isso só posso dizer subscrevo.
Agora os livros, que são, afinal, o que sempre nos vai lavando a alma. Da lista da dona deste blogue, já cá cantam alguns. A saber: Rita, Smith, Calvino, Alice, Barnes e ainda a MªJoão Lopo de Carvalho e o Mário Zambujal.
Écharpes:adoro. Sobretudo aquelas que, 20 anos depois, ainda conservam o cheiro do perfume perfume da minha Mãe.
Lenços de pescoço: um muito especial. O primeiro presente que o pai dos meus filhos me deu e que ponho, todos os anos, no dia 9 de Junho, data em que me casei com ele. Ainda está ali para as curvas. Umas vezes na cintura, outras ao pescoço, outras ainda como top.
E é tudo um pedacinho de mim!

Um Jeito Manso disse...

Querida Helena,

Muito me honra a companhia em que me põe. Das que também se cruzaram já comigo só tenho a agradecer que se tenha lembrado de me colocar junto delas.

As suas palavras tocaram-me mesmo, muita simpatia da sua parte.

Partilho o seu gosto pelos livros, são companhias, são fontes de conhecimento, são um prazer. Mas são como as crianças...desarrumam-se de uma maneira, ocupam a casa, estão sempre nos cantos mais inesperados. Aqui tenho-os por cima desta mesa, quase que só tenho um buraquinho para o computador, invadem-me os espaços. Mas já sabe como é: a gente perdoa-lhes tudo.

E écharpes também...? Eu adoro. Tocar-lhes, macias, de todas as cores, o cair. Uso-as como adorno, como agasalho, adoro usar écharpe.

E fico contente por ver que a Helena conserva a capacidade de seduzir, de encantar, de agradar. E de recordar de forma tão franca, tão 'por cima'. O seu lenço de 9 de Junho deve ter um perfume muito especial, o toque amoroso das boas recordações.

Um beijinho para si, Helena.