Um rapaz, um dia, tem uma ideia peregrina.
É um rapaz normal, apenas um pouco tímido, introvertido.
Sabe que essa sua ideia não merecerá a aprovação dos outros e, então, começa a prepará-la em segredo.
A ideia aparentemente é simples: quer ter um animalzinho só seu, tratar dele, torná-lo dependente de si. Mas que ninguém saiba, para não o dividir com ninguém. É habilidoso: às escondidas, constrói uma casota num local recôndito da cave, esconde a entrada, engendra uma forma de o ar lá chegar. Como gosta de estar sozinho, ninguém estranha o tempo que leva nessas tarefas.
Durante algum tempo anda absorvido a arquitectar a forma de arranjar o seu bicharoco até que pensa que o melhor é descobrir um na rua, roubá-lo, levá-lo à socapa para casa, escondê-lo.
E assim faz: arranja um ainda pequenino, cria-o, faz-lhe às vezes a vontade, castiga-o outras vezes, molda-o.
Durante anos consegue que ninguém descubra. Duas vezes por dia, isola-se e desce ao abrigo para o alimentar.
O bicho cresce, domado, habituado ao isolamento, conhecendo-o só a ele - e ele, dono e senhor, começa, aos poucos, a conceder pequenas liberdades mas sempre com exigências (e torna-se violento umas vezes, dependente, outras). Tem ali a sua companhia, a sua cria, o seu vício.
Mais coisa, menos coisa foi isto que Wolfgang Priklopil fez, quando em 1998 raptou uma menina de 10 anos, Natascha Kampusch, e a manteve em cativeiro durante 8 anos.
A história, contada na primeira pessoa por Natascha, é surpreendente. Escrito de forma escorreita, coerente, revelando uma personalidade muito forte, o relato permite-nos conhecer a mente de um ser perturbado - que se suicida quando um dia Natascha arranja coragem para fugir - que, ao longo de 8 anos, conseguiu fazer uma vida normal, nunca levantando desconfianças, tendo dentro de casa uma menina que, nesse período, cresceu e se fez mulher, sem que alguém, alguma vez, suspeitasse do que quer que fosse. Nos últimos tempos já a levava à rua, às compras, até a levou a esquiar, na tentativa de, com ela, formar uma família normal.
A natureza humana por vezes assume formas estranhas e nem sempre evidentes.
Wolfgang que, na sua vida privada, era por vezes brutal, violento, agredindo Natascha ou privando-a de luz e de comida, outras, amarrava-se a ela para que nela se pudesse aninhar.
E nunca ninguém percebeu o que se passava naquela casa, nem a sua mãe que lá passava o fim de semana, nem familiares que viviam na casa contígua.
Tão surpreendente como isso é a tremenda força anímica, o feroz instinto de sobrevivência, a inteligência fantástica de uma criança que, isolada, maltratada, consegue manter a sua fibra, manter a sua vontade, por vezes até manipulando o seu raptor (por quem, por vezes sente piedade e preocupação).
Dá também que pensar nos erros da investigação: a casa em que o raptor vivia com a sua cria era perto da casa da menina, era perto de tudo. A carrinha que usou para o rapto e que foi referida por uma testemunha estava à vista de toda a gente. Não levaram a séro alguns indícios, desistiram facilmente.
Outro aspecto que Natascha refere é a reacção de todos perante a sua evasão, perante a sua firmeza na condução da sua vida. Ela tem sentido hostilidade e esta sua nova vida também não tem sido fácil. Mas aqui está o seu livro.
Pode parecer uma heresia mas eu acho que não é. Não sabemos o que vai ser a vida de Natascha mas, como pessoa, Clarice Lispector também foi uma criatura diferente, fantástica. |
Chama-se 3096 dias saíu em edição portuguesa em Janeiro deste ano e revela a extraordinária raça de Natascha Kampusch.
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