quinta-feira, fevereiro 17, 2011

Curveball, Bush e McEwan - mentira e expiação


Rafid Ahmed Alwan al-Janabi, o Curveball
O The Guardian divulgou que Curveball, nome de código do informador iraquiano Rafid Ahmed Alwan al-Janabi, engenheiro químico, “admitiu ter transmitido histórias totalmente falsas sobre fábricas de armas químicas e biológicas clandestinas aos seus contactos ocidentais, no caso aos agentes do serviço secreto alemão BND — que posteriormente partilharam essas informações com os seus congéneres americanos.”

Segundo conta, não gostava do regime totalitário de Saddam e resolveu inventar aquelas mentiras. Revela ainda que durante algum tempo a sua credibilidade esteve posta em causa mas que, a partir de certa altura, as ‘dúvidas’ desapareceram e as suas ‘informações’ voltaram a ter procura revelando, segundo diz, que um ‘caso’ estava a ser forjado para justificar um a guerra.

Ou seja, a sua mentira foi, segundo ele, uma mentira útil.

Agora que é já possível fazer grande parte do balanço da guerra do Iraque, “Janabi, que agora vive exilado na Alemanha, diz que não se arrepende do que fez. “Fico muito triste por todas as mortes no Iraque. Mas pergunto: havia outra solução? Acreditem, não havia outra maneira de levar a liberdade ao Iraque”.

[Esta notícia encontra-se mais detalhada aqui aqui]

Isto, se não fosse trágico, seria apenas dramático. Claro que sabemos que havia todo um élan pró guerra que apenas precisava de um pretexto para a desencadear. Mas o certo é que o pretexto foi uma mentira. Claro que a própria mentira era pouco fiável pois a fonte já estava catalogada como pouco fiável. Mas quando se persegue vivamente um fito, qualquer prurido é posto de parte.

Mas abstraiamo-nos agora das motivações políticas, sociais e económicas (e até pessoais, pois é sabido que o filho Bush queria impressionar o pai, acabando o que o pai tinha começado) que provavelmente levariam, de qualquer maneira, à invasão e à guerra.

Pensemos, agora, apenas no pretexto. Um homem diz uma mentira. A seguir, alguém, talvez querendo mostrar serviço, papagueia a mentira (deveria ter ido, antes, comprovar a veracidade da informação – mas a ambição humana e a falta de escrúpulos não têm limites), a seguir alguém pega na mentira e sobe-a de nível.

Um jogo de estafetas. A mentira correndo de mão em mão. As coisas começam a tomar contornos políticos dentro dos EUA e fora de portas. Provavelmente nos bastidores haverá quem sussurre que andam todos a reboque de um bluff mas, nessa altura, já todos se sentem de 'rabo preso' (se o sabiam porque não o denunciaram?) e calam-se também. A diplomacia de guerra, com o incompetente Bush à frente, sai de fronteiras e começam a forjar-se alianças. Espanha, Inglaterra, Portugal chegam-se à frente, fazem um pacto e a guerra começa a ser incontornável. Blair secunda Bush e afirma que viu as provas da existência das armas químicas biológicas móveis. Todos viram. Todos, perante as câmaras, perante os parlamentos, todos afirmam que viram as provas. Como não? Vão declarar-se totós? Vão dizer que foram infantilmente enganados?
Açores: José Barroso, Tony Blair, George Bush, Aznar, a alegria depois do pacto. Riem de quê?

E a invasão e a guerra aconteceram com o cortejo de mortes que se sabe.

Mais tarde, quando o sangue já começou a correr, vão afirmar que se enganaram? Não. Enquanto podem, todos mantêm a mentira.

Até que não foi mais possível. O reconhecimento foi incontornável: afinal nunca se encontraram essas armas, afinal a CIA, as forças armadas, toda a classe política, todos foram enganados.

Curveball, como agora podemos ler, não se arrependeu. Collin Powel parece que sim, e é agora um orador pago a peso de ouro, ensinando liderança a gestores, tendo virado apoiante de Obama. Donal Rumsfeld, acusado de ter autorizado as torturas a presos no Iraque, duvido que se tenha arrependido.

Mas e os 4 dos Azores?

O inapto Bush passou, entretanto, à história, Aznar também, Blair também anda por aí vendendo-se caro como palestrante, Durão Barroso foi promovido e de maneira e, se lhe falarem no Iraque, qual virgem ofendida, assobiará para o lado.


À noite, antes de adormecerem, pensarão nisto? Pesar-lhes-ão as mortes desta guerra? Ter-se-ão genuinamente arrependido? Ou dirão simplesmente que foram enganados e, tal como Janabi Curveball que, do mal o menos: pelo menos Saddam já era e o Iraque talvez venha a ser uma espécie de democracia?

. [] .

Não é inédito isto: um pequeno facto individual estar na base de uma mudança de rumo da história.

Geralmente isso reporta a um âmbito mais estrito, da esfera pessoal. Mas acontece também nas empresas em que pode arquitectar-se toda uma estratégia de negócio sobre uma mentira que alguém um dia se lembrou de inventar; na política então, quantos casos assim acontecem? Basta lembrarmo-nos de Paulo Portas, Marcelo Rebelo de Sousa e a vichyssoise virtual.

Lembrei-me a este propósito do filme Expiação baseado no romance homónimo de Ian McEwan, com Keira Knightley, cujo trailer aqui vos deixo.

Briony Tallis, então com 13 anos, acusa de violação um jovem rapaz que amava a sua irmã. Mente. É uma mentira mesquinha, são ciúmes de uma adolescente maldosa. Mas, com essa mentira, é a vida de duas outras pessoas que ela muda radicalmente, causando irreversíveis danos, sofrimento sem recuo.

Toda a vida Briony expiará a culpa da sua maldade - mas em vão, nunca conseguirá anular o sofrimento irreversível que causou a outros. E toda a sua própria vida virá a ser condicionada pelas consequências e pela culpa sem tamanho resultante da mentira que, um dia, aos 13 anos, inventou.


Aconselho este filme. Mas aconselho também o livro.

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