terça-feira, setembro 16, 2014

A relativa importância da casa e das coisas da gente


No post abaixo já falei do admirável mundo invisível que vive junto a nós. É um dos temas que muito desperta a minha atenção: a natureza tal como geralmente não a olhamos, a beleza quase desmedida do invisível.

Não sabemos nada. Nem do que nos rodeia nem do que vive dentro de nós.

Ou o que somos sem percebermos porque o somos.

É o caso agora deste post. A história não é nova mas, no outro dia, Leitor que vive no meio de objectos que um dia foram caros a alguém e que, mais tarde, foram postos à venda, enviou-me referência a este caso que, na altura, deu que falar.




Mas vamos com companhia: Solveig Slettahjell em "Wild Horses" (que acabei de conhecer aqui)







Vivo rodeada de livros, de fotografias, de quadros, de objectos que me encantam, uns oferecidos outros adquiridos. Pode ser uma caixinha de música em madeira pintada em rosa velho e ouro, adquirida junto ao lago de Zurique, pode ser uma peça Armani em biscuit, pode ser um castiçal, pode ser um leque com bem mais de um século. Ou pode ser um pequeno galo de chapa pintada, de corda, comprado numa feira, que faz a delícia das crianças e que, por isso, passa temporadas desaparecido, para aparecer mais tarde onde menos se espera. Tantos objectos de que me rodeio. E livros. Tantos livros. Quando os vêem, perguntam-me sempre quando os vou conseguir ler. Tantos que nunca vou conseguir ler.

Estou a escrever e nesta mesa mal tenho espaço para o computador, cercam-me pilhas de livros, o Montedor de J. Rentes de Carvalho mesmo aqui ao meu lado. Vou folheando, lendo ao acaso, pois sempre é assim que tomo o pulso aos livros


A razão deste contar deve ser bem pequenina e sem importância, que mesmo quando paro e me pergunto a não encontro. Um passado assim, sem colorido, sem dor a que possa dar dimensão, os meses contados como horas, as horas arrastadas como anos, uma névoa, nada do que prometiam os livros, nada do que pediam os sonhos, 'os melhores anos da tua vida' nem esbanjados nem gastos, perdidos, como se perde uma bugiganga. Que quero eu?

Poderia ficar o resta da noite a espreitá-lo-lo, a tentar reconstituir o fio à meada através da leitura assim, solta, até não resistir a lê-lo a preceito, percorrendo-o então como se percorre uma casa já conhecida.

[Ando com vontade de ter aqui J. Rentes de Carvalho a dialogar com Adélia Prado - aqui comigo, aqui convosco. Acho que pode resultar numa conversa gostosa. É gente que anda em sítios altos, a sua escrita tem oxigénio. Um dia destes talvez.]

E as caixinhas de porcelana? De vidro? Tantas, sempre que via uma que achava muito bonita trazia-a para casa. Agora já evito.

Um dia quem ficará com tudo isto? Terão as suas casas, não terão onde pôr tantos livros, tantas caixinhas, tantas molduras.

Gostava que fossem como eu que quis ficar com coisas dos meus avós ou tias, coisas que mais ninguém queria. Lençóis bordados, copos de vidro coloridos, o cadeirão onde o meu avô se sentava, Mas eu tenho a sorte de ter duas casas.

E quando eu for velha e já não conseguir mover-me entre as duas casas?

Tenho uns amigos que também têm duas casas, duas casas enormes. Quando os pais dele morreram, mudaram-se para lá, uma moradia enorme, a casa da infância e juventude dele, na Linha, perto do mar. E têm a outra no campo, enorme também. Ela é como eu. Rodeia-se de tralha de toda a espécie. Mas acho que é pior pois vai muito a antiquários, tem peças enormes, oratórios, santos, jarrões, e tem a mania dos crucifixos, tem-nos de todos os tamanhos e feitios. No entanto, há tempos ele disse-me que estavam cansados de tanta coisa, que tinham vontade de se desfazer de tudo, que a filha não liga a nada daquilo e o filho odeia. Que estavam a pensar vender a casa da Linha, ficarem para já com a casa do Alentejo e, em Lisboa, comprarem um andar pequeno, um T1, no Chiado ou por aí. Fiquei chocada. E as coisas? Ele disse: Vendemos tudo. É o melhor. E para que é que aquilo serve?

Ainda não o fizeram. Dá muito trabalho e ainda não tiveram motivação para o fazer mas ele diz que um dia o farão.

Eu acho que não conseguiria desfazer-me de todas estas minhas coisas, sinto necessidade de me sentir cercada pelos que me são queridos e pelas minhas coisas.

Mas também admito que possa chegar o dia em que não queira quase nada, só o afecto dos meus, e que tenha vontade apenas de levar uma vida simples, varrer a casa, ir à praça, fazer o almoço, passear, ver o mar. Mas sempre com alguns livros.

Mas, enfim, isto veio a propósito da tal história.


Uma mulher teve tudo o que quis, fama, amantes, riqueza. A sociedade reconhecia-a como uma entre as melhores. Não que fosse uma grande actriz. Mas era elegante, bela, espirituosa. Ciúmes, despeito, inveja, claro que tudo isso ela certamente despertou. Mas que interessam os olhares oblíquos quando se têm, frontais e sem pudor, os olhares de todos aqueles que se querem? O poder é afrodisíaco e a beleza desenvolta também. Na vida de Marthe havia de tudo isso. Bela, sedutora, actriz, conquistou presidentes, homens poderosos.

Depois um dia morreu. Herdou a sua casa no coração de Paris, uma casa tão cheia de histórias, a sua neta. Mas veio a guerra e a neta fugiu dos nazis, foi para o sul de França e nunca mais voltou a casa da avó, nunca se esquecendo contudo de pagar a sua renda e todas as despesas. Até que a própria neta morreu em 2010, já com 91 anos.

Um dia, o senhorio, porque a renda deixou de ser paga, foi ao apartamento. E foi como se tivesse entrado no passado. A casa estava intacta ao fim de 70 anos de abandono, pó, é certo, mas os objectos todos, parados no tempo como se Marthe pudesse voltar a qualquer instante.

Aliás, era mais do que isso: era como se ela própria ainda estivesse presente. Um belo quadro seu, pintado por Giovanni Boldini, um outro amante, quando ela florescia nos seus 24 anos, iluminava a casa, mostrava aquela que um dia ali vivera rodeada de espelhos, livros, quadros, muitos quadros, tantos queridos objectos. Marthe, nascida Mathilde, ainda ali vivia.



Transcrevo em inglês porque infelizmente é tarde e não tenho tempo para traduzir:

Madame Marthe de Florian (Paris, France; 9 September 1864 – France; unknown date) born as Mathilde Héloïse Beaugiron was a little known French actress and demimondaine (courtesan) during the Belle Époque. She was known for having famous lovers including Georges Clemenceau (before becoming the 72nd Prime Minister of France), Pierre Waldeck-Rousseau (the 68th Prime Minister of France), Paul Deschanel (11th President of France), Gaston Doumergue (13th President of France), and the Italian artist Giovanni Boldini. Her story resurfaced when in 2010 her belongings were discovered in a Parisian apartment, untouched for nearly 70 years, like in a time capsule.
Marthe de Florian lived in an apartment located in the 9th arrondissement of Paris between Pigalle red light district and the Opera very near the church of Sainte-Trinité, which apparently was eventually inherited by her granddaughter, presumably a daughter of Henri. At the outbreak of World War II her granddaughter escaped from the Nazis to the south and settled in the French Riviera, never to return, or at least never to come back to clear the apartment. The rent and expenses were paid regularly until her death in June 2010 at the age of 91. As a result, everything the apartment contained, including many paintings, furniture and all the usual elements of early 20th Century life remained intact for nearly 70 years. The identity of the granddaughter, as well as the date of the death of Marthe and the exact location of the apartment are all unknown to the public due to the current privacy protection laws of France.
Among the many paintings discovered in the apartment was a portrait depicting Marthe de Florian herself in a beautiful pink muslin evening dress, painted by one of her lovers, the artist Giovanni Boldini. The portrait had never been listed, exhibited or published, however a visiting card with a scribbled love note from the painter was found in the apartment, and a short reference found in a book from 1951 commissioned by the artist's widow Emilia Cardona also confirmed the provenance of the painting. According to the book, the work was painted in 1888, when the actress was 24 years old. 



A história da casa de Marthe de Florian, mais conhecida por Madame de Florian, uma casa perdida no tempo, entristece-me. Mas, ao mesmo tempo, torna bem evidente a irrelevância dos objectos por muito queridos que sejam. 


Ou será o contrário?

Será que são os objectos que interessam, que permanecem, e nós é que passamos sem deixar rasto, irrelevantes como partículas de poeira?


Não sei.


[Quem tenha mais cabeça ou menos sono que eu, que responda.]




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Relembro: no post já a seguir tenho um vídeo que não deve ser perdido, tem imagens surpreendentes e muito belas.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça feira.


4 comentários:

Anónimo disse...

Fascinante essa história de Madame de Florian. E a neta nunca mais ter visitado a casa da avó, é incrível. Que estranho! Mas, a história em si é muito interessante. Li com deleite este seu Post. Quanto ás coisas materiais que vamos acumulando ao longo da vida, é tudo relativo se as queremos manter, ou ver livres delas, um dia. Depende de cada um. Dou-lhe um exemplo que vivi de perto, muito recentemente. Nossos pais (meus e uns tantos irmãos), desde há uns 20 anos a esta parte iam dividindo as suas vidas entre Lisboa e o Norte, designadamente a Beira-Alta, cerca de metade, entre Maio e Novembro por lá e o restante cá por baixo. Até que se foi tornando difícil manter esse ritmo. Por razões, sobretudo, de dependência de quem os levava e trazia, filhos ou netos, o que não era fácil, por causa das vidas de uns e outros, trabalho, estudos, etc. Assim, recentemente, decidiram vender o apartamento de Lisboa e irem para casa grande que possuem na Beira. Foi uma decisão pensada, que demorou a ser tomada. Mas, uma vez tomada, colocou-se o problema do transporte das mobílias, bibelots, livros, loiças, quadros, etc, etc, etc. A menor parte desse recheio deram aos netos e filhos, mas a maioria das mobílias, quadros, bibelots, etc levaram com eles, isto apesar de a casa de lá já estar mobilada. Decidiram fazer obras, quase terminadas, para acrescentar salas, etc, de modo a poder receber o recheio daqui. Até a mobília da sala de jantar levaram (até porque todos os filhos não precisassem dela, por razões óbvias), que é muito bonita, antiga, dos nossos avós. Pois bem, recusaram-se a desfazerem-se da maioria das coisas que possuíam. E têm já oitentas, embora, felizmente, com saúde. E, lá em cima, vão ficar, como nós dizemos por brincadeira, com uma sala de jantar de reserva (talvez fique num armazém que possuímos, no jardim, guardada, só pode). Mas, está a ver? As pessoas sobre esta matéria reagem de forma diferente. Nós, eu e minha mulher também não pensamos um dia desfazermo-nos das coisas. Criámos afectos com elas, representam e recordações várias. Agora, depois, os filhos que façam o que quiserem de tudo isto. Depois de morto, quero lá saber. Minha mulher e irmãos têm uma casa de família algures também pela Beira, noutro local, que desde há 16 anos está fechada, só muito raramente vai lá alguém apenas para verificar se não há danos, mas ninguém lá vive, ou lá esteve ou ficou desde então. É uma casa em pedra, razoavelmente grande, antiga, bonita, com um bom jardim, digna, boas mobílias, mas ninguém quer lá ir passar férias, ou mesmo viver. Está há venda há anos. Mas ninguém a compra, até porque não estão dispostos a vender a preço de saldo. E assim, por lá está. Até quando?
P.Rufino

Pôr do Sol disse...

Vive-se a vida a construir uma casa. Cresce connosco e só fica pronta quando repleta de moveis, livros, louças, quadros, biblots, fotografias, sorrisos, tristezas, saudade, natais, aniversários e de novo fotografias, alegrias o primeiro sorriso, os primeiros passos, a primeira escolinha, tudo se fotografa, tudo se guarda.
E de repente tudo passa a historia.E a historia passa a velharias. Velharias que se trocam pela leveza do moderno.
As boas mobilias são destronadas pelo contemporaneo e descartável IKEA, que só aguenta uma montagem, uma vida e curta.

Tambem tenho pensado nisto, daí há meses, no inicio do verão arranjei uma caixa que fui enchendo com pratinhos do Redondo e outros pintados por amigas ou comprados em carmeses, jarrinhas, caixinhas, chaveninhas e outras coisinhas arrumadas e nunca usadas. Cheguei perto de uma banca, numa feira das tais velharias e perguntei se estava interessado. O feirante aproveitou o meu desejo de me ver livre da caixa e eu aceitei as duas notas de €20, não sem algum "remorso".
A vida e as casas dos nossos filhos não se compadece com estas "heranças".
Um beijinho e boa quinta feira.



Um Jeito Manso disse...

Olá P. Rufino,

Eu tento não pensar muito nisto pois aflige-me um bocado.

Os meus pais sempre viveram numa moradia e a minha mãe tinha o sonho de ter um andar pois dizia que uma moradia dá muito trabalho, se suja mais, etc. Então, compraram um apartamento relativamente perto de mim, um quarto de hora a pé, talvez.

Gostavam de vir passar as férias ou os fins de semana. A minha mãe decorou-o com amor: belíssimos móveis, um louceiro lindo, sofás de veludo cor de mel, grandes espelhos de talha dourada, algumas belas aguarelas. Agora, como o meu pai mal sai de casa e, quando sai é para ir fazer exames médicos e vai num carro de transporte adaptado, já não fazem uso do apartamento.

Os meus filhos dizem que devia alugar mas ela nem quer ouvir falar nisso. Tem amor àquelas coisas e mantém a esperança de que o meu pai melhore para voltarem a vir passar temporadas. Ter alguém estranho a usar aqueles móveis nem pensar, e tirar de lá aquilo tudo, para onde? Alugar um armazém? Mal empregadas coisas....

Assuntos complexos e que mexem muito connosco, não é?

Um Jeito Manso disse...

Olá Pôr do Sol,

Até fiquei triste com o que escreveu. Mas acho que é a atitude correcta. As minhas avós eram assim, desfaziam-se de tudo. Já aqui o contei: lembro-me do meu pai ter zangas com a mãe porque vendia tudo de qualquer maneira. Achava que os filhos não davam valor àquilo ou talvez temesse que se desentendessem. Terrenos, casas no Algarve, foi tudo 'de asa'. Lembro-me de uma propriedade enorme, com um ribeiro, poços, casas com terraços onde secavam as amêndoas e as alfarrobas. Vendeu tudo a sobrinhas ou primas sem sequer consultar os filhos. A minha outra avó não tinha terrenos e casas assim mas desfazia-se de mobília, de louça, do que calhava. Havia um homem que já devia saber da maneira de ser dela e passava por lá a perguntar se tinha alguma coisa para vender e ela vendia. Parecia querer desfazer-se de tudo o que fosse antigo. Tenho-me lembrado de que se calhar queria desfazer-se de tudo o que lhe fizesse lembrar o meu avô que morreu cedo e a deixou num luto e sofrimento que parecia não acabar.

Quando elas morreram, nem os filhos nem os outros netos ligaram muito ao que elas tinham, tudo gente despegada de coisas materiais. Mas também as pessoas já têm as suas casas cheias, não têm onde pôr.

A minha bisavó era prima de um que foi Presidente da República e trocavam correspondência entre si e com os primos. Quando estavam a 'desmanchar' a casa estive a ver aquela correspondência interessante. Ela nunca tinha falado nisso nem lhe dava qualquer valor. E até ficámos admirados que tivesse 'escapado' pois quando se desfazia dos móveis, muitas vezes iam com o que lá estava dentro.

Lembrei-me disto ao pensar na sua caixa com objectos e de ter ido desfazer-se deles. É inteligente fazer isso mas parece-me que é um bocado começar a fechar as portas, não é?

O meu marido volta e meia tem vontade de se desfazer de coisas, também sente vontade de não deixar coisas que, mais tarde, só vão dar trabalho a quem tem que lhes dar destino.

Enfim, um assunto que não me enche de alegria.

Um beijinho, Sol Nascente.