É um dos temas presentes nesta rentrée: ao fim de vários anos, foi conhecida a sentença do Caso Casa Pia.
Segundo os mais directamente envolvidos é apenas o início de uma nova etapa pois a seguir virão os recursos. A justiça é uma indústria, uma indústria de processos.
O tema Casa Pia é um tema que me provoca uma sensação de horror e penso que, como toda a gente, tenho vontade de me afastar do horror. Se puder evitar falar ou pensar nisto, melhor.
Mas, por outro lado, sendo um facto marcante, é absurdo passar ao lado.
Referir-me-ei apenas muito sucintamente e, uma vez mais, espero não ser injusta.
Tudo o que tenha a ver com crianças me é particularmente sensível. É-me quase insuportável pensar em sofrimento de crianças. Claro que crianças a sofrer há-as por todo o lado, desde o sofrimento massivo nos países em guerra ou em estado de carência, ao sofrimento mais individual das crianças institucionalizadas e conscientes do facto de não terem família que as acolha. Mas aprendemos a abstrair-nos do que nos é incómodo. Não conseguimos mudar o mundo e aprendemos a não sofrer por isso.
Contudo, há alturas em que a realidade nos é despejada em cima como se de um balde fétido se tratasse. Foi o que aconteceu com o caso vertente. Jovens, pouco mais que crianças, desprotegidos e postos à guarda do Estado foram sinistramente usados e abusados ao longo de anos. O nome dos abusadores saíu à cena e, ao longo de anos de investigação, recursos, incidentes, questões processuais, etc, o pesadelo de provar a culpa dos abusadores foi-se arrastando penosamente, numa demonstração do que é o monstro da justiça em Portugal.
Alguns dos suspeitos, por sorte, outros por malabarismos sabe-se lá de que tipo, ter-se-ão visto livres da acusação. Mas estes poucos que se mantiveram sob suspeita continuam todos eles a jurar a pés juntos que são inocentes.
Se não soubéssemos que as perícias comprovaram aquilo que os miúdos, que o Carlos Silvino, vulgo Bibi, que o Mestre Américo, que o Adelino Granja, que o Pedro Namora e outros diziam, quase poderíamos pensar que nem houve abusos. Mas não: houve abusos sistemáticos, continuados, comprovados a vários miúdos. Por isso, alguém foi. Se houve abusos, houve abusadores. Houve abusadores e ao longo de várias gerações de miúdos. Não foram apenas esta meia dúzia de nomes: foram muitos os pedófilos que, ao longo de anos, saciaram a sua fome miserável com as vítimas da Casa Pia.
Também não me parece possível que todos, desde os investigadores, aos procuradores e aos juízes, todos se tenham enganado em toda a linha, acusando injustificadamente pessoas inocentes.
Então, como explicar a cara aberta, o peito feito, a convicção imbatível com que todos os acusados (com excepção para Carlos Silvino) continuam a clamar inocência?
Eu, que até já escrevi aqui sobre o cepticismo que sinto em relação a alguns agentes da nossa Justiça, admito que possam ter ocorridos alguns erros processuais, algumas conclusões pouco fundamentadas – mas num trabalho extensíssimo seria quase impossível que tudo fosse imaculadamente perfeito.
Mas não me parece plausível que tantos profissionais, pertencentes a diferentes organizações, ao longo de tantos anos, se tivessem concertado criminosamente para destruírem a honra, a reputação e quase a própria vida de uma meia dúzia de pessoas.
Já ouvi e li que esta é uma reação frequente nos pedófilos e, de alguma coisa que conheço da natureza humana, acredito, e espero não estar a ser imperdoavelmente injusta em relação a estes acusados em concreto, é que o acto de abusar de alguém – ainda por cima um jovem e, ainda por cima, do mesmo sexo – é um acto tão horrendo que, aos olhos dos próprios, é inconfessável.
A compulsão do desejo mórbido, a compulsão pela transgressão, a compulsão pelo poder de dominar uma vítima indefesa – e, na altura, o sentimento de impunidade – deviam levar a que uns quantos (estes que se encontram sob os holofotes ou os outros que conseguiram que o processo lhes passasse ao lado) se juntassem num esquema em que poderiam saciar essa sua fome bestial. Uma vez saciados, voltavam a ser normais, voltavam à sua vida familiar e social normal, repudiando vivamente qualquer acto do género.
No dia em que assumirem a culpa, um alçapão abrir-se-lhes-á debaixo dos pés sugando-os para a cave escura em que vivem apenas os animais traiçoeiros, famélicos, escorraçados. Os advogados que os têm defendido, a família, os amigos, toda a gente os olharará com um horror que eles não poderão suportar.
Por isso, e agora falo em abstracto, sem referir nenhum destes em concreto, imagino que mentem sem saber já que estão a mentir, mentem acreditando que estão a dizer a verdade. Os crimes hediondos que cometeram é como se não tivessem sido cometido por eles e, de tanto os negarem, já nem acreditam que os tenham cometido. Nessa luta trágica de negarem a verdade, consomem toda a sua vida, sentindo-se injustiçados, ofendidos, humilhados, colocando-se eles no papel que deveria caber às suas vítimas.
E os que sabem que abusaram de jovens e que não fazem parte do processo? O pavor que devem sentir de cada vez que o assunto volta à ribalta? Quantas vezes já terão condenado os 'violadores', esperando com isso afastar os fantasmas, orando para que a lama nunca os venha a salpicar a eles? Quantas noites não terão já passado em branco, aterrados perante a perspectiva de alguém vir a denunciá-los, ensaiando já histórias, inventando alibis, engendrando cabalas?
Mas e se, no entanto, alguns destes condenados são, afinal, inocentes? Será isso possível ao fim de tantos anos? Mas, e se for? Terá também esse crime absolvição possível?
Todo este tema, para os meninos hoje homens, para os abusadores condenados, para os abusadores que tiveram a injusta sorte de passarem ao lado do castigo, para os juristas relacionados num pesadelo destes, para todos os envolvidos, esta é uma história malvada, é uma história de cavernas escuras, de labirintos sem fim, de monstros terríveis.
(descrição na 1ª pessoa)
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