terça-feira, fevereiro 08, 2011

A relevância do homem consoante a perspectiva - de rei na sua casa a um invisível ponto na paisagem

: Fractal 1 :

(Prédio antigo. Um homem espreita na janela inferior à direita)

Sou um homem dentro da minha casa. Aqui é o meu reino, aqui eu sou o rei.

Estou reformado mas, enquanto trabalhei, trabalhei no duro. Turnos, sonos desencontrados, condições difíceis, soldadura, altas temperaturas, produtos perigosos, ambientes fechados, quantas vezes quase sem luz, quase sem ar para respirar. Mas nunca me recusei. Toda a gente sabia que, para os trabalhos que ninguém mais queria, podiam sempre contar comigo.

Agora vivemos da minha reforma, não é muito mas faço bem as contas, assento tudo o que se gasta, não vamos ao café, não compro jornais, à praça vamos a pé, não há um tostão mal gasto. Temos muito cuidado com a alimentação, comemos pouca carne porque é cara e porque agora parece que faz mal; sempre que o tempo está bom vou ali abaixo à pesca, o peixe é uma ajuda no orçamento familiar e faz bem à saúde. Nem quero pensar se um dia falto cá em casa, sou o sustento da família e a ajuda da minha mulher, que já lhe custa muito a andar e a lidar.

Faço os arranjos cá em casa, ajudo a minha mulher nas limpezas e até passo a ferro, quase não tenho tempo para me sentar a ver televisão.Também gosto de ver a rua mas não me ponho de janela aberta, não quero que pensem, olha lá está aquele sem nada que fazer, não, gosto de ver mas não gosto que me vejam.

Vejo na rua uma mulher que fotografa os prédios, deve ser uma turista, não me vê mas eu estou a vê-la.


: Fractal 2 :

(Pescador solitário num dos cais do Ginjal)

Estou à pesca. Venho para aqui porque não está mais ninguém. É mais longe e já me custa andar tanto para aqui chegar, com a cana, o cesto, o balde, os trapos, a bucha. Mas não tenho que repartir o peixe com os outros e o peixe dá muito jeito lá em casa, ou frito, ou de caldeirada, ou cozido. Grelhados já não faço.

Podia ficar ali mais perto de casa mas faço o sacrifício e venho para aqui. Mais perto, logo ali a seguir aos barcos de Cacilhas, junta-se muita gente, agora até brasileiros para lá vão, e conversam muito uns com os outros e eu não gosto de falatórios e as linhas quase se enleiam de tão perto que às vezes estão.

Aqui não, aqui sou eu só, eu e o Tejo, eu e o barulho das ondas e os gritos das gaivotas. Às vezes ponho-me a conversar, passam os barcos à vela, os barcos a motor e eu ponho-me a falar com eles, conto-lhes o que era a minha vida, conto histórias dos meus colegas, conto-lhes sobre o relógio que me ofereceram quando me reformei e que está guardado.

Sinto-me bem aqui, há muito espaço e este bocado de cais e de mar é como se fosse só meu. Olho à volta e não há ninguém, ninguém me vê. Não é como ali no Ginjal que é um corrupio de gente, uns a pescar outros a meter conversa com os pescadores, outros a namorar e muita malta a fotografar.

Aqui ao menos ninguém me fotografa, aqui ninguém me vê.

: Fractal 3 :


Aqui no Ginjal é tudo outstanding, overwhelming, excessivamente belo, seja no sentido do cais que avança no sentido do oceano, seja no sentido oposto, do cais que vai até Cacilhas.

Disparo incessantemente a máquina querendo captar, capturar, o momento perfeito que se me apresenta; o rio através da folhagem, a gaivota branca que se lança em voo, o barco que se perfila numa geometria perfeita, Lisboa dourada pelo sol da tarde ou envolta na névoa da manhã, o homem cujo olhar vai para além do horizonte, a mulher que dá a mão ao marido trôpego, o muro gasto pelo bater das ondas, a telha ocre e partida que deixa ver o azul do céu, a ternura que se respira, a beleza pura, absoluta. Disparo a máquina sem parar, centenas, milhares de fotografias. Grandes planos ou insignificantes pormenores, a mesma infinita perfeição.

Nesta fotografia consegui apanhar a majestosa ponte sobre o Tejo, e um dos cais, e o rio que não me canso de olhar e os barcos brancos e tão pequenos lá ao fundo e o céu que prolonga o rio. Está lá quase tudo, que pena a névoa não deixar ver Lisboa, a bela, a branca, que, naquela direcção avança com o padrão das descobertas, bordado fino, a linha branca. Mas, tirando isso, temos ali as cores suaves, o ambiente luminoso, rosado, a magia do local.

E o nosso homem também lá está mas, dada a escala, ele perdeu relevância, já não é rei de coisa nenhuma.

É apenas um pequeno ponto quase invisível, o pontinho que mal se vê na ponta do cais. Ninguém o vê.
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(Se me permitem, sugiro a leitura do Fractais - cherchez la beauté  no qual explico um pouco em que consistem os fractais) 

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