Saio de casa e, no curto espaço que medeia até ao carro, aproveito para respirar bem. Geralmente, só voltarei a andar ao ar livre cerca de 10 horas depois.
No percurso até ao trabalho, faça sol ou chuva, tento levar a janela tanto quanto possível aberta, não usar o ar condicionado. Contudo, nem sempre é possível.
Passado algum tempo, às vezes muito tempo, chego ao meu destino, uma zona agradável, bem arranjada, e desço, de carro, até às catacumbas do edifício. A partir desse momento comecei a abrir cancelas, a fazer mover o elevador e a abrir portas com um cartão que reconhece que tenho permissão para tal.
Das catacumbas, no interior da terra, subo então de elevador até ao andar onde se encontra o meu gabinete.
É um edifício moderno, eficiente, inteligente, todo de vidro, alguma pedra, aço. Por dentro, as instalações são muito agradáveis, abertas, brancas, sem paredes excepto as dos gabinetes individuais, e essas são transparentes, prevalece o vidro, as superfícies são lisas – o arquitecto pretendeu, e conseguiu, um aspecto clean.
Estou, pois, rodeada por vidro transparente, vejo a rua, o verde das copas das árvores lá em baixo, nas ruas. Essencialmente por questões de eficiência energética o edifício não tem janelas, ou melhor, é como se existissem, são grandes superfícies de vidro a toda a altura da parede, mas nada abre. Apenas respiramos ar condicionado.
Às vezes, acontece vermos passar algumas cordas do lado de fora. Passado algum tempo, temos uma visão assustadora. Aparecem duas pernas que surgem do nada. Como já sabemos do que se trata não imaginamos que foi alguém que se tenha enforcado ali ao nosso lado. Passado um bocado descaem mais um pouco e aparece o corpo todo. Estão vivos e são alpinistas que lavam os vidros. Podem estar a menos de 1 metro de nós, apenas o vidro transparente nos separa mas desenvolveram a técnica de não nos olharem. Temos dois homens pendurados junto à nossa janela (já aconteceu aparecer uma mulher), estão virados para nós mas é como se fossemos invisíveis. Fazem o trabalho, com uma destreza mecânica e deixam-se descair até ao andar de baixo. Hoje um dos rapazes tinha um complexo penteado rasta, dezenas de torcidas que lhe chegavam ao meio das costas, já nem parecia cabelo, apenas cordas secas e desfiadas, com aspecto de estar assim enredado há anos, já sem salvação possível, só mesmo cortando. O outro era muito franzino, óculos, custava a perceber como tinha força para andar naquelas ginásticas e como é que os óculos se aguentavam presos à cara.
À hora de almoço, desloco-me outra vez até às entranhas da terra, meto-me no carro e vou almoçar. Geralmente levo o carro até ao parque subterrâneo de uma superfície comercial, subo ao restaurante, aproveito para conviver com alguém de fora do ambiente profissional (gosto de espairecer, cansa-me falar de trabalho ao almoço), faço compras, vou à livraria, vou ver em que param as modas. Apenas ar condicionado.
Depois de almoço, volto de carro, desço às profundezas, subo até à torre de vidro e ali permaneço, enclausurada. As salas de reunião não dão para a rua, tudo luz artificial, mas brancas, perfeitas, e eu tantas vezes ansiando por poder abrir uma janela, sentir o perfume de relva cortada, de flores - mas infelizmente não há como. E, assim, durante o dia, estou em perfeita sintonia com o espírito do edifício: sou executiva, eficiente, condicionada.
Até que, depois de um dia de mails, telefonemas, power-points, reuniões, planos, pontos de situação, coordenação, decisões, contemporizações, mediações e outras coisas do género, volto a descer às profundezas, entro no carro e, por uma estreita e íngreme espiral, subo à superfície, tudo sempre com cartão, para me inserir numa longa fila e vir quase sempre em pára-arranca até casa.
Desesperada por ar livre, anseio, nessas alturas por ir para a rua, caminhar, respirar a maresia, o fresco do rio, fotografar tudo, o mar, o céu, os barcos que chegam, os barcos que partem, os que passam, e, sobretudo, as pessoas, as que estão juntas, as que estão sós, as que andam, as que olham.
Hoje não foi um desses dias mas aqui na minha sala abro a janela e posso respirar um ar imenso que passa pelo Tejo,
Hoje ao chegar a casa, o Tejo, magnífico, e uma gaivota a cruzar os céus |
um ar que sobrevoa Lisboa,
Lisboa, a bela, luminosa, hoje sob uma luz dourada de fim de dia |
que corre até à margem sul até à serra de Palmela,
A sul, os braços do Tejo, até à serra |
e me leva, na volta, a ser abençoada pelo Cristo Rei.
Quase noite e o Cristo Rei a abençoar o eclipse lunar que não tardava |
Deixa-me encher bem os pulmões…! O que eu gosto de grandes espaços, de ar livre…! O que eu gosto de liberdade!
2 comentários:
Boa noite!
É a primeira vez que visito o seu blogue. E felicito-a porque gostei bastante.
Como cheguei até Um jeito manso?
Num comentário que fez num blogue de uma Senhora que eu muito admiro, deixou um "convite", enviou o link para caso tivesse tempo e vontade de ver.
As suas palavras não me foram dirigidas mas, fiquei com vontade de ver o link e... ainda bem!
Imagino o quanto deve desejar que chegue o final do dia para usufuir da bela paisagem que tem de sua casa.
Foi um prazer estar aqui e provavelmente voltarei.
Isabel
Olá Isabel,
Muito obrigada pelas suas palavras. Fico sempre contente quando tenho algum feedback.
Estou neste momento a actualizar os blogues (este e o outro da poesia e o da fotografia - se quiser chega lá a partir deste, tem fotografias com os links) pois só a esta hora consigo chegar à sala e, enquanto estamos a ver televisão, estou eu a dar largas ao meu gosto por escrever.
De facto, quando chego a casa só me apetece mudar de roupa e ir andar a pé (hoje consegui!) e, se não for possível, abrir as janelas, respirar a largueza dos ares, tenho uma vista fabulosa, linda de dia ou de noite, com bom ou mau tempo.
Volte sempre.
PS: A Laurinda é, de facto, alguém com uma força excepcional, com uma energia contagiante. Oxalá o filho se ponha bom rapidamente.
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