Estou mais normal. O dia não foi coisa mole e não tive outro remédio senão deixar-me de frioleiras e arrebitar. Não é que esteja famosa mas, pelo menos, não estou tão dorida nem tão caída de sono como estive no fim de semana. Devem ser os tais dois dias.
Não tenho muito a contar pois o muito que teria -- e oh se teria, que a natureza humana, por vezes (e em algumas pessoas), é pérfida, hipócrita, sórdida até -- não pode ser aqui exposto. E, para sorte dos que comigo lidam, não tenho nada a ver com o reformado e ressabiado Costa pelo que não deve ser esperado que, daqui por uns anos, um jornalista shopinha de massa me pseudo-entreviste para eu me desbroncar e ficcionar como se não houvesse amanhã. Portanto, sobre o que hoje se passou, ficamos assim.
Prefiro contar que no domingo, a muito custo, fomos passear com a minha mãe. Muito lentamente mas lá andámos, doridos, ensonados, espapaçados. Às tantas, vimos que havia, na baixa, uma feirinha com aquelas barraquinhas, umas com artesanato local, outras com bolinhos, pãezinhos, mel, esse tipo de coisas.
Eu e a minha mãe fomos de uma a outra, espreitando aquelas peças feitas, por vezes, com uma grande ingenuidade, outras com muito carinho, outras com uma grande falta de bom gosto. Mas como isto do gosto é subjectivo, está tudo certo.
Uma vez que gosto muito de presépios (sou uma pagã com gostos um bocado fofinhos), parei numa barraquinha que os tinha muito simples, minimalistas, feitos com conchinhas e pedrinhas. Estive a ver. Perguntei o preço de um. Não era caro mas não comprei, agradeci, fui ver as outras barraquinhas. A minha mãe achou caro. Eu disse que não: 'Se daqui tirarem o sustento, quantos presepiozinhos terão que vender para se sustentarem?'. A minha mãe disse que não, que deveria ser hobby de um casal de reformados. Eu não tinha reparado nas pessoas que lá estavam, não fazia ideia se tinham idade para estarem reformados ou se eram jovens hippies.
Depois de ter visto tudo -- o meu marido, que se tinha afastado, já a telefonar-me para me despachar --, resolvi voltar lá para buscar um little presépio. Estavam algumas pessoas à frente, tive que esperar para me aproximar. Depois fiquei a ver qual o mais simples e bonito.
Nisto, a senhora que estava a vender, uma senhora de alguma idade, grisalha, óculos, vira-se para mim e pergunta: 'Desculpe, é a (....)inha?'. O meu nome, no diminutivo. Olhei para ela. Não reconheci. Esforcei-me. Retorci a memória. Zero. Pensei: Terá sido minha professora...? Mas de quê, quando? Intrigada, hesitante mas quase à laia de confirmação: 'O meu nome é (...)' e disse o meu nome sem diminutivo. Ela sorriu, um sorriso largo: 'Ah bem me parecia... Sou a Pilarcita!'.
Ia-me caindo tudo. A Pilarcita! A Pilarcita? Mas como...? Não faço ideia da cara que fiz nem sei bem o que disse. A minha mãe agarrou logo na conversa, riu-se, disse que há séculos não a via, falou na mãe dela. Sei que a olhei atentamente tentando reconhecer a menina um ou dois anos mais nova que eu de uma rua antes da nossa. Era a miúda mais pequena, a que queria brincar com as mais crescidas. Maria del Pilar. Tratávamo-la por Pilarcita. Muito bem comportadinha, uma boa menina. Quando fui para o liceu ganhei novas amigas, deixei de andar a brincar na rua com as vizinhas. Creio que não a vi desde essa altura.
Enquanto olhava para ela, sentia-me absurda (como é que a Pilarcita poderia ter sido minha professora? Imaginar-me-ia eu como muito mais nova que ela? E ela reconheceu-me e tratou-me como me tratava quando tínhamos seis, sete, oito, nove anos... e eu sem ser capaz de reconhecê-la ou sequer encontrar parecenças...). Ouvia a minha mãe a falar e, enquanto isso, eu, olhando-a o que via era uma mulher que podia ser uma daquelas colegas da minha mãe e não uma amiga minha de infância...
[E, involuntariamente, pensava: Estou desfasada da realidade em relação a mim...? Mas to-tal-men-te? Tão to-tal-men-te assim...? Cega? Ceguinha de todo...? Os outros olham para mim e o que vêem é também uma mulher 'de idade', tão velha como a Pilarcita...? Será...?]
Falei-lhe dos presépios, que eram bonitos. Contou que o marido já estava reformado e tinha começado a entreter-se com as conchinhas e as pedrinhas e que ela, apesar de ainda trabalhar, gostava de ajudá-lo. Acho que não fui capaz de dizer mais nada pois estava em estado de estupor catatónico com o que tinha acontecido. A minha mãe continuou a fazer conversa enquanto paguei e enquanto ela embalava o presepiozinho.
No fim, a minha mãe disse-me que eu pouco tinha falado. Pudera... Estava sem acreditar que aquela mulher 'de idade' era a Pilarcita. E, para dizer a verdade, ainda não estou completamente em mim. Ele há coisas do caraças.
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Os vídeos abaixo não virão a propósito mas acho-lhes graça. Ariano Suassuna faz-me imenso lembrar uma pessoa com quem trabalhei há uns anos. Já, algumas vezes, aqui, falei dele. Foi das pessoas com quem mais aprendi, a todos os títulos. Gostava também de contar histórias e divertia-se imenso ao contá-las e ao ver como os outros se divertiam a ouvi-lo. Tinha uma história de vida fascinante, algo aventureira. Eu adorava ouvi-lo. Ria-me de gosto com ele. E ele a rir-se era como o Ariano.
Ariano Vilar Suassuna (João Pessoa, 16 de junho de 1927 — Recife, 23 de julho de 2014) foi um escritor, dramaturgo, romancista, ensaísta, poeta, artista plástico, professor, advogado e palestrante brasileiro.
2 comentários:
Olá UJM
Também eu há pouco tempo depois de encontrar uma amiga de infância, mas que não tinha perdido o contacto, só que não nos viamos há cerca de 10 anos. Exclamei "estás tão velha o que se passa".
Manuela Sousa
Olá Manuela!
Agora imagine o que é ver uma pessoa que não via desde que ela tinha uns sete ou oito anos... O tempo passa e a gente muda até de feições... que impressão me fez. E o que me fez impressão nem foi bem ela... foi a perspectiva de eu também estar irreconhecível.
Caraças...
Mas, enfim, bem vistas as coisas, estamos vivas e isso é que interessa.
Um abraço, Manuela! E viva a vida!
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