terça-feira, dezembro 21, 2010

A poesia ensina a cair de Eduardo Prado Coelho e um cadavre exquis no primeiro dia de inverno


'A poesia ensina a cair' ao pé dos dois volumes de 'Tudo o que não escrevi'

Morreu cedo demais o Eduardo Prado Coelho. Pessoa politicamente controversa, era, contudo, uma analista cuidadoso e alguém que, em minha opinião, tinha uma assinalável qualidade de escrita.

Deixou organizados vários trabalhos que vão dar origem à colecção Biblioteca Eduardo Passos Coelho da INCM. Este de que hoje falo, 'A poesia ensina a cair', é a obra inaugural e é, além do mais, um livro muito bonito.

A introdução do livro deixou-a o EPC já escrita e, demonstrando a intemporalidade das suas análises, termina assim: ”Os tempos não são exaltantes, a mediania domina, as expressões que definem cada dia não nos conduzem demasiado longe. Contudo, continua a escrever-se poesia. Porque, como sugeriu Luiza Neto Jorge, a poesia ensina a cair.”

Este livro reúne textos e crónicas publicadas nos suplementos Leituras e Mil Folhas do Público entre o final da década de 90 e 2006.

A este livro ainda voltarei em posteriores posts pois tem matéria que muito me interessa. Aqui podemos encontrar textos sobre Sophia de Mello Breyner, Herberto Helder, Pedro Tamen, Nuno Júdice, Ana Luísa Amaral, Manuel de Freitas, Maria do Rosário Pedreira, Adília Lopes, António Mega Ferreira, Fernando Pinto do Amaral, Pedro Mexia, mas também sobre Sylvia Plath, Ferreira Gullar, Adorno, Derrida e Melo Neto e muitos outros autores.

Os textos têm títulos expressivos, apelativos. Refiro aleatoriamente alguns:

As cidades têm luzes nas palavras; Qualquer coisa que muda a escala do olhar; A margem de onde avisto o caos; A poesia volta como a loucura e o acaso; Alguém no escuro olhando; A demência dos pássaros; Esse pássaro fluido; Perdeste a infância e não encontraste o mundo; Deixemos que este livro se feche; Nunca estivémos tão a sul; A respiração azul das cores; Como uma corda de alegria; O princípio da aurora; Um corpo de afectos; Como se fora sua mãe; E Deus é girassol; O que resta do rosto de Deus

E, ao escrever estes títulos, apetece-me juntá-los como se estivesse a jogar ao cadavre exquis para, no fim, ler o resultado e ver se resulta como um ‘objecto’ em si, quase como se fosse um poema. Apetece-me alterar algumas palavras, juntar pontuação, fazer com que o texto se articule entre si.

Vejamos se resulta:

As cidades
têm luzes nas palavras,
e há nelas
qualquer coisa
que muda a escala do olhar

Na margem
de onde avisto o caos
a poesia volta
como a loucura
e o acaso

Estou no escuro
olhando
a demência dos pássaros,
esses pássaros fluidos

Perdi a infância
e
não encontrei o mundo.

Mas deixemos
que este livro se feche.
Afinal
nunca estivémos tão a sul
e
eu sinto
a respiração azul das cores
como uma corda de alegria,
o princípio da aurora,
um corpo de afectos
como se fora a minha mãe.

E Deus é um girassol
- ou o que resta do rosto de Deus.


Gostei de fazer. Uma brincadeira surrealista numa noite fria de chuva, neste primeiro dia de inverno.

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