Para que fique bem clara a minha opinião:
i) uma violação sexual é um crime grave e, como tal, duramente condenável;
ii) para condenar existem os tribunais.
Tenho muita dificuldade em embarcar no judicialismo popular reinante, especialmente o que é servido envolto em conservadorismo moralista como o que é cultivado nos EUA .
O presidente dos EUA (Nobel da Paz, por ironia) manda abater a tiro dentro da sua própria casa uma pessoa (um criminoso, é certo, mas uma pessoa ainda assim) e toda a gente aplaude. O jogador de golfe mais bem pago do mundo comete adultério e vem a público pedir perdão, perde patrocínios e faz-se internar numa clínica como se fosse um delinquente e toda a gente acha isto normal. Um anterior presidente dos EUA tem um affaire com uma estagiária e, porque a menina resolve contar tudo à mãe (que a aconselha, just in case, a não lavar o vestido), a uma amiga e depois a toda a gente, vê-se sujeito a toda a espécie de humilhações públicas e não é deposto por um triz e toda a gente acha isto normal. Mas, a mim, isto incomoda-me. É, nas suas diversas vertentes, uma justiça popular primária que me incomoda muito.
Não é apenas moralismo, puritanismo: é um exacerbamento da culpabilidade como um motor para a ética social. E é a comunicação social a servir de suporte à divulgação do 'crime', da expiação da culpa, do castigo e somos nós, expectadores passivos, em casa, a assistir deleitados - como em tempos a multidão se aglomerava a aplaudir os devorados, os espancados, os crucificados, os queimados.
E esta prática vai ganhando terreno, vai-se entranhando, e, à mínima notícia, quase toda a gente veste a toga de juiz e, mesmo sem culpa formada, começam a sair as sentenças. E daí à aplicação sumária da pena vai um ai.
Devo dizer que me custa muito ver uma pessoa que, até um dia, é vista como uma pessoa respeitável, e, no dia seguinte, ser exibida perante os olhos do mundo inteiro, como se fosse um vulgar criminoso.
Algemado, de mãos atrás das costas, os braços agarrados pela polícia, Dominique Strauss-Kahn entrou-nos pela casa dentro com a imagem de um homem humilhado em público.
Nenhum de nós, creio eu, sabe o que se passou.
Pode até acontecer que o que se passou tenha sido apenas o que se relatou: saíu do banho nu, convencido que não estava ninguém no quarto, deu com uma camareira que não sabia que o hóspede ainda estava no quarto, achou-a apetecível, excitou-se com a situação, habituado a tudo poder esqueceu-se de validar se a excitação era recíproca, perdeu o decoro e a noção dos limites, e, qual touro desembolado, agarrou a mulher e a recusa dela ainda mais o excitou, e a partir daí foi o que se relatou - até que ela fugiu e o denunciou.
Pode ter sido isto, ou pode isto ter sido potenciado pelo facto de a mulher ter percebido que lhe tinha saído a sorte grande, ou pode ter não ter sido nada disto.
Cabe às instâncias de justiça recolher provas, ajuizar, julgar. Mas, a bem da dignidade humana, era desejável que o fizesse sem moralismos absurdos e, preferivelmente, sem divulgação pública.
É um caminho perigoso este de nos ser dado a ver imagens de quem, ainda sem culpa provada, por actos da sua vida privada se vê devassado, destruído. É um caminho perigoso este que nos leva a deliciarmo-nos, devorando em vida aqueles que os media nos servem de bandeja; é um caminho perigoso este que nos leva a salivarmos de uma vingança invejosa e mesquinha quando vemos os 'ricos e poderosos' expostos, frágeis, humilhados.
A democracia tem como fundamentos a liberdade e a separação de poderes, de que a justiça independente é um pilar essencial - nunca nos esqueçamos disso.
Não sou dada a teorias da conspiração mas, antes de atirarmos pedras sem saber com exactidão o que aconteceu (e não esquecendo os seus antecedentes de perigoso 'garanhão'), pensemos também um pouco no seguinte:
i. DSK vinha dizendo, de há cerca de um mês para cá, que temia que lhe armassem uma cilada sexual
ii. DSK era o mais forte candidato à Presidência francesa, como candidato socialista (numa época em que os chauvinismos e a direita mais radical ganha terreno)
iii. DSK vinha sendo alvo de campanhas negras, justamente por parte dos sarkozyanos e dos pennistas (o porsche que nem era dele, os fatos caros, as casas em bairros caros, por exemplo)
iv. DSK vinha sendo fortemente contestado no FMI por ser adepto da linha branda de apoio; ao contrário da linha liberal (dos americanos, entre outros) que defende que as nações devem ir mesmo à banca-rota, DSK defende o apoio, através de financiamentos e apoio à reestruturação com vista a que as nações reganhem competitividade
v. Esta segunda feira, na primeira reunião do Ecofin, sem DSK à frente da delegação do FMI, a linha liberal acentuou as suas posições e a própria Angela Merkel começa a temer a força que essa linha, muito contrária à de DSK, muito contrária aos princípios europeus, começa a manifestar.
Pensam: "que disparate", "quem é que ia armar uma coisa destas para correr com ele?", "essas coisas não existem". Mas, vejam: fez-se a guerra do Iraque com base em provas totalmente forjadas. De ciladas está a história cheia. Dominique era um homem poderoso, um alvo a abater - e muito fácil de abater pois tinha um ponto demasiado frágil, a sua perdição, a sua tara por mulheres.
Não obstante, se nenhuma destas suspeições tiver razão de ser e se for comprovadamente culpado de violação, então que, obviamente, seja condenado. (... mas 74 anos de prisão?!).
1 comentário:
há aqui um questão de escala e de hierarquia de valores e não podia estar mais de acordo com o q escreveu. aliás, um tipo q congemine mentirosamente um ardil q justifique uma guerra, seja responsável pela morte de milhares e milhares de inocentes, acaba por viver na pacatez de um rancho do texas. é essa dualidade q me indigna na justiça norte-americana. independentemente de pensar, caso se venha a provar, ter dsk procedido mal, muito mal.
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