Já aqui devo ter contado como, quando falo com algum dos meus amigos, a conversa flui com naturalidade, como se nos falássemos diariamente, sem hiatos. As pessoas com quem sentia mais afinidades quando era miúda são ainda pessoas com quem me sinto em casa. Rimos das mesmas coisas, compreendemos as reacções umas das outras.
Estou a escrever e a lembrar-me de uma amiga que andava sempre connosco. Éramos um grupo animado de rapazes e raparigas e ela talvez fosse a mais calada, parecia que pouco tinha a dizer. Era muito doce mas nunca lhe conheci uma iniciativa, uma sugestão de irmos aqui ou ali ou fazermos isto ou aquilo. Não sei se era timidez ou se era apenas assim, observadora passiva das maluquices que os outros diziam ou faziam.
Ao ouvir a Rita Blanco -- na conversa que abaixo partilho, com a Sofia Cerveira -- dizer que, quando era miúda era tímida, retímida, sempre calada, sempre a sofrer por achar que não encaixava ali, pensei nessa minha amiga. Será que sofria? Aqui há dias ela disse: 'Quando leio o que vocês escrevem [no grupo de whatsapp] fico com vontade de dizer alguma coisa. Mas não sei o quê... Depois passa a oportunidade... Por isso nunca digo nada'. Ou seja, continua igual. Fiquei com pena pois percebi que ela gostaria de participar, simplesmente continua a não ser capaz.
Há quem seja espontaneamente extrovertido. Eu acho que sou assim. Não que seja muito palradora ou que seja 'a alegria da festa', não sou, mas exprimo facilmente a minha opinião, digo, sem pensar muito, o que penso. Mas há quem não seja assim. E pode não ser fácil para os próprios, se calhar gostariam de se exprimir com a mesma facilidade que observam nos outros.
Rita Blanco era assim. Diz que não se achava boa em nada. Mas, conta ela, houve uma professora que a viu. E, diz ela, o facto dessa professora a 'ver' mudou a sua vida.
Se hoje Rita Blanco é das nossas mais conceituadas atrizes, mulher inteira, mulher de opiniões, de causas, mulher que enche qualquer plateau, a essa professora, que viu com olhos de ver aquela menina que se escondia atrás do cabelo e que sofria por não se achar boa em nada nem capaz de nada, o deve.
Por vezes esquecemo-nos da importância que alguns professores têm em nós. Na minha vida não consigo identificar nenhum professor que tivesse sido decisivo na minha vida mas identifico muitos que foram marcantes. Por exemplo, recordo a maravilhosa Joana Meira que, creio que numa aula circum-escolar, quando estava bom tempo nos levava para o terreno ao lado do campo de futebol e, sentados na terra, líamos a poesia de Sebastião da Gama e livros como Platero e Eu ou o Velho e o Mar que transportavam a ternura, a leveza e a sabedoria de mundos longínquos através do poder das palavras. Nessa altura já eu lia muito, mas lia com sofreguidão, sem aquela pausa e silêncio que é necessário para que as ideias do escritor se instalem nas nossas cabeças. Querida Professora Joana Meira. A sua marca em mim perdura.
Quanto à minha condição de professora, creio que já o contei aqui mas vou voltar a contar. Uma vez, estava eu a andar perto da minha casa, cruzei-me com uma elegante mulher. Era inverno. Tinha um casaco comprido justo, encarnado, muito fashion, uns saltos altos, uma pasta na mão. Parou, cumprimentou-me pelo meu nome precedido por Stôra e identificou-se. Devo ter ficado com a boca aberta. Recuei uns anos. Tinha sido uma aluna muito problemática, com problemas de droga. Faltava, quase dormia nas aulas, dizia e fazia disparates. Fiz com ela o que fiz com outros. Quando não aparecia, pedia a algum dos colegas que a fossem buscar. Por vezes mal conseguia andar, dizia que não ia estar ali a fazer nada, que era escusado. Eu dizia-lhe: 'Não vou desistir de ti. Tenta manter-te acordada. Tenta prestar atenção'. Mas ela deixava cair a cabeça. Os outros riam-se. Eu dizia: 'Se eu vir alguém a rir dela, vai para a rua, com falta'. Era uma luta. Muitas vezes temi desistir. Uma vez, estando ela numa lástima, mandei-a ir ao quadro. Não queria. Dizia que não conseguia, que podia cair, que não sabia nada. Mantive: 'Vem ao quadro. E ai de quem se ria.' Os outros ficaram nervosos, temiam que ela caísse. Ajudei-a. Disse que se apoiasse no quadro. Fiz-lhe perguntas. Mal conseguia ouvir o que eu dizia, mal conseguia falar. Na prática, respondi por ela. Mandei-a fazer alguns exercícios muito simples. Esforçou-se. Fez uma parte, completei-os eu. Quando a mandei sentar, vi que ela estava contente, tinha superado aquela provação, tinha conseguido não cair, tinha conseguido que ninguém se risse.
Ao longo do ano fui-lhe pedindo encarecidamente que tentasse ter positivas. Com muita dificuldade, consegui que se aguentasse. À tangente, com muito boa vontade. Pedi aos colegas para a ajudarem. Nas reuniões de turma, bati-me para que ela não chumbasse. Se ficasse para trás, perderia os seus amigos, seria pior. Nessa altura eu devia ter apenas mais quatro anos que ela.
Nesse dia, muitos anos depois, em que nos encontrámos, disse-me: 'Sabe, Stôra? Sou economista. O que sou, a si o devo. Nunca me vou esquecer do que fez por mim'. Estava muito emocionada. E eu também fiquei. E ainda me emociono quando me lembro dela, adolescente magra, despenteada, desengonçada, cambaleante, e, depois, uma mulher bonita, bem vestida, bem arranjada, segura de si.
A vida da gente guarda segredos, dificuldades, momentos de viragem.
Ninguém deve desistir de ninguém.
A entrevista da Rita Blanco é, toda ela, bastante interessante. Ela e a Sofia Cerveira parecem duas amigas à conversa. E nós, ouvindo-as, parece que estamos a juntar-nos à conversa. Mérito da entrevistada e da empática entrevistadora, certamente.
Rita Blanco: É mais fácil viver a vida de outras pessoas
My Red Carpet… com Sofia Cerveira
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Desejo-vos um belo dia
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