Tal como contei no post abaixo, em que falei de mulheres que gostam de mar, tenho estado a ler A voz interior, excertos do diário de Hein Semke. Gosto de ler diários.
Leio-os com curiosidade, estranheza, alguma inquietação.
Quando vejo uma obra de arte, não quero saber da vida do seu autor. Não quero saber nada. E se acontece ler o diário de um escritor, pintor, músico é, como no outro dia já o referi, porque me interessa perceber de que universo de aleatoriedade nasce a obra, porque quero perceber se há génese e logo abandono ou se há carpintaria cuidada, ou se a ideia nasce de outra ideia ou se não há ideia nenhuma. Tal como há pedras parideiras, gosto de pensar que as palavras também o podem ser ou que acordes podem gerar acordes ou traços gerar formas. Ou serão factos que geram arte? É para questões deste tipo que gosto de procurar respostas. Como Miró que salpicava as telas com os pintéis que tinha deixado de molho e que se deixava guiar pelo desenho que assim se formava. Isto já para não falar de Pollack que construía camadas de acasos, num frenesim, como se uma pulsão o conduzisse na direcção de um desconhecido caos. Ou Picasso que, com uma fenomenal energia, copiava dos outros, inventava, distraía-se, divertia-se e, por vezes, apurava-se.
Eu, apesar de aqui escrever todos os dias como se não houvesse amanhã, poucas vezes me deixo levar pelo lado diarístico. Posso contar um ou outra coisa, por vezes a posteriori falo de alguns acontecimentos mas, em cima do acontecimento, relatar factos puramente pessoais como, por exemplo: Hoje estou cheia de dores, custa-me andar. Vou fazer uma ressonância magnética. Estou preocupada, ou: Tenho um problema com o meu chefe, já não sei o que fazer para me entender com ele ou: Aborreci o meu marido ao falar desabridamente do primo dele e agora não sei como me reaproximar dele sem dar o dito por não dito -- ou outras coisas do género -- isso a mim não me tenta.
No entanto, encontro palavras nesse registo nos diários que leio. E leio-os muitas vezes com uma pena enorme, acompanhando as suas angústias, sofrendo com eles. Sei que não faz sentido mas é o que me acontece. É quase como se tivesse preferido não saber do seu lado humano, dos seus problemas pequenos e vulgares, quase como se tivesse preferido que deles apenas houvesse o lado de criadores.
Hein Semke, que teve uma vida longa, viveu, pelo menos durante parte do tempo percorrido por este diáro, com dificuldades económicas que o atormentavam. E tantas vezes quase sucumbia aos problemas que daí advinham. E preocupava-se por viver com uma mulher com cerca de metade da sua idade, mulher essa que por vezes garantia o sustento da casa. E vivia com a angústia de não comprarem o seu trabalho, de quase ninguém aparecer nas suas exposições. E eu leio essas aflições que causaram sofrimento a alguém há décadas e inquieto-me pela injustiça que todos cometemos para com tantos e tantos artistas, com tantas e tantas pessoas. Não sabemos nem queremos saber o que vai no coração das pessoas nem as dificuldades por que passam.
[Por exemplo, assusta-me pensar que sou lida por pessoas que têm a generosidade de me ler enquanto eu ignoro as dificuldades por que passam. Custa-me pensar que não têm dinheiro para passear ou para ir a restaurantes ou comprar livros e que, em silêncio e alguma tristeza, lêem a minha alegria ao falar do mar, das árvores, dos meus constantes arroubos. Ou por pessoas solitárias que não têm a quem dar um abraço ou em quem nenhuma mão pousa num afago amigo. Como posso eu chegar até essas pessoas? Ignoramos sempre o que é invisível e não sabemos como ver para além da camada superficial. Não sabemos chegar a quem, apesar de estar próximo de nós, se mantém invisível e em silêncio.]
Hein Semke, A dor, 1934 Nos jardins da Gulbenkian |
Como de uma vida normal ou onde pontuam depressões podem nascer magníficas obras é o que não percebo. Se eu vir um deus, desligado de mundanidades e acima de minudências, com um intangível corpo, alimentando-se de brisas e acordes divinos, eu, vendo obras de arte que nasçam de si, percebo. Agora de pessoas tão irremediavelmente normais a mim custa-me perceber que tenham, algures, escondido dentro da sua aviltante normalidade, o dom da criação.
E tudo isto me vai inquietando enquanto leio um diário como este. Vou levada pela mão da escrita, dia após dia partilhando o quotidiano de Hein Semke. E, de vez em quando, tento imaginá-lo a construir a maravilhosa escultura A dor'' que tantas e tantas vezes vejo sem me ocorrer pensar que quem a concebeu viveu uma vida tão humana.
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Hein Semke, Autorretrato, 1934-35 |
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Uma vez mais, talvez não tenha nada a ver com nada disto mas deixem que partilhe convosco:
Leonard Cohen diz Since You Asked de Judy Collins
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E, caso estejam com vontade de ver mulheres que gostam de mar, queiram, por favor, descer até ao post já aqui abaixo.
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5 comentários:
JM, talvez a função dos blogues não seja mostrar um quotidiano de horas assarapantado na sua subjectividade e que não interessa a ninguém. Talvez a JM pense, ou nem precise pensar que, de dentro das pequenas coisas quotidianas mais vale chamar as que pertencem a todos os homens - ou quase todos - e as pode do seu ser particular.
A gente envelhece e vai aprendendo a guardar essas dobras pessoais que cada vez interessam menos aos outros. E depois desabitua-se de contar (leva que tempos, mas o desábito também se treina e se consegue). A vida dos velhos é uma lição de silêncio. Conheci o meu avô a andar com dificuldade, cresci a ver-lhe os passos a encurtar, na minha adultícia, paralisou. Jamais o ouvi queixar-se. E podia contar-lhe das outras dores que teve e só deixaram marca na alma. Dores maiores, pode crer. Mas nem dessas ouvi queixas.
São muito bonitas as duas canções que deixou para nós. Obrigada. Pois é, na escrita nunca sabemos o outro como ele é, o que sente, como nos recebe. Pelo lado que me toca, gosto de lê-la com esse mesmo jeito de não haver amanhã. Distrai-me, mostra-me pontos de vista. E entremeia com música de que gosto mais umas vezes que outras. O mesmo acontece com as imagens. Mas talvez eu não seja exemplo.
Um dia bom para si.
Há obras, quer de Arte, ou musicais (refiro-me, neste caso, à Música Clássica) que por me chamarem à atenção de uma forma particular, ou porque gostei especialmente delas, de as ver, ou ouvir, que me levam a tentar saber porque e como foram concebidas. Fascina-me, por vezes, conhecer a personalidade desses criadores de Arte e Música, por exemplo. E, nesse sentido, se a oportunidade surge, procuro informar-me. Há muitos e interessantíssimos livros sobre Arte e Música Clássica que merecem leitura atenta, não só pelas explicações que nos dão e nos ajudam a perceber o sentido dessas obras e a explicação da sua concepção, como também, muita das vezes, paralelamente, sobre a vida de alguns desses autores, ou do porquê de algumas das suas obras. É certo que, tal como a UJM, se vou a uma exposição ver um determinado conjunto de pinturas, aquilo que me interessa naquele momento é o que vejo ali e o que sinto ao ver isso, o que penso da obra em si. Mas, há outros casos em que vou, ou vamos, ver uma exposição, ou ouvir um concerto, porque gostamos do artista ou compositor. E então, se por qualquer razão o aprecio, acabo muitas das vezes interessado em saber dele/a, ou seja, quem foi e por exemplo pintou determinada obra. Ainda aqui há tempos, quando via um pôr-do-sol em casa de amigos, me recordei do céu pintado por Munch no seu conhecido quadro, “O Grito”. E de como ele veio a pintar aquela sua obra, cuja explicação vim a saber precisamente por a ter lido num dos livros de Arte que possuo lá por casa. Ora, estas coisas, pelo menos em meu entender, são interessantes. Digamos que passa a haver uma especial ligação ao quadro que gostámos de ver. E o mesmo quanto a, por exemplo, a uma composição. Há artistas e compositores cujas vidas foram fascinantes, interessantes, ou até bizarras, e cujo seu conhecimento me deu prazer ler.
Já não sou capaz de ler qualquer diário, ou biografia. Não tenho particular sensibilidade para tal. A História, em minha opinião, não deve ser contada pelos próprios. Pode aproveitar-se tal documentação para se fazer uma avaliação da personagem em questão e completar os seus dados históricos. Mas, é trabalho para o historiador. Eu não leio esse tipo de livros. Nunca tive apetência para tal.
P.Rufino
PS: gosto de L. Cohen e de Judy Collins.
bea,
Gosto muito do que escreve. Hoje li-a de gosto e nem foi pelas palavras simpáticas, foi pela sabedoria serena.
Obrigada!
Olá P. Rufino,
Claro que conhecer a vida de um artista acrescenta uma outra dimensão à forma como apreciamos a obra. Talvez nos aproxime mais da obra porque parece que ganhamos uma certa familiaridade com quem a concebeu. Mas, no entanto, parece que prefiro, apesar de tudo, não saber, querer olhar (ou ler ou ouvir) quase como se tivesse nascido de forma espontânea, do nada.
Uma boa noite, P. Rufino!
Permita-me só uma pequena nota: o interesse que revelei - em determinadas circunstâncias - de querer conhecer e saber das razões de tal obra, seja ela de Arte, ou uma composição musical, bem como do/s seu/s autor/es, ou da/s respectiva/s vida/s, não se estende aos escritores, ou seja, não sinto a mesma curiosidade por essas razões ou motivos e suas vidas. Porquê, não lhe sei explicar. Quando leio um livro, ali a minha imaginação está direccionada para o texto, a história e pouco mais me interessa. Já quanto a um quadro, ou a uma composição, aquilo transcende-me e como digo, em determinados casos, gosto de saber das razões de tal obra.
P.Rufino
(PS: este seu Blogue, pela diversidade de temas, é...único! Veja-se aquele, mais acima, sobre o clitóris, etc. Bem divertido!)
Tenha uma boa noite!
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